11 de julho de 2012

Un autre monde, les dessins et le secrets. Grandville (Pandora/Amateur)

Numa obra fundamental de Philippe Kaenel sobre “a invenção da profissão do ilustrador”, verificada ao longo do século XIX, são apontados três nomes vistos como absolutamente centrais na emergência dessa tarefa, quer em termos profissionais quer artísticos: Rodolphe Töpffer, Gustave Doré e Jean-Ignace Isidore Gérard, mais conhecido por “Grandville” (Le métier d‘illustrateur). As razões pelas quais são estes os nomes mais destacados, em detrimento de, por exemplo, Tony Johannot, Paul Gavarni ou Bertall, são múltiplas, mas bastemo-nos pela indicação sumária de todos eles terem inaugurado “gestos” conducentes a um entendimento e uma prática modernos da ilustração que não havia atingido esses contornos antes e sem as suas obras respectivas. Em relação a Grandville, possível e relativamente menos citado que os outros dois (Doré, sobretudo, tem conhecido uma fortuna para além dos leitores especificamente interessados na história da ilustração e da banda desenhada), a obra que lhe marca a inflexão máxima é Un autre monde, uma espécie de obra delirante pelas formações e deformações possíveis através de manipulações ópticas e gráficas, e das potencialidades expressivas que o próprio desenho permite em transpor as portas do sonho e em libertar a imaginação fantasiosa. Essa obra, publicada em 1844, é um marco no desenvolvimento da ilustração moderna. O volume que aqui trazemos à discussão é um instrumento maravilhoso para a sua aprendizagem, estudo e apreciação: trata-se de uma edição quasi-fac-similada (já explicaremos o limite), acompanhada por material adicional, de esboços e estudos, desenhos preparatórios, o brouillon original (um manuscrito, hoje no museu Itami, no Japão, integralmente reproduzido sob a forma de caderninho), a provas, anúncios, documentos, um catálogo dos desenhos e uma cronologia, e, enraizando a discussão no saber científico desenvolvido, dois ensaios críticos, de Ségolène le Men e Jan Ceuleers. Ou seja, não só é uma oportunidade de poder apreciar (ler, ver, escrutinar, compulsar) a obra original de Grandville, como são proporcionados alguns instrumentos de contextualização e conducentes à análise. (Mais)

A importância de Un autre monde, no campo da história da ilustração, prende-se igualmente, de acordo com muitos dos seus estudiosos, ao facto de que se trata do primeiro projecto em que são as imagens a tomarem a proeminência quer da fundação conceptual, quer da produção quer ainda da primazia de leitura (neste sentido, só irá encontrar na contemporaneidade um vasto e aceite campo da sua própria condição de possibilidade, como no caso recentemente lido de Les hommes-loups, de Goblet, e não mais uma “excepção” ou uma “anomalia”). É assim que entendemos o entusiasmo de Rodolphe Töpffer, com quem Grandville tinha relações de admiração mútua, numa carta de 20 de Junho de 1841 ao editor Dubochet: ““Na verdade, ele [Grandville] não ilustra. É um homem que, ao lado do poema, compõe o seu próprio numa outra língua, língua maravilhosa que apenas ele possui e que todo o mundo compreende!” É também essa frase percursora de um tipo de entendimento da tarefa da ilustração que repetimos noutros textos, sob o signo duplo de Flaubert e Tsvietáieva, enquanto tradução. O próprio Philippe Kaenel contribui para essa ideia: “Ela [a ilustração] oferece uma leitura segunda, em paralelo, dos textos, e as fronteiras semânticas são por vezes difíceis de estabelecer entre textos conexos como ‘comentário’, ‘tradução’, ‘interpretação’”. No caso de Grandville, o factor de dificuldade dessas fronteiras torna-se particularmente intricado.

Apenas como fait divers, a admiração mútua entre Töpffer e Grandville notar-se-á, neste livro, na personagem do segundo, o Capitão Kracq, decalcada fisicamente do M. Crépin do primeiro.

