8 de junho de 2012

Diário rasgado. Marco Mendes (Mundo Fantasma)

Permitam-nos uma brevíssima nota inicial pessoal, que denota de imediato o nosso próprio método de trabalho, o qual temos a presunção de ser o mais correcto nestas situações. Conhecendo pessoalmente o autor, e até mesmo podendo (ou não) ter acesso a informações pessoais, não cabe ao crítico nem abusar desse “poder” pessoal para se arrogar de uma capacidade superior em “conhecer o autor”, ou pior, “a obra”, nem deve mostrar-se tentado pela facilidade preguiçosa de “fazer perguntas para entender o significado”. A obra deve falar por si, até mesmo ao ponto do autor perder a sua autoridade última (ou única, o que é ainda mais insustentável) na interpretação da mesma, e é função da crítica desalojar os seus sentidos e trazê-los a lume. Além do mais, o nosso projecto actual de doutoramento contempla precisamente o estudo de alguns autores portugueses contemporâneos, inclusive Marco Mendes, à luz da área transdisciplinar chamada de Trauma Studies. Não nos sendo possível expor todos os aspectos relacionados com ele - por ser um projecto em curso, por ser uma aprendizagem incompleta, por ser algo com qualificações e ramificações impossíveis de expor num texto contido -, alguns dos instrumentos deste texto estarão porém relacionados com essa pesquisa. Ou seja, mesmo que o pensamento aqui surja incompleto, ele é feito não só pour prendre date mas para se articular publicamente, na sua própria formação.
Tendo em conta o panorama algo limitado na publicação de banda desenhada em Portugal, que sobretudo sofre de constantes comparações com pólos mais fortes de produção, em vez duma atenção às suas especificidades, e que tem necessariamente repercussões na sua apreciação pública, circulação, divulgação e mais ainda em termos de recepção crítica, é muito natural que o conjunto destes trabalhos sob a forma de um “livro” - um objecto de capa cartonada, com uma lombada, uma chancela que não sendo uma grande editora vem pelo menos associada a um importante agente da banda desenhada à escala nacional, com distribuição alargada (pela Turbina), etc. - chegue a um público bem mais alargado e diverso daquele que havia sido conquistado e contactado através dos fanzines do colectivo A Mula, o mais recente jornal Buraco, a colecção em Tomorrow the Chinese Will Deliver the Pandas, ou até mesmo, paradoxalmente, o blog do autor, que dá título a esta publicação e à ideia de Poema Contínuo da obra do Marco Mendes. Por outro lado, precisamente dado o perfil usualmente conservador e estático do círculo da banda desenhada, que preza mais a continuidade, a manutenção de abordagens convencionais e fórmulas - narrativas, figurativas e estilísticas -, Diário rasgado não deixa de ser um objecto com algum grau de diferença, e um nível de maturidade, impacto emocional e intelectual algo raro na produção nacional. Nada disto significa que o caminho seguido por Diário rasgado seja necessariamente “superior” ou “melhor” que outros - por exemplo o da fantasia desabrida, ou as explorações mais ou menos criativas e desreguladoras de géneros conhecidos - mas é esse um caminho que está munido de instrumentos que o aproximam de outros círculos artísticos, literários e de pensamento, exigindo um público mais adulto que o “médio”.
Não está o autor sozinho, claro está, e isolando certos traços encontrar-se-iam “compagnons de route” - neste tipo de abordagem naturalista à autobiografia teríamos Marcos Farrajota, Teresa Câmara Pestana, e o mais recente David Campos, na dimensão emotiva mas não melodramática encontraríamos Paulo Monteiro, na distância irónica Janus, Tiago Baptista e Miguel Carneiro, nos aspectos formais Nuno Sousa e Carlos Pinheiro - mas é a convergência desses mesmos traços que tornam o seu trabalho (como o dos restantes autores) singular. E se abríssemos o leque a nível internacional, muitas outras referências se fariam notar.
