15 de fevereiro de 2013

Mesinha de Cabeceira # 23 (Chili Com Carne)



O Mesinha de Cabeceira começou há vinte anos e vinte e dois/três números atrás. Na sua primeira vida, sob os auspícios dos autores Pedro Brito e Marcos Farrajota, era um fanzine “clássico” (caderno de folhas A4 dobradas, reprodução a preto-e-branco, agrafado), que procurava sustentar uma linguagem, então relativamente inovadora, que respondia de modo directo às tendências internacionais da banda desenhada dita alternativa, pós-underground, e que compreendiam a autobiografia, um retrato social das culturas imediatamente locais, uma plena inscrição no quotidiano e uma atenção particular para como toda uma série de subculturas, especialmente as musicais. (Mais) 

Não nos parece ser interessante criar apodos absolutistas, como “o fanzine mais duradouro” ou outros quejandos, e não nos poderemos esquecer que a vida da própria associação Chili Com Carne foi procurando sempre adaptar-se aos contextos epocais, às tecnologias de reprodução, informação e distribuição acessíveis, o que transformou profundamente os contornos desta publicação - isto é, apesar do Mesinha de Cabeceira contar com vinte e tal números distintos, não estamos a falar sempre de objectos idênticos entre si quer em termos de formato, materialidade, vida distributiva e política editorial -, mas não obstante, não deixa de ser significativo este número e longevidade atingidos. Entre nós, isso é decisivo. Já teve números de histórias curtas, ou mesmo episódios, já foi antologia de novíssimos, já foi mini-álbum de histórias completas, colecção de monografias, e teve complementos especiais (o Meseira de Cabecinha e, de certa forma, o Osso da pilinha poderá ser arrolado, esperamos). A coordenação com os outros projectos - Mercantologia, o selo Mmmnnnrrrg, etc. - , são também de uma importância fundamental e reveladoras de uma política coerente. A palavra “mutante” faz parte do vocabulário constante.

Além do mais, estamos em crer que o Mesinha poderá existir mesmo como modelo para toda uma outra série de publicações com as quais pode ser cotejada, quer em termos editoriais, quer em termos de publicação, quer em termos de objecto: se nalguns casos esse modelo pode ser “de imitação” ou pelo menos “para ser seguido”, é verdade que noutros pode ser sido um “modelo de afastamento”, ou um crivo ao qual essoutras publicações se queriam desmarcar. Não deixa de o colocar num nódulo significativo no panorama editorial do nosso país. Tampouco nos parece ser relevante querer enquadrar redutoramente esta publicação num descritivo como “alternativo”, “independente”, “amador” ou coisa que o valha, já que praticamente toda a plataforma ou cena da banda desenhada em Portugal é relativamente pequena e estanque, próxima, conhecida entre si, e são mais os projectos que gravitam próximos de uma experiência deste tipo (edições abaixo das cinco centenas, distribuição relativamente restrita, comunicação directa com um público especializado, troca de presenças) do que afastados dela.

É nesse sentido que também, e repetimos aqui o que já dissemos noutras ocasiões, a figura de Marcos Farrajota enquanto editor surge como uma presença insistente, energética, fortemente opinativa e facilitadora na busca de plataformas de edição/publicação para com um número significativo de autores, sejam eles mais experientes ou recém-chegados, propensos a linguagens diversas das mais genéricas às mais marginais, ainda que haja uma atenção particular para com autores de circulação difícil junto a um público mais tradicionalista (apenas a título de exemplo, recordemo-nos de Nunsky, Mike Diana, Janus e Christopher Webster). A transformação do MdC, e toda a Chili Com Carne, mais os projectos paralelos ou satélites, em locais de apresentação de trabalhos variados, muitas vezes com pequenas conquistas de circulação internacional, e a junção de tons, humores e estilos diversos num mesmo núcleo, apenas aumentam essa dimensão do trabalho.

