30 de novembro de 2023

Volta. O Despertar dos Gigantes de Gelo. André Oliveira e André Caetano (Polvo)

A amnésia do protagonista, Campeão, é possivelmente um mecanismo ben trovato para esta saga em particular, uma vez que permitirá que haja uma significativa diferença de tom e géneros de volume para volume, quase até ao ponto da incoerência, mas que depois num cômputo final e global se subsume de novo a uma lógica interna claríssima. Este segundo volume tem a vantagem de poder estar ancorado nos elementos partilhados no primeiro, que podem ou não ser herdados como pequenas pistas esclarecedoras, mas ao mesmo tempo tem a desvantagem de aumentar a incertidude dessa mesma visão global, ainda não atingida aqui.

Com efeito, se no primeiro Volta. O Segredo do Vale das Sombras tínhamos uma breve camada de fantasia, que desarrumava a aparente contemporaneidade da história com uma vila e rituais secretos (numa lógica próxima ao filme The Village, mas sem as pirotecnias histriónicas e a emoção desabrida), e a sua criatura, n'O Despertar dos Gigantes do Gelo há um amplexo directo e celebratório no reino da fantasia. Existem tropos que farão recordar os leitores de muitos outros textos – os Eddas, romances e derivados da high fantasy, contos folclóricos, etc. - mas que servem para adensar o caldo em que o Campeão se encontra. Aparentemente, ele parece recordar (parte?) da sua memória, de uma vida anterior, mas esse desvendamento apenas nos torna ainda mais densa e impenetrável a sua putativa resolução, tornada ainda mais complexa pelo aparente, mas falso, epílogo a esta aventura.

Neste episódio do que se adivinha ser uma trilogia (mas que possivelmente poderá dar frutos paralelos), focamo-nos num espaço circunscrito onde se digladiam duas tribos antagónicas. Por um lado, temos um povo humano, mas que se decora com características animais (de toda a sorte de aves e mamíferos, mas também tarântulas), e que vive em segredo da sociedade “normal” na fria floresta, e, por outro, um povo de gnomos ou trolls, cujo maior poder (mas não líder último, note-se) está nas mãos de uma serpente vegetal. Sociedades hierárquicas, que se pautam por territorialidades e alianças familiares tradicionais, e que são um vector importante da identidade do protagonista, agora tratado como “Príncipe” do primeiro povo... Resta saber, mas como disse, apenas uma consideração global tornará esta dimensão mais certeira, em que medida é que Volta, como um todo, estará a explorar este fundo de imaginários de uma maneira não apenas coerente mas transformadora desses mesmos materiais.



Aí também, como se nota, os autores exploram tropos cristalinos, que permitem introduzir assuntos tais como a convivência com a natureza e o modo como a condição humana moderna implicou abandoná-la quase por completo (com excepção deste “povo pardo”), duas formas de compreender as relações de ocupação do território, que compreende e abarca a imaginação, e até formas lendárias de repetirem formas dos animais, sublinhando toda essa matéria. Poder-se-ia ainda explorar a forma binómia, maniqueísta, como estas duas forças são apresentadas, para sublinhar a clareza moral que se pretende instituir. Até certo ponto, quase se poderia dizer que há um muito menor foco no desenvolvimento e acções do próprio protagonista – apesar dele ser transformado na “chave” dos acontecimentos e interrelações centrais – do que na exploração possível de um worldbuilding fantasioso. Todavia, esta construção tão só se ergue como é logo demolida, já que a grande crise narrativa de Despertar é precisamente a revolução das suas estruturas de poder. De resto, é isso o que o dispositivo narrativo da amnésia permite: a introdução de vários aspectos de todo um mundo, ou mundos, a partir de uma perspectiva fragmentada, que nos obriga a um esforço de construção tão grande quanto o do próprio protagonista.



Naturalmente, esta exploração de diversidade temática permite a André Caetano esprair-se na sua lavra. Aqui encontra-se na posse plena da sua capacidade em criar panoramas em planos gerais pejados de pormenor, vistas rasgadas de paisagens telúricas e dinamicamente moldadas pelas forças do tempo, como em planos aproximados, dramáticos, capazes de revelar o máximo das expressões das suas personagens, sem nunca perder a consistência dos traços. E, claro, todo o trabalho de design de personagens (quase imaginamos a “facilidade” em imaginar estas personagens todas em figuras de plástico 1:18 ou 1:10, com máscaras e acessórios recombináveis). Se bem que estejamos cientes de que o trabalho de composição será debatido com ponto de partida no argumento, e portanto haja responsabilidade partilhada, espero que os leitores se apercebam de alguns momentos-chave em que a composição – para mais num livro oblongo, que leva a estratégias bem distintas de direccionalidade da acção, revelação dos espaços, interacção entre os planos, transição das vinhetas, etc. - tira partido de especificidades narrativas significativas: a revelação espacial da gruta do Flautista vs. a acção quebrada dos dois batedores do povo pardo a salvar Campeão e Violeta/Gentía da avalanche, a captura na teia das tarântulas [v. acima], as últimas palavras do Alfa revelando o passado “normal” de Campeão, etc. naturalmente, composições essas que apenas resultam na sua espectacularidade por interromperem um fluxo de composições retóricas mais domesticadas, mas sempre ponderadas.

Findo este volume, suspenso num futuro abrupto, novas questões surgem. Será Campeão uma figura de disrupção? Menos um herói que constrói do que a figura que revoluciona, que destrói uma maneira eterna de ser para permtir novas liberdades, um novo espaço, começos? Estou seguro que, tarde ou cedo, aqui voltaremos. 

Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do volume.

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