6 de julho de 2012

Habibi. Craig Thompson (Pantheon/Casterman)

O segundo “grande livro” de Thompson - em termos de tamanho e de impacto crítico e de divulgação, sem desprimor para com os seus outros projectos - levou a discussões apaixonadas e apaixonantes, pela matéria controversa que ele suscita. Indicamos desde já que as considerações que se seguem se articulam com algumas daquelas que foram tidas em determinados locais, como em The Hooded Utilitarian e no blog do The Comics Journal (perguntamo-nos, com alguma soberba, até que ponto seria possível mimar esse gesto entre nós). Habibi é, desde logo, um livro que se imiscui em toda uma série de vertentes que é impossível de responder cabalmente, e portanto apenas escolheremos algumas dessas linhas de discussão. De antemão, também revelaremos a dificuldade que é ter um posicionamento decisivo, claro e simples, do tipo “gosto” ou “não gosto”, ou de mera aceitação ou recusa da sua importância. Quer dizer, desde logo pelas discussões ele é, sem dúvida, um livro interpelante, que obriga a uma leitura crítica, atenta e inteligente. O seu mero encómio é um desserviço ao que ele propõe, mas tampouco nos parece que um ataque cerrado será o caminho certo, muito menos a recusa de o ler antes de o considerar nos seus contornos e nas suas especificidades. (Mais) 

Habibi, superficialmente, trata da história de duas personagens, uma mulher árabe chamada Dodola, que nasce num contexto de pobreza extrema, é vendida como esposa a um calígrafo que publica versões do Corão, e depois atravessa uma também difícil vida enquanto prostituta, concubina e mulher que se tenta libertar dessa vida, e Zam, um menino negro, filho de escravos e escravo ele mesmo, que é resgatado por Dodola. A relação de ambos é de uma complexidade extrema, atravessando uma relação primeira de mãe e filho, mesclando-se com a de irmãos, e, mais tarde, ou finalmente, como de homem e mulher, a ver, amantes. Só esse aspecto de imediato lhe garantiria uma dimensão controversa, mas não por isso menos exigente, incómoda e forte.

No entanto, aquele aspecto que maiores problemas tem suscitado na sua recepção mais articulada é da representação do Outro, a saber, a do árabe ou muçulmano (que não são sinónimos, mas em Habibi se confudem). A decisão de Thompson em recriar uma matéria imaginativa e fantasmática das 1001 Noites num contexto contemporâneo, com todas as suas implicações políticas, sociais e económicas, no seio daquilo que Samuel Huntington, redutora e erroneamente, chamou de “Choque das Civilizações”, não pode deixar de ter os seus frutos amargos.

A acção passa-se num país que nunca é identificado no tecido histórico e real, tal como não há qualquer esforço para indicar o contexto temporal exacto desta história. No entanto, toda uma série de clichés - a existência de um sultão mimado pelos excessos e que procura novas formas de prazer, o seu harém quase infinito, salas do seu palácio encerrando maravilhas e jardins e faunas, à imagem do mítico, e não o histórico, Harun Al-Rashid, a própria existência da escravatura - são elementos que lançam a uma espécie de “fantasia antiga”, contrastada com pistas visuais da contemporaneidade - o barco no meio do deserto, peças de carro, latas de refrigerantes e outros detritos da indústria moderna no lixo - que complica essa decisão. Aliado à “Wanatólia”, o país inventado (condensação, deslocamento, metonímia distorcida) pelo autor para estas acções, só se pode concluir que o que Craig Thompson criou é uma fantasia, no seu pleno sentido, e com que ele se defende mesmo em algumas entrevistas. O problema é que estas fantasias tocam nas franjas de realidades tangíveis, históricas e contemporâneas nas quais existem pessoas, pessoas reais, e o que ele faz é perpetuar essa mesma fantasia, é dar continuidade, e solidez e, graças ao seu poder autoral e de artista, inegável, algum peso de autoridade. Não há nenhum momento em que sintamos estar Craig Thompson a colocar em questão as representações de que se apropria. E toda esta questão explode quando passamos o véu dessa fantasia selvagem e “intemporal” para entrar na Wanatólia moderna, para a última parte deste romance, onde pessoas “modernas” vão às compras, lavam os seus SUVs, falam ao telemóvel e usam computadores… Não se percebe se é pior: é afinal essa modernidade manchada pelos segredos cruéis que se encerram nas “costas” da cidade? É essa modernidade podre? Também o seria a nossa nesse caso, mas a atenção de Habibi fecha-se nesse universo de referências. Quer dizer, o surgimento dessa outra realidade para além da primeira fantasia que havia criado, mescla de elementos literários, pictóricos e cinematográficos de fantasia somente, torna-se, de alguma forma, mais “pura” em contraste com essa cidade moderna. Outro binómio perpetuado, portanto.