Apontemos uma só, por servir de signo de abertura ao livro e por deixar algum tipo de “aura” sobre Diário rasgado. A primeira página do livro mostra uma imagem, sem texto, sem título (recordemo-nos de que esta é uma colecção de pequenas “unidades” individuais, usualmente de quatro vinhetas regulares, com um título próprio). Nela, vemos uma cena interior, da sala da casa em que o protagonista vive, e vemos três troços de corpos humanos: uma mão entrando pelo canto superior esquerdo, segurando um cigarro meio-fumado, uma  perna que se  atravessa ao longo da margem, do canto inferior direito até meio da cena, e, relativamente escondido, um rosto de alguém deitado de lado. Por um lado, tendo em conta as informações diegéticas e visuais ao longo do livro, seria fácil identificar cada um desses pedaços de corpo como pertencendo a três das pessoas vivendo naquela casa: Marco, Didi Vassi e Palas. Mas ao mesmo tempo poderíamos, sob o signo de Guido Buzelli, pensarmos que se trata de um corpo só, fragmentado. A cena de abertura de Zil Zelub, do autor italiano, apresenta o protagonista (também ele um avatar auto-ficcional de Buzelli) numa prancha convencional, cujas vinhetas fazem com que o corpo deste surja judiciosamente enquadrado e próximo da superfície da imagem, em contraste com o seu interlocutor, de maneira a que não haja de nada estranho nessa mesma imagem: parece simplesmente que há uma opção de focalização de grandes planos sobre o protagonista. Mas virando a página descobrimos que a fragmentação física superficial da imagem correspondia afinal a uma fragmentação literal (na ficção), pois os membros do protagonista estão desassociados do tronco. E dá-se início então à história absurda desse magnífico livro.
Ora, ao virarmos esta primeira página de Diário, não encontraremos nenhuma confirmação diegética desse tipo. Este tipo de fragmentação, ainda que não seja explorada literal, imaginativa e diegeticamente no livro de Mendes, tem ainda assim uma presença de grau, pois ainda assim a disposição dos corpos “judiciosamente enquadrados” e a “fragmentação física superficial” leva a pensar que haverá algo dessa dissociação sobre o protagonista, o “Marco” de Diário rasgado… Verifica-se sempre, aliás como em toda a autobiografia em banda desenhada, uma espécie de desdobramento na figura do protagonista, ao qual chamaremos, como é prática corrente na crítica académica, “Marco” (isto é, utilizando o primeiro nome do autor, nos casos em que não haja menção de nome no próprio texto, o que não é o caso presente). Esse desdobramento é, por um lado, gráfico, já que os autores se representam a si mesmos de modo diferente às suas percepções cognitivas no mundo empírico (já voltaremos a esse assunto). Por outro lado, o autor deixa uma nota no final do volume dizendo que tudo o que o livro discorre pertence à ficção, mas talvez essa seja a maior ficção de todas. Aceitando que de facto não se está perante a mais chã - nunca o é, mas imaginemos aqui querer indicar-lhe um “grau zero” - das autobiografias, estaremos pelo menos perante a auto-ficção ou a auto-fantasia, no sentido em que o autor constrói como que um duplo, um avatar, um doublé, um “fato de ficção” que depois se coloca nas ficções que cria, mas onde todos os elementos terão ligações, se não directas, desviadas subtilmente da realidade experienciada. Não queremos entrar na discussão, eventualmente improdutiva se não seguir os mais equilibrados instrumentos, de que toda a obra é autobiográfica, mas tampouco desejamos afunilar a discussão àquelas onde se verifica o “pacto” explícito de Lejeune, mas antes apontar para a existência de um território mais ou menos coeso e consensual que aceita empregar o termo de “autobiografia” para um conjunto de trabalhos. Ora, Diário rasgado inscreve-se nesse território alargado, se bem que com as diferenças que lhe são próprias.[e é por essa razão que optámos por esse marcador no blog, não outra]
Como dizíamos, dá-se aqui aquela torção típica que ocorre em meios narrativos visuais, que, não podendo utilizar uma espécie de pronome visual diferenciado dos demais personagens, isto é, não existindo um “eu” nas imagens, leva a que todas as personagens sejam representadas como uma terceira pessoa, cuja cidadania material é idêntica, a do protagonista sem diferença das demais, a não ser a sua presença mais continuada, focalizada, etc. Logo, nessa realidade, ocorre uma torção que leva a essa dissociação - afinal, nós não vemos o nosso próprio rosto se não em reflexos, e um desenho é um reflexo, ainda que atravesse canais e filtros mais pessoalizados do que uma fotografia, por exemplo. Porém, como já havíamos indicado quando da edição de Pandas, Marco Mendes faz atravessar as suas histórias - e o seu avatar - por toda uma panóplia de géneros e humores, criando dissociações secundárias no interior do seu discurso.
