9 de novembro de 2023

Metasandman. Ana Rosa Gómez Rosal (Jot Down Books)


Não sendo o primeiro livro de natureza mais académica dedicado a Sandman (e muito menos primeiro texto, artigo, etc.), nem como poço de interpretação ou revelador de pistas (veja-se o Companion de Hy Bender) este pequeno volume é, porém, um gesto inédito, verdadeiramente poiético, no sentido de estar a inaugurar uma espécie de ensaio pouco comum, uma senda de especulação de pensamento muito estimulante. Tanto de revelador do complexo filosófico que a autora arrola através dos símiles e ficções de Gaiman et al., como de iluminador sobre essa mesma obra de banda desenhada através dos instrumentos rigososos das noções filosóficas convidadas a ser empregues. De resto, algo desde logo previsto a partir dos anos 1960 com a emergência dos Estudos Culturais, que permite interrogar “textos” (num lato sentido semiótico) das ditas “culturas populares” com instrumentos transdisciplinares do mais alto rigor, e a que a banda desenhada tardou, não obstante alguns pontos brilhantes isolados, mas acabou por realmente conquistar.

O seu objecto são as lições metafísicas – isto é, as interrogações especificamente dedicadas à compreensão dos fundamentos da realidade – que são permitidas pela leitura de cada um dos livros, volumes ou “trades” (já voltaremos a esta questão), ou “nuevo arco argumental” (121), da saga de Sandman. A principal, publicada entre 1989 e 1996, sem quaisquer dos offshoots. Cada capítulo de Metasandman, com efeito, é dedicado a um dos títulos unitários que a compõem e que podem ser lidos autonomamente, com o seu círculo particular de personagens, circunstâncias, intriga, problemas e resoluções, que se vão acumulando sobre os ombros e existência do protagonista, Morfeu. Essa leitura tem o propósito de se poder eleger cada um desses volumes como uma etapa de aprendizagem, talvez mesmo iniciática, que vai revelando, a um só tempo, a descoberta ou tomada de consciência de Morfeu do que significa a brevidade e beleza da vida humana, a nós a redescoberta da beleza dessa mesma efemeridade.

Por exemplo, o capítulo dedicado a Prelúdios e Nocturnos fala do modo como Morfeu, “reducido a pura corporeidad” (153), experiencia o tempo pela primeira vez, uma categoria na qual nós, seres humanos, estamos mergulhados, mas com quem esse ente surgirá como um filtro bem distinto. Na sua prisão, Morfeu verá “El tiempo percibido como regalo, como algo no asegurado, como disposición, no del tiempo cronométrico, sino del devenir, de su significado” (22). Contudo, a descoberta dessa nova “prisão”, por assim dizer, da categoria do tempo, a que nós, mortais, não podemos escapar, não tem de ser compreendida como um peso e inércia: “a pesar de la continuidad que sigue prevaleciendo en la cadena de causalidades, podemos escapar de la concepción determinista del universo que habíamos extraído del jardín de Destino” (122).

Ainda que a autora não se foque somente na dimensionalidade temporal em Sandman, não há dúvidas de que é recorrente a sua presença, preocupação e sombra. E não deixa de ser significativo que o seu termo, em relação aos “Infindáveis” (toda a coorte das entidades, ou “família”, de que Morfeu faz parte), esteja nas múltiplas mãos das Euménides, as Benevolentes, demonstrando que “dentro del mecanismo universal, existe un garante de justicia acorde a las leyes atemporales” (161).


Esta obra de Gaiman tem tanto de circunstancial à sua época – o próprio design das personagens é muito devedor a certas tribos góticas e pós-punk do final dos anos 1980 – como de intemporal – o modo como vai tecendo as suas “histórias sobre histórias” baseada num alargadíssimo fundo referencial, erudito e popular, anglo-euro-americano e além desse quadro cultural – como ainda de atento e lavrador da contemporaneidade – a atenção para com as identidades sexuais mais fluidas, a maneira como a acção se expressa na existência humana, o que significa a inteligência e o afecto, ou porque tecemos deuses e ficções... Dessarte, a autora lança mão de todo um manancial de referências, não apenas estritamente filosóficas (Bergson, Merlau-Ponty, etc.) mas também de textos literários, de Marco Aurélio a Jonathan Carroll, de música e cinema, e por aí fora, criando um cadinho gigantesco de que, de resto, como acabámos de dizer, também Gaiman bebe.

Inevitavalmente, aquela opção de leitura - “livro” a “livro” - leva a que se explorem menos questões transversais, temas e baixos contínuos, e se enfrente cada “arco” como uma plataforma de pesquisa de que estes capítulos da autora são um ponto de partida. Haverá sendas menos exploradas, questões nem sequer colocadas, dado o nível complexo de investigação que permitirá. Mas o que analisa de facto é, desde logo, significativo. E há por vezes frases, sobre uma personagem, uma história, um objecto, cujo brilho nos leva a reler estas mesmas histórias.