A palavra chave nas críticas mais agudas é a de “Orientalismo”. O próprio autor faz uso dela, mas enquanto defesa, ou pelo menos enquanto matéria plástica e imaginativa desprovida de consequências políticas, o que é extremamente surpreendente senão mesmo perigosamente ingénuo. De uma forma simples, o Orientalismo é um tratamento do Outro - nomeadamente do “mundo árabe” - a partir de uma perspectiva eurocêntrica redutora. É claro que toda e qualquer perspectiva parte sempre de uma posição determinada e nós, enquanto europeus, não podemos perspectivar de outro modo, mas o problema deste tipo de perspectiva é a ausência de aprendizagem, diálogo e uma vontade indómita na projecção de princípios organizadores de conceitos, valores e compreensões do mundo sobre outras culturas, cujos pressupostos não serão, de todo, os mesmos. Associado que está ao movimento romântico do século XIX, sobretudo francês, tem a ver com uma tradução (composta de irreparáveis perdas) de estilos, temas, episódios, textos, que “essencializariam” essas outras culturas, ou que as tornariam adaptadas ao palato europeu. Como se sabe, essa noção sofreu uma viragem conceptual e valorativa crucial com o trabalho de Edward Said.

Será algo temerário querer apresentar aqui uma súmula das lições de Said nesse sentido, mas tentemo-la. Talvez a ideia central de Said seja, na esteira de outros intelectuais como C. L. R. James, a de as hierarquias de poder - entre classes, sexos, raças/etnias e, sobretudo países, colonizadores e colonizados - serem exercidas não somente através do poderio militar, administrativo e económico mas também cultural. A representação dos “outros” é, como dissemos, sempre feita através da perspectiva de quem a exerce, como é de esperar, mas o problema está em se criar uma ideia tal que não se cria qualquer tipo de espaço para alternativas dessa mesma representação, muitas vezes nem sequer espaço para a auto--representação. Por vezes, esse poder vai mais longe, ao ponto de “vender” essa representação até mesmo aos povos representados. Dá-se, portanto, uma espécie de “rapto cultural”. É aí que se verifica, então, o uso da arte para a criação de mitos sobre o “misterioso Oriente” (e a banda desenhada, enquanto território de entretenimento que vai empregar em segunda ou terceira mão essas representações e mitos, será um meio particularmente eficiente na propagação dessas mesmas ideias; veja-se o livro de McKinney para, pelo menos, uma dimensão desse processo). Uma outra dimensão importante do trabalho de Said, aliado ao de tantos outros teóricos modernos, e mais imediatamente associada ao seu trabalho de interpretação literária, mesmo podendo hoje parecer mais óbvia, é que mesmo no caso de uma determinada obra não ter uma explícita dimensão política, ela existe na mesma. Ora Thompson repetidamente diz que ela não existe, o que não deixa de ser caricato. Apenas sublinha a ingenuidade já indicada.

Aliás, esta sistemática imposição de uma visão de alguém pelos olhos de outro - neste caso, a contínua construção de representações do “mundo árabe” pela perspectiva ocidental - acaba por provocar uma dissociação sobre esse mesmo alguém, o qual, para que possa dialogar no interior do mundo ocidental, já que não lhe será sequer permitido dialogar a partir do seu lugar sem ser visto como “entrincheirado”, “radical”, etc., terá de se ver a si mesmo (de se representar, de mimar o discurso) sob os olhos do outro, aquele que detém as chaves e os canais da discursividade.