A capa parece ter um aspecto elegíaco: o esquema das cores sombrias, a forma como se apresenta uma data em frente do nome do autor, e a cena de um avião descolando, que não se percebe se parte ou se regressa, se diz respeito ao próprio protagonista ou a uma outra pessoa. Mesmo que depois se confirme o que representa, na capa essa sensação mantém-se, isola-se da matéria no seu interior. Depois confirma-se de facto que é uma partida, e é algo que pode ser visto como o âmago deste livro: a relação de Marco com Lígia/Lili. Essa mesma relação ocupa o centro do livro, de maneira a que poderemos ver na sua estruturação de ponta a ponta uma curva linear que representa o grande arco: a entrada na vida de Marco de uma namorada, as paixões e tensões, o seu fim e os efeitos posteriores. E a pressão ou gravidade desse acontecimento sobre tudo o resto, por mais desligado que pareça.
Veja-se, por exemplo, o caso de “Afrodite”. Esta é uma das muitas unidades que Marco Mendes cria sem texto, obrigando o leitor a deduzir de uma forma mais profunda o grau de emotividade e de experiência transmitida do que aquelas em que os textos, os diálogos, as piadas podem tornar as coisas mais centradas numa comunicabilidade superficial. Bem vistas as coisas, por mais exercícios de descrição ou de certeira écfrase que se tente, não conseguiremos detectar com exactidão porque é que entendemos aquela projecção de desejo que se verifica na quarta vinheta. O corpo nu da modelo surge nas três primeiras, estando na terceira representada de forma indirecta (na verdade deslocada em terceiro grau, porque é um desenho de um desenho), e na última a jovem mulher já não é modelo de nu, partindo do pressuposto de que se trata da mesma personagem. A personagem de Marco age como professor de desenho, e as suas acções, eventuais palavras, gestos, à-vontade mostra o poder que exerce em relação à modelo, no sentido de ser ele o foco de atenção que molda o corpo dela enquanto percepção dos alunos. Na quarta vinheta há uma distância intransponível, sublinhada pela forma como a modelo se protege e afasta e mergulha na zona escura do desenho, e o Marco, aparentemente descontraindo com um cigarro, a segue com o olhar - não lhe vemos os olhos é certo, estando mesmo cobertos pelos óculos, mas adivinhamo-lo pela inclinação do corpo contra o umbral, a da cabeça… Se esta cena pode funcionar isoladamente enquanto jogo de olhares, desejo, representações, exercícios de identidades masculinas e femininas, e poderes, no interior da continuidade do Diário ganha outros contornos diferentes - está depois do fim da relação com Lili, está antes da cena de “flirt” e da história imediata após esta. Tratar-se-á essa segunda personagem feminina da modelo? É o sonho sexual memória ou projecção/desejo?
Não há aqui uma atenção sobre essa relação Marco-Lígia de uma maneira analítica ou clínica como ocorre em outros autores tais como Jeffrey Brown, Joe Matt, ou outros, mas antes uma sua dissolução líquida no resto da vida (tal como representada em Diário rasgado - a vida com os colegas em casa, a vida profissional, a vida familiar, a vida quotidiana), como se fosse o seu sangue. É essa ausência que marca um espaço de luto que influencia as outras cenas e episódios, inclusive aqueles que isoladamente poderiam não ter qualquer ligação a esse centro (“Águas passadas”, “Domingo à noite” “Jantar”, e, claro, “Afrodite”). Há um outro tema que poderia eventualmente ser o imo, deslocado, desta obra, patente na história “Saudade”, e explorada noutras histórias não incluídas no livro, mas essa é uma via de análise que pede tempo, e também a suspenderemos. Assim sendo, e mais uma vez à luz dos Trauma Studies, o livro pode ser visto como funcionando enquanto processo de “cura”, de transformação da memória dessa(s) relação(ões) e momentos em texto e, uma vez existindo enquanto texto, passível de ganhar um “fecho”. Este, curiosamente, e reforçando a ideia de arco narrativo convencional, não é mais do que um regresso à mesma situação do início, de jovens adultos de uma geração “à rasca”, dividindo a casa e abandonando-se a prazeres banais de álcool, drogas, saídas nocturnas e sessões de observação do sexo oposto e de comicidades chãs (mas que podem ser vistas como uma resistência política à seriedade, hipócrita, que os poderes instituídos parecem obrigar qualquer discurso a subsumir-se, isto é, para que haja diálogo tem de haver uma submissão a certas “regras de direito à voz”).
