8 de fevereiro de 2011

Dois livros académicos sobre Chris Ware.

O ano passado viu a publicação de dois livros exclusivamente dedicados a Chris Ware, de uma natureza académica e analítica. O livro em francês é relativamente mais celebratório do que o da University of Mississippi, que colige ensaios académicos, mas ambos concorrem para uma apreciação crítica de um dos mais inventivos e importantes autores de banda desenhada da actualidade, em várias frentes e por vários motivos (sem, porém, querer com isto construir discursos de absolutos). Aliás, bastará notar nos sub-títulos de cada um para percebermos que o primeiro apresenta uma hipérbole que aponta para as revoluções que a obra de Ware tem de facto operado no território da banda desenhada (se bem que sejam essas mesmas experiências algo intransmissíveis, ou apenas conducentes ao epigonismo) e o segundo para o entrosamento de todo o gesto holístico do autor no seu trabalho. Este vibra com uma vitalidade desconcertante. É magnífico como um autor, enraizado como está em culturas locais do seu país (o Midwest, a cidade de Chicago), não é nada paroquial; bem pelo contrário, Ware consegue incutir a cada um dos mais ínfimos pormenores dessas mesmas culturas com traços profundos de humanidade, assim como às crises que elas suscitam, exploradas de modo alargado na sua obra melancólica.
Mas há outra dimensão, que é a da forma, de extrema importância em Ware (e que se se separa, é para ser devolvida de modo mais forte). Ainda que um leitor forte de banda desenhada seja atencioso para com todos os factores implicados num dado texto de banda desenhada, as mais das vezes o próprio acto da sua leitura é pautado por certas escolhas: uma direcção da leitura, uma inclinação para decifrar de uma forma mais decisiva uma das facetas do trabalho em detrimento de outra, e por aí adiante, revelando portanto algum grau de limitação natural (que se relaciona com a atenção humana, a capacidade perceptiva, etc.). Mas o trabalho aparente ou ilusoriamente minimalista de Ware força o seu leitor a ler tudo. Não apenas a óbvia “história”, os diálogos e legendas, e a sequência principal das acções visuais, mas também a estrutura da página, a escolha do formato, tamanho e distribuição do painel, etc. Todos esses aspectos estão sempre revestidos de significado (diegético, estético, etc.), mas na obra de Ware fazem parte intrínseca da matéria legível e formadora do significado das suas ficções. Não são mero embelezamento ou floreado de expressão. Sem a atenção devida a esses mecanismos, o sentido não se forma completamente.
O seu estilo aparentemente impessoal, quase infográfico, rompe igualmente alguns preconceitos, tais como o de que um “estilo frio” não consegue transmitir emoções, ou para sermos mais específicos, Ware consegue ir para além dela, fazendo emergir um certo sentimento contemporâneo e urbano de deslocamento, de não-pertença, e até mesmo de silêncios traumáticos (o estudo de Isaac Cates, na antologia norte-americana, sobre o modo como os diagramas de Ware funcionam ou quanta da informação não dita sobre segredos familiares são transportados pelas suas cartografias imagéticas é muito claro nessa dimensão).
Todos os elementos constitutivos da banda desenhada (sejam eles vistos como forem) são acumulados camadas sobre camadas até que elas ganham uma densidade incrível, uma presença ancoradíssima. Sem querer hierarquizar aqui quaisquer estilos, géneros ou mesmo pessoas, temos ainda assim a ideia de que Chris Ware foi capaz de trazer algo de genuinamente inovador à banda desenhada (corroborado, defendido, ensinado por todos estes textos). Mas essas inovações estão imersas num ar de familiaridade. São facetas, a um só tempo, novas e habituais, por assim dizer. Algumas das bandas desenhadas de Chris Ware são como mapas de pensamento, capazes de representar bidimensional mente a liberdade de direcção da percepção, memória e razão da nossa existência humana.