O problema está em que Thompson não leu Edward Said. O autor emprega mesmo, em algumas entrevistas, o termo “orientalismo”, e é notório como integra ao longo do seu livro imagens retiradas da pintura ocidental orientalista - Ingres é recorrente - para criar o seu ambiente “árabe”. O problema é que Thompson parece compreender essas contribuições como positivas, completas e desprovidas elas mesmas de problemas de representação. Não somos de forma alguma os únicos a notar nisso, como já se indicou.
As “intenções” de um autor não podem ser vistas como sacrossantas e como triunfando sobre os efectivos elementos significativos do texto criado. Por exemplo, a escrita em caracteres árabes - espalhada por todo o livro como uma espécie de “brecha” para que o Outro se expresse na sua língua, no seu idioma - é deveras belíssima mas, hélas!, não é feita por Thompson, que optou antes por copiar fontes existentes. Apesar de ser um género totalmente diferente, se pensarmos nos carnets em que Joann Sfar vai-nos mostrando os seus passos de aprendizagem de um instrumento, ou nos recordarmos como Trondheim se “ensinou” a desenhar através dos seus primeiros monumentais livros, estamos aí mais perto de um gesto honesto consigo mesmo do que, mais uma vez, um aproveitamento superficial e embelezador que coloca em dúvida todo o suposto programa. Não é uma aprendizagem em curso, mas um decalque, no caso do autor norte-americano. O interesse de Craig Thompson pela adaptação gráfica de textos religiosos não nasce nem em Habibi nem sequer nos momentos-chave de Blankets. Já em Bible Doodles (parte da colecção Small Batch da Top Shelf, em 2000) se encontram adaptações transformadoras de relatos bíblicos, bebendo quer da Bíblia na versão do Rei Jorge, quer das versões dos apostólicos quer ainda dos apócrifos, e construindo páginas onde a decoração barroca (como no caso ainda do poster que fez para a Guardian Angel Tour, de Neil Gaiman) ou as versões “chibi” estavam patentes.

Não queremos dizer, de forma alguma, que as pessoas, e os autores sobretudo, não terão direito de se projectarem para fora das suas próprias culturas e tentem auscultar outras. No entanto, têm de se consciencializar dos riscos que esse gesto estendido poderá provocar, no caso de desequilíbrios. Repare-se nas cenas em que o autor tenta conciliar as versões das narrativas bíblicas (judaico-cristã) com as corânicas. A narrativa da origem e distinção entre os filhos de Abraão, isto é, os descendentes judeo-cristãos de Isaac e os muçulmanos de Ishmael, através dos mitos bíblicos, simplificam em excesso as relações históricas das duas populações, se assim as podemos chamar. Mais, uma vez que essa narrativa é feita fora da História, não poderá vir a entrosar-se com ela (e muito menos justificá-la). Mas é o que Thompson parece indiciar: uma vez que fazer a história real dos povos precisos que poderiam ser seu objecto de pesquisa, e para se manter na linha da fantasia, elege os mitos bíblicos como fonte. Esse segundo concílio, porém, entre fantasia literária e história, é bem mais difícil… São dois modos diferentes de ver o mundo, como quereria Wittgenstein.

Um livro destes tem necessariamente um impacto gigantesco, que ultrapassará de longe o público estritamente bedéfilo, e é por essa razão que merece maior atenção crítica - e provavelmente reacções mais vincadas - do que a representação de árabes ou mulheres em determinados títulos mainstream, seja de super-heróis norte-americanos ou 48ccs franco-belgas, onde os clichés são parte do substrato habitual. Por essa razão é que os instrumentos teóricos e analíticos provindos de disciplinas como o pós-colonialismo e o feminismo são mais precisos e contundentes a ler Habibi do que a se aproximarem do que o notoriamente estúpido Holy Terror! de Frank Miller, o qual nem quase merece consideração, ou quaisquer trabalhos horrendos de propaganda acéfala. Ou seja o tipo de responsabilidades que parece estar a ser exigida de Thompson prende-se mais com as tais “boas intenções” que parecem perpassar o seu projecto, com o valor artístico e intelectual que lhe é atribuído em diferença dos produtos mais comerciais de outros círculos da banda desenhada norte-americana, do que propriamente uma hierarquia de “erros” verificada num panorama mais alargado de produção.

O que ocorre é uma confusão, da parte de Thompson, e dos seus leitores acríticos, entre o que constitui um verdadeiro “diálogo intercultural” e uma “apropriação radical de um Outro racializado” (citamos a académica e artista Kali Tal, do seu Worlds of Hurt), isto é, reduzido a uma suposta essência, a uma quantidade de traços “reconhecíveis” e “típicos” - da parte de quem vê e fala, não da auto-expressão dessas mesmas pessoas. Por isso, o que é notório é que Thompson, em vez de procurar ancorar-se em aspectos particulares e reais culturais e contextuais, prefira criar uma versão amalgamada e romantizada do que passa por “cultura árabe”. É certo que o seu tratamento tenta ser sensível a aspectos artísticos, e não somente para um fim propagandístico (Holy Terror!), político mas unilateral (Soraïa) ou até de paródia (como o caso do recente filme de Baron Cohen, The Dictator). Ainda assim, a redução essencialista que Habibi opera não é de modo algum anódina.