Nessa esteira, é mesmo importante compreender igualmente como o autor não dispensa a inscrição do seu contexto político-social. Aliás, como havíamos visto na apreciação a um seu desenho avulso - mas que pode perfeitamente ser encaixado no “Poema contínuo” da sua obra -, essa é mesmo uma dimensão da maior importância neste autor, mesmo que não seja alvo de uma discursividade explícita. Ainda assim, se isolarmos as vezes que as personagens se referem aos seus empregos, as suas expectativas profissionais, carreiras, situações económicas e sociais, ou fazem comentários (mais ou menos valorizadores, mais ou menos de juízo, mais ou menos cómicos) sobre os outros - que podem ser tanto representantes de uma certa ideia de normalização social como outros tantos párias, no cômputo final emergirá uma certa ambiência política que se nutre por valores de esquerda, de descontentamento com os discursos de um suposto “sucesso” ou “empreendedorismo necessário”, e as “inevitabilidades económicas” em que parecemos habitar na contemporaneidade capitalista.
De certa forma, Marco Mendes está na esteira de uma tradição artística que pode remontar a Courbet, no sentido em que não pretende idealizar ou embelezar a realidade, mas tentar capturá-la tal como ela é. Obviamente, que, estando num momento mais avançado da produção artística, a discursividade necessariamente pós-moderna de Marco Mendes impede-o de ter uma aproximação ingénua a essa mesma realidade, sabendo como o desenho, a sua estruturação estilística, as suas opções por uma materialidade opaca, com um peso visível, a sua consequente manipulação nas estruturas significativas da banda desenhada (mesmo que sejam as contínuas e simples grelhas de quatro vinhetas), como tudo isso enfim são gestos específicos, contidos, conscientes de transformação dessa tal “impressão da realidade” numa tessitura com significado próprio. A realidade, sento inatingível nela mesma (o númeno), é passível de ser constituída através dos instrumentos expressivos e artísticos do autor, de maneira a que mesmo a sua suposta abordagem “documental” acaba por se revestir de um sentido estético. Ainda assim, a realidade criada por Marco Mendes tenta dar a ver, devolver ou recriar uma certa ideia de genuinidade. A ironia em relação aos seus espaços de vivência, à sua auto-representação (por mais filtrada que seja),  a “sujidade material” dos seus desenhos (mesmo que haja algum trabalho de “limpeza digital” que afaste das materialidades dos desenhos originais, tema debatido no próprio livro), e até mesmo a integração de elementos de fantasia na “vida real” são os factores que contribuem para essa qualidade de genuíno. A despreocupação para com a camada imagética - as rasuras sobre textos, os contornos de certas personagens corrigidas, os riscos rápidos para marcar sombras ou volumes, as manchas de corrector enquanto corrector (pois pode ser usado com outros fins), a não-limpeza “para fora” das molduras das vinhetas, a marca da fita-cola nalguns locais - pode até ser pensada, ou pelo menos fará parte dos instrumentos expressivos específicos deste autor, mas por essas mesmas qualidades, que contrastarão com uma certa ideia clássica, metódica e “limpa” de criar banda desenhada (uma forma artística que preza a revisitação do material original para o seu tratamento final para reprodução), aproxima-se desses valores de genuinidade. Lembra mesmo aquela metáfora de Walter Benjamin em “O contador de histórias”, na qual fala da marca que fica no texto de quem conta a história, como a marca deixada no barro pelas mãos do oleiro (esse ensaio tem outras determinações que seriam úteis na exploração deste livro de Marco Mendes, mas suspenderemos essa discussão por agora).
No entanto, é preciso ter-se muito cuidado para que não se confunda essa noção de “genuíno” com a da “verdade”, a tal qualidade numénica, real, dos eventos e das coisas. Esse seria um caminho não só improdutivo como perigoso, passível de se formar numa questão colocada ao autor: “isto foi mesmo assim?”, “esta pessoa disse isto?”, etc., remetendo de novo para a nota inicial. Não deixa de ser significativo que a história inicial, “Evereste”, mostre o ensejo de escalar essa montanha para ver melhor o mundo, como uma figura isolada e heróica à la Caspar David Friedrich, mas todo o livro nos mostre antes uma outra perspectiva, mais ao rés do chão, menos cume, que ainda assim é capaz de observar a natureza do mundo, o trabalho e os dias, devolvendo-nos um certo rosto.