Em alguns aspectos o trabalho de Ware é similar às instalações do artista suíço Thomas Hirschhorn, no sentido que o este nosso artista também emprega uma “micro-galáxia de materiais, objectos, textos e temas históricos e correntes” (como se lê num catálogo italiano de Hirschhorn) para criar um ambiente impregnador no qual o leitor-espectador entra, mergulha e sobre o qual age. A banda desenhada de Ware é mais “limpa”, claro, e todo o material dos seus livros são comprimidos, passam pelas suas próprias mãos, o seu estilo, por isso não temos aqui uma colecção de objectos heteróclitos reciclados como no caso do artista suíço. Ainda assim, também sentimos que as suas páginas são os pontos nodais nos quais materiais diversos convergem e interagem para criar aquele ambiente indicado. É como se a obra de Ware trabalhasse, ao mesmo tempo, a um nível furtivo, subtil, até quase subliminal, e a um outro mais visível, presente e claro.
Chris Ware. La bande dessinée réinventée. Jacques Samson e Benoît Peeters (Les Impressions Nouvelles), é composto por vários materiais heteróclitos, não sendo propriamente um livro criado de raiz na colaboração de ambos os autores, os quais são investigadores de central importância no estudo contemporâneo da banda desenhada. Mas é o gesto dessa união que torna este livro uma adição importante para um estudo introdutório de Ware. Jacques Samson apresenta uma cronologia da vida e dos trabalhos de Ware, com alguns dos títulos merecendo uma breve ficha de leitura, e, no final do volume, uma série de quatro “micro-leituras” de quatro pranchas específicas da obra do autor norte-americano, leituras essas excelentes, tendo sido uma delas publicadas na Mei 26, e que havíamos chamado de “closest reading”. Benoît Peeters, por sua vez, coloca aqui na íntegra a transcrição da entrevista que havia feito para o seu programa de televisão, Comix (e que podem ver na íntegra a partir daqui). O volume ainda inclui quatro textos assinados pelo próprio Ware, retirados de outras publicações ou catálogos e que abordam, à vez, o seu próprio trajecto autoral, um ensaio sobre a linguagem da banda desenhada, e textos sobre Töpffer e Frank King. Em certa medida, trata-se de um belo volume que se pode acrescentar às prateleiras de coleccionadores, faceta que o próprio Ware reconhece, assume e para a qual contribui com os seus muitos projectos paralelos à Acme Library, como os Datebooks e os novos materiais nas colectâneas. No que diz respeito a abordagens académicas e de pesquisa, haverá aqui uma contribuição mais circunscrita, mas não por isso menos marcante.
The Comics of Chris Ware. Drawing as a Way of Thinking. David M. Ball e Martha B. Kuhlman, eds. (University Press of Mississippi), como já se indicou, agrega uma colecção substancial de ensaios académicos, quinze, dedicados ao autor norte-americano, fruto de conferências, e organizados ao longo de cinco eixos temáticos ou disciplinares: “contextos e cânones”, “intersecções artísticas”, “a paisagem urbana”, “leituras da história” e “temporalidades do quotidiano”. É assim que encontramos várias ferramentas analíticas, métodos e disciplinas unidas em torno de um só objecto. Da psicanálise à crítica literária, da possibilidade de construção de um cânone de banda desenhada a perspectivas estéticas, não é apenas o corpo central da obra de Ware estudado como todos os seus outros projectos criativos, desde o design em antologias, discografias e etc., até às suas escolhas editoriais e produção ensaística.
O primeiro ensaio, de Jeet Heet, é um daqueles textos que “toca todos os botões” de parte da pesquisa que se vai aqui tentando, de vez em quando, neste blog. Heer foca a forma como Chris Ware, não apenas através da sua obra de banda desenhada, mas através de todos os seus gestos criativos – o que passa pelo design, a edição, a escrita, etc. – funda os seus próprios antecessores. Assim sendo, a genealogia de McCay, Herriman, King e McGuire não é apenas uma questão de “fontes” em relação a Ware, mas sim como um território relativamente delimitado no qual Ware se deseja inscrever. Ao criar esses antepassados, Ware cria um espaço que lhe é próprio. Ora, estas são precisamente as questões que abordamos aqui repetidamente, sob o signo da “recuperação da memória” da própria banda desenhada, um dos aspectos pelos quais, independentemente dos problemas de mercado, acreditamos viver num momento de consolidação artística, uma vez que a memória do campo da banda desenhada se começa a formar de um modo que não se voltará, cremos, a dissipar. Parte dessa consolidação passa necessariamente – e aqui estamos em total desacordo com aqueles que crêem que pensar, analisar ou fazer crítica “académica” (na verdade, só há crítica de contornos académicos, aquilo que se passa por crítica nos circuitos jornalísticos não é um exercício crítico, mas de comentário) enfraquece