Em nenhum momento são construídas personagens mais dimensionadas do que as figuras de cartão dos esclavagistas, os esquálidos pedintes nas ruas sujas, o gordo sultão, as outras cortesãs displicentes, os bárbaros beduínos, os cruéis guardas dos palácios, inclusive os eunucos negros, o profeta tolo, etc. Se apenas Dodola e Zam são personagens mais moldadas, contra quem podem elas contracenar e ganhar força, se não existem mais nenhumas?

Mas mesmo essas personagens têm contornos muito contestáveis. O quase-fetichismo em explorar a sexualidade de Dodola, seja sobre o olhar crescentemente lascivo e culpado (uma culpa quase cristã, diga-se de passagem) de Zam seja nas cenas (repetidas, demasiadas) das suas violações e abusos, torna-se objectificada de uma forma nada digna da protagonista que se prometera. Quando nos materiais anexos finais Thompson compara as formas das letras árabes com o corpo e vestes de Dodola, não é preciso desmontar com vigor o que aí se opera. O próprio Zam aparece e desaparece de cena num mecanismo quase ex machina não impõe um encadeamento justo dos episódios. De novo, o problema não está em criar fantasias, mas antes em fantasias que se interseccionam com realidades demasiado presentes, e por isso nada inócuas. Como diz Chimamanda Adichie, “o problema dos estereótipos não está no facto de serem falsos, mas sim de serem incompletos”.

Alguns comentaristas comparam Thompson, pela sua figuração, abandono a efeitos barrocos de composição, e tessitura imagem-texto, com Will Eisner. Não é de todo uma observação errónea, mas completar-se-ia se se notasse também a forma algo fácil com que ambos deslizam da mera mestria da expressividade das suas personagens, e na justiça da representação das emoções e relações humanas para o melodrama. Uma vez que já discorremos sobre esse termo em relação ao Portugal de Pedrosa, abster-nos-emos de repetir essas linhas, apontando somente que ele atinge, em Thompson, e aqui em Habibi, um nível histriónico, hiperbólico e por vezes intolerável.

Como escreve Edward Said em Orientalismo, “Não acredito que além que escreva, pense ou aja sobre o Oriente o possa fazer sem tomar em conta as limitações impostas sobre o pensamento e a acção pelo Orientalismo”. Aparentemente, através das entrevistas e outras frentes extratextuais, Thompson parece querer dar conta de que ele estava consciente do Orientalismo (dele), e até do seu uso directo dessas mesmas fontes (literárias, artísticas e imaginativas) enquanto uma manipulação desarmante. No entanto, ele acaba por demonstrar a sua própria inconsciência como gere essa manipulação, e até um alto grau de ingenuidade - a qual se serve para garantir algum tipo de “autenticidade” à voz própria de Blankets, se torna politicamente duvidosa em Habibi. Thompson, malgré lui, perpetua o Orientalismo. O que ele diz nessas entrevistas acaba por ser, em bom português, “da boca para fora”.

A importância de compreender o que significa, de facto, a diferença cultural, a própria possibilidade de perspectivas outras que não a nossa, é profunda, complexa e difícil. É muito fácil olhar para determinadas conquistas sociais e políticas eurocêntricas como “universais”, seja o voto das mulheres, a escolaridade obrigatória, a água canalizada, as vacinas ou a comunicação digital de 4ª geração. Como é que é possível que haja segmentos da população mundial (ou até mesmo no interior do “nosso” país) que se recusem a entender o benefício que advém destas coisas? É inconcebível. Todavia, é precisamente o esforço de conceber essa diferença que nos parece inultrapassável que nos fará entrar num verdadeiro diálogo, que implica ouvir o outro na sua própria voz e, eventualmente, compreendê-lo. E pôr em causa muitas das ideias preconcebidas sobre nós mesmos. Não para a pôr em causa e recusá-la (isso caberá a cada um), mas antes a, pelo menos, e esta seria já uma grande vitória, compreender que nada é “universal”.

Habibi não pode ser lido inocentemente como “apenas uma bela história de amor”. o acto literário, e gráfico, e de banda desenhada, tem consequências sociais e sérias, e quanto mais as deseje ter maior a sua responsabilidade.

