17 de abril de 2024

O ofício dos ossos. Miguel Carneiro (Magma Bruta)

Esta nova publicação do autor vem directamente na esteira dos Ex-votos para o século XXI, para cujo texto remeto, por força desta nova leva de desenhos ser uma variação daqueles temas e, consequentemente, também as nossas palavras se poderem dedicar a variações. Essa irmandade é mais que natural, uma vez que o “fundo” empregue são uma série de pinturas desenvolvidas por Miguel Carneiro entre 2020 e 2023, e que aqui ganham corpo através das alquimias de risografia exploradas pelo estúdio Magma Bruta.

Algumas imagens, e os anexins ou legendas que as acompanham, repetem-se, enquanto outros elementos ou são inéditos ou não haviam encontrando ainda oportunidade de companheirismo nas páginas. Todavia, as variações e recombinações a que se entregam aqui ganham uma nova roupagem, dada as vivíssimas cores com que surgem, brilhantes vivas, eléctricas, quase psicadélicas. Assim, os esqueletos, diabos, funerais, a Morte, aranhas e escorpiões vêm criar novas procissões macabras e humoradas, recordando como face á transitoriedade e ao destino mais certeiro, mais vale um abandono hedonista no sarcasmo. Existem também algumas imagens mostrando bruxas e banquetes, num registo mais solto, de desenho a traço célere, e com uma maior densidade de dramatismo ou narrativa, que podem criar uma espécie de contexto novelesco às outras imagens mais icónicas (os tais ex-votos). Até certo ponto, portanto, poderíamos tentar adivinhar uma espécie de drama familiar, um romance de antanho, de um mundo ruralmente desértico, habitado por avantesmas e o medo do dianho, mas no qual a morte, quando surge, vem bêbada, e há-de enganar-se na sua missão.


Há chamas, fogos e labaredas. O sol, quando brilha, está sempre enfiado no horizonte mas a explodir em pastéis laranjas e vermelhos. Deve estar quente por todo o lado, e até à noite, com a lua na sua forma cornuda como que insinuando licença para o deboche. Se calhar é a noite de São João, curta e grossa. E os esqueletos dançam, para afastar as sombras e o mau-olhado.

Mas de resto, todas estas interpretações poderão ser excessivas e quererão incorrer num programa de significado demasiado demonstrável e articulado que não respeitará alguma da natureza selvagem e livre do fazer artístico. Uma das imagens mostra uma imensa serpente de várias cabeças, mais de 20 (mas com cabeças aparentadas à do verme planaria), abrindo-se como um molhe de flores, e irmanável com a mítica sheshanaja do hinduísmo. Sob ela, espraia-se o dictum que será mais certeiro sobre as imagens todas, a um só tempo individualmente e como conjunto: “Isto é a resposta. Qual era a pergunta?”

Nota final: agradecimentos ao autor, pela oferta da publicação.

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