a capacidade de criar ou de ler prazenteiramente uma obra de arte – pelo círculo dos estudos universitários, e aqui também, no que diz respeito aos Estados Unidos, vemos uma inflexão para a fundação de um corpus coeso. Num texto anterior, havíamos contraposto os estudos de banda desenhada francófonos, onde exista um grupo coeso de académicos que procuravam responder-se entre si e, desse modo, criar uma massa crítica substancial (sob a forma de instrumentos, conceitos, análises, corpus analisados, e até mesmo alguma ideia de cânone), e os norte-americanos, em que cada novo autor parecia ter de refundar a disciplina. Ora, com este volume, e não é surpreendente que isso aconteça com Ware, um dos autores mais globalizados do momento, encontramos toda uma série de textos que utilizam a bibliografia existente, citando extensiva e pertinentemente os livros e papers existentes na bibliografia norte-americana que abordam questões directa ou indirectamente associadas aos temas ou prismas abordados. Nesse sentido, este livro é também um passo importante para a consolidação dos estudos de banda desenhada.
Este volume mostra uma crítica ao posicionamento político e cultural de Ware em relação às suas escolhas antológicas e escritos (Marc Singer), a transformação das “falhas de Ware” num conceito operativo para compreender a inscrição da banda desenhada num panorama mais amplo da criação cultural (David M. Ball), as relações do artista com a História da Arte (Katherine Roeder), com o movimento da Oubapo (Martha B. Kuhlman), análises dos diagramas como híbridos narrativos e não-narrativos (Isaac Cates), dos elementos paratextuais e suas relações com conceitos como os de “closure” e “tressage” na banda desenhada (Shawn Gilmore), de temas como a arquitectura (de Daniel Worden, numa ligação algo desequilibrada com Walter Benjamin, por seguir uma interpretação algo incompleta do seu conceito de “aura”; e este é um ensaio que recorda uma outra antologia de estudos que esperamos vir a discutir em breve intitulada Comics and the City), a gentrificação urbana (Matt Godbey), a inclusão de pessoas de mobilidade reduzida como personagens viáveis (Margaret Fink Berman), a memória, aliando a teoria literária às ciências cognitivas (Peter R. Sattler), todo um campo de criação contemporânea (Georgiana Banita), entre alguns outros temas. O ensaio de Joanna Davis-McElligatt explora a negociação entre a representação racial e os clichés obtusa e obviamente racistas presentes em Jimmy Corrigan. Enquanto leitura forte, este estudo - assim como outros neste livro - obriga-nos a uma releitura do livro de Ware sob estes novos prismas. O de Benjamim Widiss é também muito interessante pois mostra como os aspectos autobiográficos de Ware bebem das informações paratextuais das antologias, fazendo emergir uma questão fulcral sobre os limites da interpretação - tal como preconizados por Umberto Eco e a sua tripla “intenção”; o ensaísta faz acompanhar essas considerações com micro-análises que sublinham expressivamente a multi-arquitectura temporal e de leitura da obra de Ware.
Curiosamente, apesar de muitos dos temas quase estarem perto, não encontrámos (ou então isto é fruto de distracção), estudos que aproximassem Ware de Bem Katchor, Tony Millionaire, Martin Vaughn-James ou outras experiências contemporâneas da banda desenhada que se poderiam mostrar produtivas, ou até mesmo a um romance como La Vie, Mode d'Emploi, de Georges Perec, que terá ecos seguramente em Building Stories.
Conclusão
Não sendo estes os primeiros livros/monografias dedicados a Ware, pois em 2005 havia surgido o volume de Daniel Raeburn, de que havíamos dado brevíssima conta, e Chris Ware (La secuencia circular) de Ana Merino (pela espanhola Sins Entido), estes dois livros tornam-se porém, logo à partida, blocos fundamentais não apenas para aqueles interessados numa abordagem analítica e crítica em relação à obra deste autor, mas também pelos estudos de banda desenhada em si mesmos. Ware torna-se, desta forma, um autor capaz de não apenas obrigar-nos a repensar na sua totalidade os propósitos, estratégias, e modos da banda desenhada enquanto modo de expressão, disciplina artística e até mesmo o seu papel na função sócio-económica, como a providenciar um corpus capaz de consolidar o campo de estudos específicos desta área.
Nota: agradecimentos às editoras respectivas, pelo envio dos livros.