O livro abandona-se a toda uma  série de virtuosismos, quase visíveis como esforço em conquistar a sua prestação perfeita. Contudo, esse esforço apenas contribui para o seu enfraquecimento enquanto expressividade necessária. Eddie Campbell tem razão quando aponta que a ordem temporal não-linear de Habibi não pode ser vista como algo de virtuoso em si mesmo, estando nós a viver numa era pós-Tarantino, em que essas mesmas buscas por novas estruturas temporais já foram co-optadas, como se costuma dizer, pela cultura popular, como muitas vezes (e é esse o caso de Habibi), o tipo de significado que emerge daí não é particularmente iluminador ou interessante. Além disso, e no cômputo final, o que há é um aproveitamento sumptuoso, sem dúvida, mas cruamente utilitário de toda uma cultura em nome de um qualquer ideal de “bom árabe” que é, no fundo, pernicioso. Há uma cena em Carnet de Voyage em que Thompson repudia um local que o tenta ajudar, por desconfiar das suas intenções. Isto é muito sintomático de uma certa atitude em relação a uma cultura díspar: é maravilhoso entrar em contacto com uma cultura outra qualquer - a arquitectura, a música, ler a poesia, eventualmente arriscar comer os seus pratos - mas se não tivesse tanta gente real à volta, seria melhor…

Uma última palavra sobre a diferença entre a encadernação da versão original norte-americana e a francesa. A edição original em inglês de Habibi apresenta uma capa trabalhada e decorada em consonância com o interior do livro, imitando um volume luxuoso do século XIX de literatura (profusamente) ilustrada, ou, na ideia de Daisy Rockwell, um “livro sagrado”. Sabemos que as mais das vezes a edição francesa de livros, inclusive as de banda desenhada, opta por soluções mais sóbrias e simples, e bastará pensar em dois casos contrários: as capas relativamente simples de L’Ascencion du Haut Mal e Persepolis pela L’Association, que nas suas versões norte-americanas passaram a presenças mais engalanadas. Neste caso, a versão da Casterman, integrando-a na sua colecção Écritures, ela mesma um sucedâneo no seio do circuito comercial francófono da experiência original da L’Association, é despojada dessa dimensão, com a excepção de que a sua imagem central está numa moldura filigranada e ela, tal como a matéria verbal da capa, são impressas numa cor cobre brilhante. De que serve isso para alterar a leitura de Habibi? Talvez pouco, ou talvez o suficiente para continuar a inclinar esta obra como um acto de beleza superficial imitativa, que pode iludir no seu alcance.
Nota: agradecimentos à Pantheon e à Casterman, pelo envio das versões original norte-americana e a tradução francesa  

12 comentários:

  1. Boa pergunta a tua no início, Pedro (refiro-me a discussões entre nós semelhantes às dos blogs norte-americanos que citas). A resposta, creio, é um rotundo: não! E nem preciso de indicar as razões... todos as conhecemos de sobra...

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  2. Provavelmente nunca irei ler este livro. Comecei o Blankets, mas é demasiado penoso. O desenho e o argumento tornam-se demasiado kitsh, a partir de segunda metade da história, (que parece escrita por um miúdo de 10 anos). No entanto, se daquelas 600 e tal páginas se escolhessem umas 60 ou 80, cortando nas partes mais bonitinhas e lamechas, até poderia dar um livro decente, quem sabe.
    Este Habibi, pela descrição, ainda deve ser pior. Grande abraço!

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  3. Boa Marcos Mendes, comigo foi igual, enjoei pelo caminho

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  4. Domingos, a pergunta (retórica) era uma provocação e espero que, aos poucos, a resposta se inverta. Sei que se for construído um fórum apropriado (as CBDPT) poderemos esperar a emergência de discussões mais alargadas. Marco e Teresa, não sei se concorde com o "não ler". Quer dizer, são livres de o fazer, claro, mas penso que devemos sempre fazer o esforço de ler as coisas para perceber se de facto se confirma ou se se altera uma ideia feita. Não penso que devamos "demolir" o livro sem mais nem menos, mas sim deixá-lo demolir-se pelas suas próprias características, lidas.
    O que penso não ser desejável é apenas uma litania de encómios, que se verifica sempre à margem da leitura propriamente dita.
    Abraços,
    Pedro

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  5. Sim, Pedro, tens razão. Mas há tanta coisa boa para ler... Abraços!

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  6. os desenhos säo bonitos..mas ded esenhos bonitos está o inferno cheio