Temos que nos recordar que a própria palavra “ilustração” era relativamente nova na sua época, um neologismo emprestado ao inglês, e que a profissão - uma categoria sócio-profissional remunerada, reconhecida e integrada em vários discursos - de ilustrador era também ela recente (Kaenel é aqui fulcral). No primeiro texto desta publicação, um estudo de Ségolène le Men, ela mesmo uma referência central no estudo da ilustração francesa do século XIX, é mais uma vez apontado o livro Histoire du roi de Bohême et de ses sept châteaux, com texto de Charles Nodier, ilustrações de Tony Johannot e gravuras de Porret, e editado pelos irmãos Delangle, de 1830, como “a obra fundadora do género do livro ilustrado romântico” (pg. 12). A razão de se citar, em catadupa o escritor, o ilustrador, o gravador e o editor é sobremaneira importante, uma vez que é neste momento que se coalescem não somente os papéis de cada um desses agentes mas também, ou mais importantemente, a sua coordenação criativa (e profissional, económica, etc.), de maneira a fazer emergir um novo entendimento do livro ilustrado não só como objecto de fruição mas como mercancia e plano de inscrição social. Ora, Un autre monde será visto como “apogeu” (9) desse género, sendo essa tal primazia da imagem um dos aspectos centrais, comentada, pela própria imagem, no interior da obra, como se pode ver pela vinheta que encerra o prefácio a obra, onde um lápis (o símbolo metonímico do ilustrador) antropomorfizado se lança à escalada das “montanhas da imaginação”, ficando a pena (o escritor) para trás, ou como se escreve na obra, “M. le Crayon a voulu marcher avant Mme la Plume”.

Mas em relação ao livro de Nodier e Johannot a relação de ilustração deveria ser parentética, até certo ponto, já que, ainda que se estabeleça essa tal intricada relação processual-económica, aquelas entre os textos e as imagens são algo disjuntivas (mas igualmente relevantes e inovadoras, na época). Onde o gesto editorial era muita vezes o gesto inaugural e organizativo, é a criatividade dos autores - num caso (Histoire du roi de Bohême) o escritor, noutro (Un autre monde) o ilustrador - que procuram condições materiais específicas para fazerem transmitir o melhor possível as suas noções e expressão. Seja a tipografia, que ganha igualmente uma dimensão expressiva (de modos tão diversos do de tantos projectos contemporâneos, supostamente mais “modernos”), seja a paginação, a encadernação ou a composição, tudo isso concorria para o plano da expressão. Anos antes de Un coup de dés….

A importância de Grandville é muito marcada. Não deixa de ser significativo que o grande e inacabado projecto de Walter Benjamin, O Livro das Passagens, contenha uma secção, a da pasta G, seja dedicado a “Exposições, Publicidade, Grandville” (enquanto não é publicada a versão portuguesa de J. Barrento, pautamo-nos pela tradução em inglês de Eiland e McLaughlin). Benjamin, na sua qualidade de historiador dialéctico, de um marxismo muito particular e não dogmático, estuda as afinidades que existem entre a publicidade, “disciplina” que havia emergido nessa época, e as suas qualidades feéricas - quer por questões de estilo artístico, com o Jugendstil ou outros, quer pelo uso de certas estratégias técnicas e de localização, como os posters nas paredes, em candeeiros, colunas ou estruturas das pontes, a iluminação a gás, quer ainda pela matéria do que se representa, a vida “fútil” dos salões e bailes - e algumas das opções imagéticas de Grandville, tudo subsumido à assunção dos bens comerciais e instituição do capitalismo: “A entronização das mercadorias (Kaufwaren), com o seu lustro de distracção, é o tema secreto da arte de Grandville. (…) A ingenuidade [da sua obra] na representação de objectos inanimados corresponde ao que Marx havia chamado de ‘argúcias teológicas’ dos bens”, escreve Benjamin no Exposé de 1935. Num dos fragmentos tipicamente crípticos e sumários, o filósofo declara, como uma espécie de súmula: “Se a mercadoria era um fetiche, então Grandville era o seu feiticeiro tribal”[G7,2].

