13 de dezembro de 2023

Damasco. Lielson Zeni e Alexandre Sousa Lourenço (Brasa)

Se considerarmos a banda desenhada como não somente nos mostrando um mundo (diegético) mas a própria forma como esse mundo é construído (a formação discursiva) e a materialidade deste é tornada opaca – isto é, não se trata somente de uma plataforma transparente para a diegese mas a própria superfície que se torna significativa –, que estratégias de constructibilidade (constructedness) são visíveis em Damasco? A resposta é dada por uma grande diversidade de estratégias visuais e de composição. Alterações do registo do desenho, a cor diminuta, a variedade da composição das páginas (criando como que “secções”, como veremos), a remediação de outros modos gráficos (videojogo, jogo de tabuleiro, manual de instruções, infografia, etc.). Mas qual a razão para tamanha des/estruturação? 

Damasco tem como protagonista Saulo. A associação à epifania do tardio seguidor de Jesus, Saulo de Tarso, e a terra onde viria a ser curado da cegueira dupla, da visão e do coração, não é de todo inocente. Mas não nos parece que haja uma vontade de inquirir em demasia a questão cristológica ou da construção da fé cristã como a entendemos hoje. O que estará em jogo é o desvio. O desvio que coloca Saulo no caminho “certo”, mesmo que esse seja o do abandono da identidade anterior. Tampouco será a possibilidade de uma leitura social da cidade em questão, São Paulo (!), que poderá estar a ser transfigurada numa Damasco, mas cujas hipóteses interpretativas terão de ser deixadas para pessoas que a conheçam (o livro propõe, no final do volume, duas leituras distintas; Eduardo Nasi indica esta associação, mas não a explora).

Damasco acaba por se tornar a crónica de um irreparável medo da idade adulta. Pelo momento em que determinados compromissos, escolhas ou opções se vêm impor, procura-se um atraso, ou mesmo uma negação dessas decisões. Se falamos em opções, e isso é tornado matéria visível nas páginas não apenas na diegese normal – Saulo joga um videojogo – mas igualmente numa das suas transformações superficiais – parte da vida é apresentada como videojogo –, é porque os autores desejam mostrar que esses caminhos são “jogáveis”. Porém, o grande desafio, ou libertação do protagonista, é que a condição de jogabilidade se torna ela mesmo não um sinal de liberdades e potencialidades, mas de uma obrigatoriedade que, por isso, se torna desejável negar em absoluto.

A sequência inicial mostra os mesmos eventos repetidos três vezes, com a mesma composição de página, distribuição de micro-acções em vinhetas idênticas, nas mesmas posições, ainda que pequenas diferenças de grau – tempos – em cada trecho. Isto permite que se possa ler de uma forma complexa, que toma em conta aquilo que Groensteen chama de “redes compactas”, na sua teoria da tressage, ainda que neste caso estas redes atravessem várias páginas. Poderíamos ler cada vinheta aparentada como uma pequena sequência – a descoberta da mancha na camisa, as conversas diárias dos colegas, sempre mudando, sempre ficando na mesma, o trabalho em si, a deslocação em São Paulo e o seu tempo cambiável, etc. De novo, a ideia de iteração “jogável”, em que se poderá ou não seguir os mesmos caminhos previstos, e o incremento da prova superada a caminho de putativos níveis superiores.

Ainda reforçando essa ideia, antes de Saulo ser propriamente revelado nas suas relações humanas – com a sua namorada Raquel, que parece ter começado a passar mais tempo no seu apartamento, o seu gato, a existência de uma banda musical e, por isso, de interesses criativos mais profundos do que a necessidade do emprego rotineiro -, ele surge como uma espécie de agente autónomo e automático, com um propósito diminuto mas que, por isso mesmo, não se desviará dele. Uma acção pura de repetição. Um resultado livre de variações. Todavia, a sequência seguinte, naquelas revelações, vai demonstrar e fazer emergir toda essa espuma variável e cambiante de afectos, de recursos transformadores, de relações.