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  7. Não querendo refutar os fóruns de discussões do tipo das CBDPT, com a sua devida importância para a produção de conhecimento, preferia que esse "apropriado" se estendesse para além deles. Não sei o que nos impede (culturalmente?)de discutirmos mais em fóruns informais. Aliás, esses lugares podem ser um excelente tubo de ensaio, pois aí não há nada resolvido ainda, está tudo em aberto, os papéis ainda não foram escritos.. (bem sei que os papéis estão sempre a ser reescritos, mas espero ter-me feito entender.
    Sobre a obra do Thompson, devo confessar que partilho das opiniões aqui deixadas (e em termos genéricos). Blankets ficou-me atravessado, não tanto por julgar que tinha sido traída pelas críticas (que não procurei antecipadamente), mas porque de alguma forma seria um livro que estaria dentro de um certo cânone (também este forjado por uma certa crítica). Não discutirei isso. Blankets é uma obra que não se safa pelo desenho, porque o virtuosismo não significa nada para além dele mesmo. Alargando a crítica a Habibi (leitura já começada mas entretanto em standby), de facto Thompson parece minado pelos clichés gráficos. Quanto ao argumento, e sendo coerente com a forma, pouco nele surpreende, além de estar ancorado num certo ideal puritano misturado com a ausência de posicionamento crítico - que pessoalmente incomoda. Essas características vêem-se também no seu Carnet de Voyage e devo dizer que, tendo-o, ainda não consegui pegar nele sem bocejar. Falta-lhe sal e talvez esquecer-se das influências cujos códigos narrativos já estão em loop há muito tempo.
    Tinha também uma pergunta, mas varreu-se-me. Quando e se a encontrar, voltarei aqui.

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  8. Caríssima Marta, Em primeiro lugar, agradecido pela mensagem longa e dialogante. Em primeiro lugar, espero não estar a ler mal o seu primeiro parágrafo, em resposta à minha provocação inicial, mas eu nada tenho contra espaços informais de discussão. Apenas me referia a que aqueles que existem raramente pretendem discussões e, se me permite, a minha tentativa de os criar tem sido gorada por falta de participação. A Marta avança com essa participação, e espero que isso signifique o início dela, mesmo.
    Por outro lado, foi mais directa e contundente em relação ao Thompson do que consegui ser (ou falhei em ser). Muita parra, pouca uva. Não é que não existam momentos belos, bem conseguidos, promessas súbitas - todos os livros, por mais medíocres que sejam, têm páginas memoráveis, para parafrasear Borges mais uma vez (citação de algibeira) - mas o gesto maior que se sente Thompson querer fazer falha redondamente. White Men's Burden, de certa forma.
    Obrigado, Marta. Mal lhe surja a pergunta suspensa, cá estaremos.
    Pedro

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  9. Olá de novo. Não sei se leu mal, mas eu tenho a certeza que não o responsabilizava pela ausência de discussão neste seu blog, que se sente um lugar aberto e generoso para com a participação. Porém devo dizer, já agora, que acharia interessante se essas discussões que tem por exemplo com o Domingos Isabelinho pudessem ser partilhadas (mas sei que isso não depende apenas de si). Não há muita gente informada ao nível a que nos habituou – aliado ao interesse pela bd. E isso talvez responda ao porquê da fraca participação, embora não seja uma justificação que eu própria defenda.

    Mas, pegando no exemplo de Habibi, como falar de alguma coisa sem a conhecer? Eu fi-lo, sabendo que estaria a alargar uma opinião tida com uma outra obra, ainda que do mesmo autor.
    Entretanto já li mais e concordo que esta não é uma obra que se possa recusar ou enaltecer sem mais.

    Ainda que tenha referido que há outras matérias possíveis de se esmiuçarem, optou por aquela que porventura gere maior discussão, porque cabe à responsabilidade dos autores, mormente sejam estes mais “reconhecidos”, um cuidado acrescido com a representação do outro, não vá isso resvalar em perpetuações de clichés evitáveis. Pois não estarei totalmente de acordo com este ponto de vista.

    Uma das razões prende-se com o facto de acreditar que o autor diz da sua voz e sobre ela recairão sempre razões para nos acercarmos mais ou menos, consoante vemos reflectido em maior ou menor medida a nossa própria visão do mundo. Ou seja, a obra pode ser criticável à luz do que se quiser, mas não creio que possamos pedir do autor mais do que essa voz. Nesta perspectiva, Thompson não poderia ter feito senão aquilo que fez, assumindo a sua ingenuidade, o seu pouco interesse num discurso político (embora todo o discurso o seja), as suas fórmulas não suas.
    Penso que a responsabilidade maior cabe aos leitores. Não se deve assumir que os leitores de Habibi não terão em conta as falácias das suas representações ou o melodrama instalado (que por si só torna a coisa pouco realista). Na minha experiência senti que as representações de Thompson estariam reféns dessa visão “de fora” – e a estratégia de “amalgamar” referências acabou por favorecer a natureza ficcional e de construção de uma qualquer realidade que não aquela mais explicitamente referenciada, embora tenha consentido também um ruído de narrativas ou de intenções que não favorecem a(s) história(s) e que, como disse e bem, não permitem uma espécie de autofagia, em que as várias hsitórias respondam umas às outras e finalmente se completem no leitor.