Mais uma palavra sobre a materialidade, precisamente no que diz respeito a essa genuinidade. Além do que foi dito, este estilo “ruidoso”, por assim dizer, permite que jamais se naturalize a camada visual, impedindo-a de se tornar num filtro transparente, ilusório, que fosse capaz de parecer transmitir “a verdade”. é pela sua constante mutação, tactilidade, incompletude clássica e materialidade suja, pelo cruzamento de abordagens visuais num mesmo plano de composição ou entre páginas, que deixa surgir o “Sem expressão” (Ausdrucklose), um outro conceito fulcral de Benjamin, em “As Afinidades Electivas de Goethe”: “No sem-expressão, surge a violência sublime do verdadeiro”, acrescentando ainda o filósofo que é nele “que se perfecciona a obra quebrando-a, para fazer dela uma obra fragmentada, um fragmento do mundo verdadeiro, o torso de um símbolo”. Benjamin refere-se, como se tende, ao romance de Goethe, que se apresenta como um todo coeso e de estrutura límpida. O grau fragmentário de Diário rasgado é por demais óbvio, mas não diz só respeito a uma condição contemporânea de produção, que se forma num contexto criativo que o aceita como tal: ele não procura disfarçar essa mesma condição, assume-a.
E de facto, um outro aspecto recorrente nas narrativas desta natureza é a sua qualidade fragmentária, de desordenação narrativa (no sentido de organização que obedece a eixos temporais e causais normativos), e que permite vários tipos de recombinação - que se verifica, como veremos - e ritmos discordantes. Seguindo uma lição de E. Ann Kaplan, tratar-se-ão de “narrações sem narratividade” (Trauma Culture, pg. 65). Modos tais como a intervenção de cenas oníricas, fantasiosas, interrupções da linearidade temporal com analepses, por vezes súbitas, a circularidade (sublinhada pela ideia de recombinação), um humor quase histérico por vezes, o emprego de estratégias claramente transferidas de géneros convencionais (menos observáveis nas escolhas deste livro, todavia) fazem parte desse desarranjo, ou de uma terceira camada de dissociação. A recombinação dos trabalhos é notória, quer se se fizer um contraste com a antologia anterior (Pandas) quer se se tomar em atenção as datas de produção e primeira publicação e o lugar que essas unidades tomam agora no livro (bastará olhar para as datas para ter uma sua primeira impressão, ou algumas das indicações no final do volume). Uma compulsão da “obra completa”, do “Poema contínuo”, e das escolhas efectivas, poderá revelar-se muito significativo. Por exemplo, a ausência de uma história como “Pesadelo”, da economia tão central do livro, colocará questões muito produtivas. Seja como for, o autor reutiliza alguns dos seus trabalhos anteriores e subsume-os formalmente a uma regra quase perene, a das quatro vinhetas, como se desejasse impor um outro tipo de coerência ou de continuidade, a qual por sua vez faz menção a uma tradição específica à banda desenhada, a saber, a das tiras cómicas (sobretudo na sua forma influente à la Schulz), ainda que as “punchlines” e as elipses sirvam para desregular as expectativas do humor, e da melancolia.
Isto demonstra como mais importante que uma suposta “verdade” está a formação, a criação, de uma impressão de genuinidade da experiência desta(s) personagem(ns), com a qual podemos encontrar empatias, a qual reserva os lugares do sujeito que lê e do sujeito que é lido, respeitando a diferença intransponível, mas cuja experiência em segunda mão se pode revelar gratificante, enriquecedora, interpelante, interrogadora, ou outros afectos possíveis.
Marco Mendes, trabalhando no interior de uma economia de géneros que pode dar pelo nome de “alternativa”, vive num espaço de negociação de um equilíbrio tenso, entre a abdicação das “ficções dominantes” (expressão de Kaja Silverman), mas mesmo assim preservando alguma ideia de coerência narrativa - a presença de personagens recorrentes, a possível identificação de um eixo espácio-temporal minimamente reconhecível, coeso e agregador da diegese, o estabelecimento de relações de continuidade entre cada “fragmento” de maneira a permitir uma leitura contínua. Mais, a própria possibilidade de recombinação leva a pensar na procura incessante - e na possibilidade de novos relançamentos - de uma coerência sempre em construção.
Nota final: apesar de indicarmos a Mundo Fantasma como editora, é necessário indicar que se trata de uma co-edição com a Turbina e o colectivo A Mula; agradecimentos ao autor e à editora pelo envio do livro.

