20 de dezembro de 2012

Urlo. Luca Conca (Passenger Press)

Para um livro cujo título é, de modo visível, veemente, colorido e agregado a uma estrutura gráfica que sublinha toda a urgência da cena da capa, “Grito”, não deixa de ser surpreendente que não sejam jamais utilizadas onomatopeias, nem os balões de fala se ocupem dos ruídos que não-verbais das personagens, ou não se procurem outras formas de representação do som. Poder-se-ia dizer, portanto, que Urlo - sobre o qual prometêramos falar - quer fazer viver a sua intriga num espaço silencioso, se não fosse a presença de diálogos, de frases curtas, de intervenções bruscas.
Como já havíamos debatido a propósito de obras tais como Dragon Head, Blame!, Defier, ou outras com que as havíamos comparado, também este curto (36 pranchas) episódio de uma história maior (que apenas no site descobrimos terá um segundo e último volume) lança o leitor de imediato no meio de uma acção frenética a desenrolar-se, para apenas mais tarde ter uma breve oportunidade de encontrar um recuo temporal que permite construir um contexto maior, mas nunca uma explicação final. Isto é, esse recuo afinal apenas nos confunde e nada explana. Um homem foge de uma criatura tremenda, monstruosa, que outros homens haviam guardado. No entanto, não nos parece que esses mesmos homens tenham qualquer controlo efectivo sobre essa criatura, e parte dessa falta de efectivo domínio passa por um sacrifício físico que não é visível no desenho da capa - a qual, na verdade, oculta esse sacrifício. Mais, esses outros homens parecem instigar o protagonista à fuga, que ocupa a maior parte do livro, mas também participam nela.
O terror - género em que se inscreveria este livro - não surge aqui tanto como sendo sobre algo que não se sabe o que é, ou que participa de uma qualquer espécie de visibilidade parcial. Tal como ocorria no filme Kuemul/O Monstro, de Bong Joon-Ho, este monstro surge à luz do dia, todas as escamas e fiadas de dentes iluminadas, o corpo a escassos metros, a sua intenção facínora claríssima. A sua apresentação, nítida, em nada diminui o terror que ele instila sobre a putativa presa. E esse pavor emerge de uma mistura entre a dor física, a imperativa e ofegante fuga, mas também a sobrevivência mental face a este evento incompreensível de um monstro e uma situação que não aparenta ter qualquer razão. O problema do desconhecido está precisamente na total falta de acesso a mecanismos que possam esclarecer essa situação que, mal viradas as primeiras páginas, começa de imediato, e num ritmo imparável. O isolamento do protagonista, que atravessa uma densa floresta, uma auto-estrada e finalmente uma aldeia, sem se cruzar com mais ninguém, aumenta essa tensão indizível.
Há uma urgência no desenho que mima ou segue a urgência do protagonista. Essa palavra surge-nos de ímpeto, obrigando-nos a percorrê-la na sua exactidão, como a que mais se coaduna ao trabalho gestual de Luca Conca - etimologicamente ela relaciona-se com uma pressão exercida, que por sua vez devolve à ideia de trabalho. Conca é pintor, numa nova cena figurativa da Itália contemporânea, e tem-se dedicado à banda desenhada mais recentemente, tendo saído um livro anterior a este em colaboração, mas que desconhecemos (Il Ritratto). Daí poderemos inferir que se encontra munido com instrumentos precisos no que diz respeito à figuração, às escolhas composicionais e a cromatismos, mesmo que queiram ver na academia um sarilho de espartilhos. Desenganem-se, porém, se pretenderem ver na urgência exercida, e que sublinhamos, neste livro - que não pode de forma alguma ser visto como “um campo de descontracção do pintor”, ou coisa que o valha - a ideia de uma sumária abordagem da inscrição dos traços, de uma pressa impensada ou irreflectida, ou sequer de uma procura tacteante, ao acaso, das formas que depois emergiriam: cada vinheta apresenta uma profusão de riscos justapostos, cruzados e mesclados que denotam um aturado e ponderado trabalho, quase zen talvez, que visita as formas e os melhores modos de as transmitir em linhas num papel, até mesmo de acordo com princípios de um virtuosismo académico que se vê assegurado mas abandonado onde necessário, ou desviado onde necessário, e que depois se consubstancia numa veloz expressividade: o resultado final. São sobretudo as imagens em que se mostram as paisagens florestais, de uma vegetação atapetando o chão e cobrindo todas as dimensões da cena, e o corpolento monstro pintado de um modo diverso - em pinceladas vastas em aguada contra o aparo dos outros objectos a linha preta? -, que encerram o segredo de obsessão na criação de linhas deste autor. Tudo isso encerrado numa variadíssima  composição de páginas, e que deseja sempre demonstrar a planificação diferenciada de fundos e figuras destacadas, de ideias de profundidade e dinamismo, mas ao mesmo tempo de desorientação do protagonista… É em algum desses sentidos gráficos que Conca se assemelha ou aparenta, através dessas qualidades também presentes noutros autores que primam pela equilibradíssima conjunção entre exactidão e ruído, a nomes tais como os de Marco Mendes, Arlindo Silva, ou a algumas composições de Sanpei Shirato, ou outros momentos em Eddie Campbell.
A vertigem densa e a urgência é dele.
Nota final: agradecimentos a Jorge Coelho, pelo empréstimo do seu livro.

5 comentários:

  1. o horror na bd consegue no máximo um sorriso; näo funciona

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  2. Concordo, sobretudo quando nos rimos às gargalhadas com o "horror" de certos trabalhos... Não é?
    :)
    Rabanadas!

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  3. näo tem nada a ver com o "horror" dos trabalhos, tem a ver com as limitacöes do papel ...pensei que dava para entender à primeira

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