2 comentários:

  1. Penso que terei deixado escapar este seu post, e não, não li de todo nenhum deles: se tivesse lido, muito provavelmente teria ficado caladinha no meu lugar. Não porque ousasse pensar que estaria a fazer descobertas, mas porque é tão bom chegar lá através dos nossos mecanismos imensamente ignorantes e depois dizer que se chegou, em jeito de comentário básico mas de algum modo orgulhoso. Este seu texto expõe de facto uma série de reflexões que eu sem querer (embora soubesse existir por força da obra incontornável de Ware) "copiei". Primeiro sorriso. O segundo saiu quando diz que não concorda com quem diz que a leitura académica (ou seja, fundamentada numa série de estudos "outros" e na multiplicação de sentidos por força de cada área?) tire o prazer da leitura da obra. Pois eu estarei entre o concordar e o discordar. De facto, quando se expõe uma obra analiticamente - e por ser ela mesma uma experiência múltipla, ancorada no registo perceptivo de cada leitor - está a formar-se necessariamente uma perspectiva em detrimento de outras. Uma perspectiva académica. Isto parece mesmo tolo, eu sei, mas vou continuar, porque me apetece dizer que, por um lado, gostaria muito de ler estes livros - é óbvio que enriquecemos a nossa experiência e, logo, multiplicam-se as nossas possibilidades combinatórias - por outro, todo o encantamento de abrir portas e serem essas portas as minhas escolhas (por razões que posso vir, no processo, a descobrir) e de trazerem atrás delas outras portas e descobertas, está no centro do prazer da nossa leitura. Ou seja, como diz no seu texto, estes artigos académicos obrigam-nos a reler a obra de uma outra forma, de outras formas, de ver o cotão que nos escapou e que era importante, mas retiram também a oportunidade de vermos o cotão por nós e de o espalharmos a nosso bel-prazer. É como chegar ao resultado antes de tentar fazer a equação.

    Mas não pretendo estar a provocar uma conversa sobre assuntos batidos.

    Vim mais para agradecer a orientação. E depois escorreguei.

    Obrigada,

    Isabel

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  2. Cara Isabel,
    Não penso que tenha "escorregado" de forma alguma. Está no caminho certo, se é que se me pode permitir dizê-lo. Encontrarmos afinidades com outros autores é excelente. Há uma mistura de alegria, orgulho e presunção quando pensamos uma coisa e vimos a descobri-la escrita por um autor, e mais quando - e falo apenas por mim -, esse outro autor expõe essa ideia de uma forma nítida, completa e magnífica, como não poderia jamais pensar em conseguir fazer.
    No entanto, e mesmo na possibilidade de a estar a entender mal, ou estar a fazer uma sobreintepretação das suas palavras, continuarei a defender que a leitura "académica" ou "analítica" é uma mais-valia.
    Não há qualquer problema de moral ou de valor numa leitura epidérmica, sensual, superficial, sobretudo quando é de modos artísticos que não compreendemos. Por mim falo, novamente: a minha fruição da música e da dança contemporânea, sendo feita no seio de uma completa ignorância das suas “gramáticas” não pode ser feita de outro modo. No entanto, e mesmo que esteja a arrogar-me de uma compreensão que, no fundo, não terei, já a leitura da literatura, do cinema e da banda desenhada se pauta por alguns instrumentos que ajudam a compreender melhor os textos. Dizer que apenas a primeira abordagem é “suficiente” que a segunda (por exemplo, “sentir” um poema em vez de o “analisar/ler”) é uma ingenuidade aceitável; que é “melhor” é um perigo de ignorante; que é “mais verdadeira” uma estupidez. Bastar-nos-iam uma mão cheia de exemplos de vários meios para demonstrar como uma mais atenta análise de um certo texto desvendaria sentidos mais profundos do que a mais cursiva das passagens, e assim se pode atingir uma leitura mais “verdadeira”, ou pelo menos “melhor”. O que depois permitira, talvez, demonstrar que se pode argumentar (mas nunca provar) a superioridade de uma obra de arte em relação a outra.
    Tema que se desenvolveria ad aeternum…
    Pedro

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