    Uma outra representação que pode explicar esta minha posição é a de Dodola. Dodola é uma boneca. Dodola não é representativa da mulher. A forma de expressão do seu corpo já mo diz que chegue. Thompson estragou Dodola com o seu olhar ("de fora"), mas talvez não se possa esperar mais dele que esse seu olhar (que aliás vem de trás), portanto eu leio (e deixo de ler) Thompson deixando este pé atrás e não permitindo que o ser-se mulher seja Dodola. Ou seja, não vejo perigo em que a minha visão do mundo seja alterada por uma visão do mundo.

    E a tal pergunta foi-se mesmo... :)

    Marta

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  10. Olá, novamente.
    Obrigado pelo que diz deste espaço. De facto, gostaria muito que se mantivessem discussões (inteligentes, e não de bate-boca) neste espaço, e desde já a Marta está a contribuir para isso. As discussões a que me refiro são feitas num contexto em que há mais gente para tudo, logo, há também mais gente para leituras críticas. Por cá, é tudo a menos. Avancemos.
    Não digo que não se possam discutir as coisas das mais variadas maneiras, e a não-leitura de uma obra até pode ser uma delas, quando as coisas são sofríveis ou inenarráveis (como "Holy Terror" de F. Miller, p.ex.); mas a Marta acerta na mosca quando escreve "sem mais": é isso mesmo, é preciso esse "mais". Avancemos mais.
    Compreendo o que diz e aceito quando fala de que um autor "não tem de fazer" isto ou aquilo, pois eles devem cumprir uma obra e depois caberá à comunidade interpretativa a sua leitura e valorização, sem dúvida. Mas por isso mesmo, o autor deve responsabilizar-se depois pela forma como essa mesma obra pode ser recebida, mesmo quando essas interpretações podem não coincidir com as dele (um autor, por mais estranho que isto pareça, não tem "autoridade" sobre a interpretação da sua própria obra; essa seria uma falácia pateta e fácil). Também concordo, ainda que parcialmente, que Thompson "amalgamou referências" para "favorecer a natureza ficcional", e etc. Bem visto. Mas, e este é um mas fundamental, é essa natureza ficcional que importa ler, e essa está em contacto e diálogo com o mundo, e não nos podemos abstrair dela, até no seu momento histórico. Se se tratasse de uma novela do século XIX, estaria a responder a um quadro de referências e formas de pensamento da cultural totalmente distintas, mas esta é uma obra da contemporaneidade, do pós-modernismo, do pós 9/11, ou de outras realidades que queira trazer à luz da sua discussão e que deveriam dar uma faceta crítica a este texto. Sob essas luzes, distintas, diferentes e até possivelmente contraditórias, ela vai perdendo a força. Aquilo que não posso aceitar, de forma alguma, e categoricamente mesmo, são as "intenções" do autor. Jornalisticamente, é sempre bom termos oportunidade de falar com o autor e fazer a mais patética das perguntas: "o que é que quis dizer com isto?". Mas não estamos aqui no círculo do (mau e intelectualmente pobre) jornalismo. Alegar as intenções é uma falácia mesmo, e uma imposição insustentável de limites sobre a interpretação (o que não é o mesmo que permitir toda e qualquer interpretação, o que seria um abuso, e até um abuso do conceito de Eco de "obra aberta"). Por outras palavras, o que ele quis fazer é lá com ele; o que ele fez está aqui para ser lido.
    Obrigado, Marta, mais uma vez, pelo estímulo (e veja lá essa pergunta!).
    Pedro

