1 de maio de 2012

Maduro Maio ou, Uma ilustração de Marco Mendes.

Marco Mendes criou esta imagem para o jornal Avante!, em 2011 (para ser preciso, o número 1953, datado de 5 de Maio de 2011). Fazia parte do convite feito a vários autores do nosso circuito da banda desenhada e ilustração para criarem imagens referentes ao 1º de Maio, ou outro tipo de resistências, gráficas, às políticas liberais que imperam cada vez mais, disfarçadas de “inevitabilidade” (tampão à discussão).
O autor, numa breve conversa, indica que procurava cumprir alguns dos princípios inerentes à pintura mural do imediato pós-25 de Abril, que ainda descobrimos num ou noutro local, meio gastos, ou que apenas a memória nos faz precisar o local onde acabaram por ser apagados. No entanto, também revelou não ter em mente a composição desse magnífico monumento que é a pintura de Goya, 3 de Maio de 1808. No entanto, é por demais que nos faz recordar essa imagem.
Acreditamos que o autor conheça bem a imagem de Goya, e que ela exista sob a forma de uma sombra no fundo da sua memória visual, e que ela tenha operado de alguma forma quando o autor desenhou a sua prestação. Pois de facto, vejam-se as constantes da composição, os eixos das linhas, a relação entre o muro e o fundo meio oculto, as cores, o ambiente, e a lição política... (Filipe Abranches fez uma variação futurista consciente desta imagem, para uma exposição dos seus desenhos, mas não terá o mesmo propósito).
O 1º de Maio, que comemora a luta dos trabalhadores, historicamente marcado pelo massacre de Chicago em 1886, é um momento que parece cada vez mais colocado em questão no mundo ocidental tardo-capitalista, em nome de uma “necessária” “reforma estrutural”, “sustentanção empresarial” e “cabimentações orçamentais”, as quais, não sendo erradas, podem ganhar sempre contornos mais vagos e menos directos, minando assim um tecido que todos julgávamos consolidado e, pela nossa crença na progressão histórica (uma ilusão, decerto), a qual apenas poderia melhorar. O quadro de Goya, por sua vez, marca o massacre das vítimas da máquina imperial napoleónica, e a sua história precisa, a sua integração no ciclo de gravuras de Goya Os Desastres da Guerra, a forma como transformam os testemunhos gráficos desenvolvidos até à sua época (como os de Callot) e o gesto original que marcam na pintura europeia, são consabidos. A junção destas duas linhas de força temáticas, pelo filtro do próprio trabalho pessoal de Marco Mendes, é muito significativa.
Não é uma transformação inócua deste autor português substituir o pelotão assassino - não se poderá apelidá-lo de “pelotão de execução”, pois mesmo essa figura operaria no interior de um quadro legal, ainda que injusto, e ali, em Goya, é apenas a barbárie - por um automóvel abandonado e delapidado. A ideia dos “murais de Abril” desgastados não só pelo tempo, mas pela incúria, pelo vandalismo político e pela curta memória dos portugueses, encontra-se confirmada na imagem esbatida do muro - no interior da ficção desta imagem, trata-se de um mural gasto, não de pessoas a manifestarem-se naquele local -, ao mesmo tempo que a sua presença insistente faz recordar a possibilidade de uma resistência - na materialidade do desenho em si, da ficcionalidade matérica, são pessoas de papel que ainda se manifestam ali.
Os outros elementos da imagem também concorrem para essa ideia de fantasma que tanto já se dissipa como só agora desponta. A cena nocturna apresenta duas áreas secundárias de cor, o azul dos “condomínios privados” no fundo (cuja substituição da cidade e igreja de Goya tampouco deve ser vista como ocasional, apesar de tudo) e o verde velho do automóvel delapidado, como se se tratasse do ciclo de vida dos bens e mercancias do capitalismo contemporâneo - judiciosamente invertido em termos dos planos visuais - , interrompido pelo muro (velho, inacabado, destruído, insistente) com as suas cores primárias a impor uma mancha ainda diurna nessa noite: in girum imus nocte et consumimur igni. Estes efeitos são conseguidos pela metodologia de Marco Mendes, a qual não prima nem pelo cuidado ou limpeza, nem pela linearidade ou planificação da aplicação: encontram-se os vários desvios e erros incorporados presentes na imagem final, materiais deslocados e incompatíveis a longo prazo como lápis de cor e tintas várias e tratamentos finais que perigam a composição. É como se Marco Mendes aliasse a urgência e necessidade do gesto criativo e o subsumisse totalmente ao emprego da sua reprodutibilidade enquanto vida verdadeira da imagem, e não a preservação do original enquanto obra de arte nela mesma. Uma prática crítica que impede ou contesta a objectificação do desenho em si enquanto passível também ele de um comércio?
Conforme é também prática deste autor, em que mistura memória pessoal e história colectiva, autobiografia e fantasia, ele inscreve o seu avatar auto-representativo em primeiro plano no interior da cena do mural, empunhando a bandeira vermelha internacional e cruzando o seu braço com o do mineiro, recordando muitas das permutas que os jogos gráficos de João Abel Manta entronizaram no pós-25 de Abril. Mas poderíamos argumentar que Mendes-o-autor não quer que Mendes-a-personagem ocupe o mesmo lugar moral, digamos assim, que as vítimas retratadas por Goya, e o lugar da personagem original de branco seja aqui substituída por esse mesmo avatar, com a sua camisola de gola alta preta e os óculos de massa, sinal próximo da caricatura do intelectual, algo desfasado da “massa operária” que está ali representada, sem querer deixar de se mostrar como aliado. Devemos entender esta imagem como parte da obra contínua do autor de Diário Rasgado? Pequeno desvio de encomenda? Imagem solta e irrepetível? Ou algo que pode ganhar essas qualificações todas conforme a perspectiva de quem vê? Passado um ano sobre a sua publicação, continua a ganhar significado, e talvez mais nos próximos anos.
Do muro, quebrado, todas as personagens têm as bocas abertas. É de um lugar de fragilidade que partem, é certo (não é a turbamulta gloriosa e utópica como a de Delacroix de A Liberdade conduzindo o povo), mas a voz não deixa de se fazer ouvir, e como escreveu José Afonso, na sua famosa cantiga sobre o mesmo mês, “Que a voz não te esmoreça”…

3 comentários:

  1. Gostei muito do texto, Pedro. A verdade é que no momento em que desenhei isto não pensei no "Fuzilamento", mas tens razão, a composição é muito próxima, e o Goya é um dos "meus" pintores. O carro abandonado é o símbolo de um modelo de desenvolvimento falido, baseado no consumo e no endividamento. E os ideais de Abril, como disseste, foram há muito apagados pelo tempo... Grande Abraço!

    ResponderEliminar
  2. Em breve esta imagem de desalento será complementada com algumas de verdadeiro cariz revolucionário, relacionads com o movimento Es.col.a da Fontinha, do Porto. Algo se passa nesta cidade, não há dúvida. É já para o próximo número do Buraco!

    Abraço.

    M

    ResponderEliminar
  3. Oi! E quais são os trabalhos dele como ilustrador?
    Tem alguma exposição atualmente?

    ResponderEliminar