Grandville seria extremamente influente quer na cultura popular (o álbum Innuendo dos Queen usa uma imagem do artista francês, retirada deste livro) quer na erudita. Baudelaire escreveu sobre ele, falando da “natureza transformada em apocalipse”, e, avant la lettre, parece prometer a possibilidade de análise desta obra gráfica sob os auspícios da noção de Unheimlich de Freud, o estranho familiar que cria um intervalo, ou um espaço de indeterminação entre o animado e o inanimado, o orgânico e o mecânico, o animal, o vegetal e o humano, entre a vigília e o sonho, o racional e o fantástico. O ensaio incluído de Jan Ceuleers, “Aspects d’Un Autre Monde de Grandville”, vasculha, por assim dizer, a obra de autores anteriores (Jacques Callot, Goya, William Heath), contemporâneos (Bertall) e posteriores (Max Ernst, Disney), para encontrar linhas de desenvolvimento imaginativo, temáticas e culturais que constituem uma herança partilhável, e fazem entender este livro do ilustrador francês como uma espécie de nexo. Questões de fisionomia e caricatura, reciclagem/reapropriação e fantasia, teatralidade e onirismo, antropomorfia e espectáculo (no sentido debordiano) são o que compõem as linhas mestras da sua discussão.

Esta edição, como dizíamos, não é propriamente um fac-simile. Para o ser, o objecto recentemente publicado deveria ser uma cópia física, dimensional e materialmente o mais idêntica possível do original. Mas o que temos aqui em mãos é um volume que mima essa qualidade de álbum de luxo novecentista, com todos os materiais já indicados [capa em relevo, marcador, bordos dourados] e, depois, compondo uma parte substancial dele, uma reprodução, ora condensando quatro páginas duplas do livro aberto por cada página dupla deste livro ora isolando uma ou duas das ilustrações ou vinhetas. É possível, portanto, ler o texto todo do livro original, mas com algum esforço óptico. Não obstante, é esta uma oportunidade para compulsar a integralidade de, e preparem-se para o título exacto e completo, Un autre monde. Transformations. Visions. Incarnations. Ascensions. Locomotions. Explorations. Pérégrinations. Excursions. Stations. Cosmogonies. Fantasmagories. Rêveries. Folâtreries. Facéties. Lubies. Métamorphoses. Zoomorphoses. Lithomorphoses. Métempsycoses. Apothéoses et autres choses, desde logo demonstrando uma constelação temática e de variações.

A leitura do livro de Grandville, o livro dentro do livro presente, deve ser feita com uma atenção muito particular, precisamente devido àquela primazia de que falámos no início. Isto é, não se devem ler os textos e depois fazer o olhar desviar-se brevemente  para as imagens para se encontrar uma representação concreta das palavras, ou uma ancoragem na representação imagética, mas sim procurar pelas fendas entre um e outro plano de representação - o texto escrito e a imagem - que se tornam elas mesmas pólos de produção se sentido. Nalguns casos, esse sentidos estão muito próximos da transformação das imagens. Mas qualquer que seja o efeito sobre o leitor, e imaginamos que eles sejam múltiplos conforme as associações constituídas, como se espera pela própria promessa feita pelos ensaios interpretativos incluídos neste projecto, seguramente que poderá servir de modelo e lição para projectos contemporâneos, tantas vezes subsumidos a entendimentos algo redutores da ilustração, subsumindo-a de um modo do qual Grandville muito se esforçara para que ela se libertasse…
Nota: agradecimentos a Frederico Duarte, pela oferta.

2 comentários:

  1. Onde este livro pode ser adquirido ou emprestado?

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  2. O livro encontra-se no mercado, por isso não será difícil fazer uma encomenda através das várias livrarias online existentes. Para empréstimo, não saberei. Esta faz parte da minha biblioteca privada, mas se estiver em Lisboa, pode-se sempre pensar numa visita, claro.

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