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  11. É a minha primeira vez aqui no blog, e após ler a crítica do Pedro, e os comentários, devo partir em defesa da Obra, mais necessariamente, a princípio quero falar sobre o comentário do Anônimo sobre a representatividade de Dodola como mulher. Afinal o que significa ser mulher? Por que ela estraga o conjunto da obra? Afinal ela se vale dos meios que possui para conseguir o que quer, o fato de ela não ser nenhuma Margaret Tatcher, não demonstra que ela não tome decisões por si mesma que não seja astuciosa, a obra discute as questões de gênero e sua construção na sociedade. Quer uma personagem feminista fake assista ao filme A jovem rainha Vitória. Dodola transforma água em ouro pela grande lábia, a mesma de Sherazade, o que implica em dizer duas coisas uma sobre o comentário da Marta, e que muit me incomodou quando ela disse não haver criticidade alguma em Habibi, ela corre em toda parte: a água é o recurso básico que movimenta a vida das pessoas ela é o elemento onipresente, desde a tinta que corre como um rio, à "transformação" de Dodola, os banhos no navio, este ancorado em um deserto onde outrora houvera um mar, com o desenvolvimento da obra, Zam e Dodola voltam a este e o encontram soterrado de lixo, de garrafas de água vazias, ora eis onde reside uma outra crítica muito contundente: a acumulação da água, a represa que permite o desenvolvimento de uma nação como a da Wanatólia, um desenvolvimento construído pelo sofrimento e pela destruição contínua do Outro, eis que o olhar que Craig Thompson mira sobre si mesmo, sem nosso reconhecimento para com o Outro, como garantir o reconhecimento do Outro para conosco? Dessa forma a miséria do pescador que resgata Zam e Dodola, e de todos os moradores da favela têm sua explicação na desigualdade social entre os donos da represa e os rio abaixo, aos desatentos, o que parece que aconteceu com a crítica do Pedro, que se limitou justamente ao aspecto das representações das personagens,devo dizer que existe muitas discussões que ocorrem paralelamente, mas é a água parece fundamental para captar as relações que se desenvolvem ao longo da obra. Quanto a representação e imitação de Sherazade e de Dodola, ambas se valem do poder de contar histórias, ambas salvam-se devido a estas habilidades, a primeira foge da ira do rei contra as mulheres, a segunda foge para o mundo ficcional da narrativa em um périplo que vislumbra para afastar-se do mundo decrépito que se encontra, para explicar a si mesma. Embora as referências de Craig sejam aquelas que o Pedro citou, quais eram as dos autores lidos por eles? Dentro do espírito Orientalista não houve quem pegasse as obras dos autores desses países e tentasse ter sua própria visão do Outro, que o cliché não apague o que há de moderno na sua narrativa, o nosso lugar na nossa relação com o outro permanece esse: viver a opulência de uma vida de consumo às custa do sofrimento alheio? Craig não cria o esteriótipo, ele os utiliza para mostrar nossa própria face, o país de anatólia também vende seus órfãos, o desenvolvimento material da sociedade de Wanatólia não consegue reverter o sofrimento humano das grandes periferias do mundo. A crítica foca muito bem a representação, mas esquece os demais elementos envolvidos, e as próprias mensagens que correm ao longo da obra: feminismo, relações de gênero, relações étnicas nos textos sagrados,consumo e meio ambiente (não se pode esquecer a chuva ácida, por exemplo, a água tornada veículo da morte). contemporaneidade é realmente uma qualidade? As seis lições para o próximo milênio de Italo Calvino elege qualidades para a literatura do nosso milênio: Leveza, velocidade, exatidão, visibilidade e multiplicidade, creio que talvez a obra não tenha uma exatidão, mas preenche minimamente os demais quesitos.

    gostei muito da crítica apesar do comentário não muito a favor
    Grande abraço

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  12. Caro Artur Scudeler,
    Em primeiro lugar, agradeço a nota que deixou, as palavras que teceu e a resposta a que obriga regressar em relação a esta obra de Thompson.
    Não sei até que ponto, porém, entendi todo o alcance do que pretende indicar, uma vez que a forma como expõe as suas ideias - não leve a mal a franqueza - não é muito clara. Não entendo muito bem por onde quer pegar na questão da "água": como a forma simbólica que ela parece assumir em todo o texto, ou como possível representação das formais reais que cumpriria criticar quando se fala das relações entre a perspectiva ocidental e o outro "árabe", "islâmico", etc.?
    "Habibi" não é uma obra a deitar abaixo nem a elogiar sem uma entrega complexa. Na minha perspectiva pessoal, mas que apenas parcialmente foi exposta, acho-a uma obra pretensiosa, cheia de "boas vontades" e, por isso, falha, porque não compreende a limitação que ergue na sua posição de privilégio para com o outro, pelo qual ou mesmo em nome do qual tenta falar (Thompson já fizera isto noutras ocasiões).
    Não entendo também qual o alcance da re-leitura que faz do Orientalismo: quer descobrir aspectos positivos nessa apropriação? Não digo que seja impossível, mas é preciso dialogar directamente com as fontes que a estudam, e não simplesmente imaginar que essa apropriação possa ter algo de positivo só porque "dá a ver o outro" ou algo assim.
    Quanto ao livro do Calvino, também importaria estudar cada um dos quesitos individualmente, como diz, e depois tentar identificá-los em "Habibi". Assim de cor, numa abordagem superficial, eu teria alguma dificuldade em concordar que "Habibi" respeitaria os princípios indicados pelo autor italiano; bem pelo contrário...
    Mas esta discussão é mesmo para ter lugar, construindo-se aos poucos.
    Obrigado,
    Pedro Moura

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