Os autores acabam por deixar cair a intriga naquele tipo de dicotomias algo unidimensionais de “cigarra-formiga”, do trabalho rotineiro, tornada anedota suprema quando a sua função profissional é confundida com a de outro, e nada disso importa para o funcionamento da empresa. Nesse aspecto, estamos algo longe de uma exploração realista mas quase uma alegoria desse medo, que passa por uma representação fantasmática, de cartão da “realidade do trabalho adulto”; ou adulting, na linguagem actual. Mas, e se entendêssemos isto de uma outra forma? E se prevíssemos esta rotina, entendida como “chata”, “aborrecida”, “prisão”, precisamente como o fluxo heraclidiano que parece ser citado a dado momento? Por outras palavras, será que “não se passa nada” (para citar Greice Schneider, no seu livro fulcral sobre todo um rol de produção de banda desenhada contemporânea de ficção literária) ou será antes ela a própria eventualidade, a super-presença, que tem lugar?

Na verdade, a relação de Saulo com os elementos em seu torno, desde as pessoas às suas actividades paralelas, parecem estar sempre numa equação algo absolutista, como se a grande opção fosse ter de abandonar uma em nome de outra. Não o seria, se Saulo fosse verdadeiramente adulto, e conseguisse compreender a síntese necessária, que alguns poderão ver, e considerar de modo negativo, como “compromisso” (“Tem de se comprometer”, diz Raquel, logo no início; e mesmo que seja noutro sentido, a resposta jamais chega). Para Heraclito, existia mudança permanente, moção, movimento, transformações, e a fixidez não era senão ilusão.

Talvez seja esse frenesim que leva com que o próprio livro – a lavra da escrita de Zeni, e o trabalho visual de Lourenço, numa indestrinçável colaboração multiplicadora da verve criativa – leve a que ele seja composto por secções, que se diferenciam pela atenção sobre os protagonistas – se num momento parece ser somente sobre Saulo, há uma parte que se divide num paralell editing em que seguimos Saulo e Raquel, mas a forma como as vinhetas se afastam entre si nas páginas são sinal de um outro afastamento entre as personagens – e as tais alterações de estilo, registo e composição visual.



No momento pós-epifania de Saulo, que jamais é dramatizado, mas vai surgindo gradualmente e se vai “decompondo” em pequenas acções, uma das secções revela várias pilhas de livros. Por um lado, recorda-nos as peças de Fabrice Neaud, “Petit archivage d'une culture quotidienne”, que foi saindo na revista Ego comme x nos anos 1990, mas se para esse autor francês se tratava de uma construção, uma inscrição e presença na tessitura de todos os dias, para esta personagem da novela gráfica brasileira, ela é sinal de dissolução: venda, dádiva, fuga que, em última instância, afecta o próprio Saulo, física e espiritualmente.

Voltemos à tressage. De acordo com Eric Laurier, a banda desenhada ultrapassou a insistência das suas formas mais primitivas na “sequencialidade para considerá[-las] como 'narrativas plurivectoriais' e como os seus arranjos textuais e visuais podem expressar uma 'causalidade emergente'”. Assim, a leitura de Damasco não pode ser feita de modo linear, mas recorrente, recursiva e combinatória, não apenas para desvendar o coração da “intriga” - a razão da fuga e dissolução de Saulo – mas igualmente o que o mecanismo do livro nos permite retirar das suas muitas texturas. A tressage de Groensteen implica uma mais-valia de significado na combinação de cada um dos seus elementos e, até, a uma plurisignificação recompensada por essas mútliplas leituras cruzadas, atentas à forma íntima da sua formação. Não basta pensar apenas nos “acontecimentos”, ou “história”, mas nos impactos que estabelece quer no mundo diegético – a “epifania” das personagens – quer no do leitor – a redescoberta dos modos de criar significado nas nossas vidas, relações, responsabilidades e, sim, sem medo, compromissos.

Nota final: agradecimento aos autores, pela disponibilidade do projecto.

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