12 comentários:

  1. Viva Pedro!

    É para mim um privilégio poder ler assim sobre o meu trabalho. Vale algumas idas ao psicanalista! Grande abraço!

    Marco

    ResponderEliminar
  2. E acertaste ao falar do Courbet. É por aí que vou. Courbet, Daumier,Balzac... Abraço!

    ResponderEliminar
  3. Pedro, que belo artigo! Gostei muito e fiquei com vontade de comprar o livro. Sabes se está à venda em Lisboa?

    ResponderEliminar
  4. Olá, Marco.
    Haverá muito a dizer ainda, e espero que a recepção crítica do livro esteja a altura de responder aos seus desafios (se bem que mesmo elogios do "belo desenho" ou do "histórias interessantes" seja mais do que merecido). Sucesso!
    Isabel, presumo que haja distribuição relativamente comercial, nas livrarias, pelo menos de referência, ou "seleccionadas". Em caso de falha em encontrar, poderei ajudar. E sim, é obrigatório.
    pedro

    ResponderEliminar
  5. Em Lisboa havia alguns à venda na BDmania. Para encomendas online (fica ao mesmo preço das lojas com gastos incluídos):

    diariorasgado@gmail.com

    abraço,

    M

    ResponderEliminar
  6. pistas de leitura interessantes e muito úteis,
    como sempre crítica isenta de juízos de valor (ainda que se sinta uma preferência)
    só não entendi a hesitação: "avião descolando, que não se percebe se parte ou se regressa", já que descolar é partir e graficamente a diagonal ascendente indica isso...

    ResponderEliminar
  7. Caro topedro,
    A frase está, muito simplesmente, mal escrita e terei de a corrigir (fá-lo-ei atempadamente). O queria dizer é que não se percebe se é alguém a partir "daqui para fora" ou de algué "regressando". Algo confuso, eu sei: mas na história, é a segunda hipótese. A capa é que parece mais dramática.
    Obrigado; como disse, corrigirei em breve esse lapso.
    Pedro

    ResponderEliminar
  8. Pedro,
    a economia da frase confundiu-me mas agora vejo que está bem, expressa essa ideia..
    quanto ao código gráfico, o avião deveria talvez descolar da direita para a esquerda (para trás no sentido da "nossa" leitura), mas isso é outra história e o M.M. por razões suas não o fez
    abraço,
    antónio pedro

    ResponderEliminar
  9. agora é que fiquei mesmo confuso, reli o texto, reli o comentário, e já não sei se é partida ou regresso...
    tenho que comprar o livro!

    ResponderEliminar
  10. Para mim é a imagem de um avião que descola, nada mais (não cheguei a considerar a possibilidade de alguém poder interpretá-la como um avião que aterra, mas essa ideia não me desagrada de todo). Para desvendar o sentido ou dramatismo da imagem há que ler o livro. Não queria que a imagem da capa se desvendasse a si própria, mas que deixasse algo em suspenso. Abraços,

    M

    ResponderEliminar
  11. Marco,
    certamente por uma série de preconceitos "visuais", é claramente um avião que descola o que vejo na capa, se aterrasse eu esperaria um ângulo inverso (ventral), mas a ambiguidade subsiste e (com uma pequena ajuda do Pedro) acentua o dramatismo..
    abraços,
    antónio pedro

    ResponderEliminar
  12. O bom desenho no caso do marcos é a raiz .
    O estilo clássico adaptado às tirinhas cómicas sacadas da vida, é uma originalidade...só é pena que o livro näo tenha 80% de inéditos...

    ResponderEliminar