Porém, desenganem-se. O livro tem tanto de erudito como de popularizador. Não me atreveria a dizer que o livro é “fácil”, nem tem a “papinha feita” em relação aos pensadores que cita e com os quais trabalha (de Nietzsche a Derrida, e também os gigantes espanhóis Unamuno e María Zambrano). Se o leitor não estiver de forma alguma familiarizado com o trabalho e a exigência do rigor filosófico, é possível que o livro possa ser algo opaco. Mas também podemos encará-lo como uma putativa porta de entrada a esses mesmos mundos e ângulos do pensamento, um convite a essa mesma exploração, ainda que se saiba que o caminho vá ser íngreme e difícil. O primeiro passo... como se costuma dizer.


O sonho, para Gómez Rosal, poderá partir enquanto noção abstracta, intangível, mas é instrumentalizador e iluminador sobre a concretude das nossas existências – cognitivas e emocionais, quotidianas e materiais. Afinal de contas, é uma noção liminar, “ni los dioses ni los humanos parecen estar nunca conformes com lo que hace y da” (16). Mas por essa mesma razão, importa estudar o impacto da literatura (até certo ponto, a autora subsume a banda desenhada e essa área artística, o que pode ser problemático, e quiçá seja uma das dimensões menos vincadas deste livro), já que “La literatura es el espacio privilegiado para desarrolar y demostrar esta afirmación, puesto que imprime en nosotros una huella sin necesidad de materia, y se queda su marca, sin que tengamos que recordar exhaustivamente los hechos, ni las fechas, ni siquiera las palabras exactas” (64). Analisando A Game of You, uma das mais preciosas construções narrativas de toda a saga, a autora sublinha essa impressão, quando repete os efeitos que a “quebra da quarta parede”, ocorrida nessa história, tem sobre a nossa existência: “no nos es ajeno, por mucho que habitemos dos estados distintos de realidad (…) la ficción no es solo un entretenimiento, que no es un juego anodino (…) se nos está indicando que somos también actores, que estamos actuando, que tenmos una acción, porque ser afectados por lo que allí acontece forma parte de las reglas del juego” (89). De certa forma, talvez se pudesse afirmar que é precisamente isso o que sempre acontece na leitura, na implicação que a leitura convida nas tramas do que é narrado. Não precisamos de interactividade no sentido de uma tactilidade externa, distante: a leitura toca-nos, implica-nos. Mas haverá livros que nos tocam mais que outros, e Sandman pode concorrer a esse papel.

Mais ainda, a liminaridade surge noutras ocasiões. Não apenas nos “soft places” de alguns episódios (extensão de Morfeu, sempre, mesmo que no momento ele não se aperceba), mas no próprio rei dos sonhos, “agente reunificador, tanto por hacer de conducto entre las dualidades, entre los estadios realidad y ficción, hechos y quimeras, como por estar constituido por los dos mundos. Tiene sus funciones, sus leyes inamovibles a las que se debe para que el buen funcionamiento del cosmos se mantenga, pero también tiene sus movidas humanas” (106-107). A liminaridade que é matéria do próprio discurso de Gõmez Rosal.

Outros críticos já apontaram, e bem visto, que a autora se refere sistematicamente a todo o Sandman como uma “novela gráfica”, ou uma série delas. Ora, isso suspende a contextualização mais precisa, histórica, e de importância social e económica, de que a série teve a sua primeríssima vida, e desde logo com sucesso, através do formato comercial norte-americano dos comic books. Delir essa realidade é um desserviço de uma realidade, que parece querer dar um peso adicional ao formato (e prestígio) do objecto “livro” (daí a inscrição quase exclusivamente “literária”, a dimensão estrutural e de desenho passa quase em silêncio, infelizmente), mas põe de lado toda uma série de relações fulcrais de compreender, editoriais, profissionais, económicas, da colaboração entre as partes, de propriedade intelectual, etc. que não deve nem pode ser escamoteada, com o perigo de reduzir as obras somente a textos quase desmaterializados.

Só que, mesmo que seja feito de areia, o grão do Reino de Morfeu é sólido.

Nota final: este pequeno livro, de quase duas centenas de páginas que se leêm, apesar de tudo, celeremente, tem ainda um complemento sob a forma de banda desenhada, ilustradas pelo artista que assina como Panchulei, em que as figuras dos filósofos que protagonizaram as lições centrais do livro convivem, e ainda um prólogo e epílogo de Marcos Perede. Em ambos os casos, os vincos em relação ao texto central são leves, mas justos.


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