Enquanto editor, houve um pedido da parte de Farrajota aos participantes neste número comemorativo. Se bem que os temas possam sempre descambar para intervenções desapaixonadas, o “Inverno” (que noutro local apontámos como sendo, a um só tempo, passível se ser entendido enquanto “de descontentamentos” mas também “celebratório”) surgiu como uma obrigatoriedade, aliado à ideia de serem submetidas narrativas moldadas e contidas. Isto é, de forma a evitar certos registos por vezes tipificados de fanzines - mas cuja generalização apenas poderia ser provada por uma análise mais cuidada -, que implicam uma certa poesia tardo-adolescente sensível, um ensimesmamento pós-urbano, ou exercícios desconexos de imitação ou até mesmo meras imitações, irónicas ou não, ou pior, pós-irónicas, de determinados géneros, pediram-se histórias que possam ser vistas enquanto tal. É discutível se todas as participações cumpriram esse pedido, o que nos obrigaria também a explicitar o que pode ser entendido como “história legível”, “tradicional”, “coerente”, etc. Seja como for, o número 23 colecciona, sem dúvida, uma variedade alargada de trabalhos sólidos, estilizados e muito vincados pelas assinaturas dos seus dezanove autores (a que se juntam mais dois, Pedro Brito e José Feitor, que actuam como artistas das capas sucessivas) - um número que nos poderá surpreender, ainda assim, por imaginar ser possível arrolar mais gente para um projecto de aniversário tão redondo, e que teve na última Laica uma dimensão expositiva (apenas a título de exemplo - e as razões são pouco importantes, é apenas uma constatação, já que se prenderão sobretudo com as disponibilidades pessoais - Brito não participa com uma história, e Joana Figueiredo, Ana Menezes ou André Ruivo não estão presentes).

Encontramos aqui alguns dos colaboradores de mais longa data, ou que poderão passar por veteranos enquanto companheiros de armas da publicação, como João Chambel, João Maio Pinto, Daniel Lopes e, claro, Rafael Gouveia, nome constante neste elos, ou autores que tiveram os seus percursos paralelos mas com alianças criativas e de amizade, como João Fazenda e Filipe Abranches. Associam-se ainda autores mais jovens que, de uma forma ou outra, tiveram nas páginas deste universo editorial alguns dos seus primeiros espaços de divulgação junto a um público mais alargado, como Lucas Almeida, Afonso Ferreira, Sílvia Rodrigues, Uganda Lebre e Zé Burnay. E ainda contamos com a participação de alguns amigos internacionais, dos quais destacamos Dice Industries.

A questão das histórias levaria às tais questões bicudas, pois isto dependeria muito do que se elegeria como normalidade e até se o respeito a essa visão normalizadora é algo que de facto se deseje. Por exemplo, João Maio Pinto apresenta uma história cujos começos já têm alguns anos e dá-lhe aqui uma forma mais definitiva, se bem que não possamos imaginar que a sua prometida conclusão se venha a cumprir tão cedo. Por outro lado, uma história como a de Daniel Lopes, mesmo carecendo de um final mais completo, digamos assim, com um fecho que parece ficar suspenso, não deixa de se apresentar com uma forma relativamente coesa e suficiente. Nalguns aspectos, recorda o livro House, de Josh Simmons, que também trata de uma inexplicável perdição de personagens em locais hostis, mas que sem que seja possível atribuir qualidades a nenhum dos intervenientes nem identificar razões pelas quais os eventos se dão.

As histórias de Uganda Lebre, João Fazenda, Bruno Borges, Afonso Ferreira, Stêvz, Silas, Zé Burnay e Tea Tauriainen são, cada uma da sua maneira, claramente lineares, respeitando eixos espácio-temporais nítidos, concentrando-se em personagens de contornos concisos e psicologia simples. As características são bem diversas, claro está -  Fazenda demonstra uma capacidade em tecer uma simples visão do hábito da vida familiar, Burnay e Ferreira avançam com imaginários mais ou menos irmanados, Tauriainen aposta numa curtíssima fábula gore-cute, Silas parece beber de acontecimentos contemporâneos para criar uma rábula absurda… -, mas todas elas apresentam os tais ingredientes diegéticos de uma maneira convencional. Uma vez que José Smith Vargas adapta um conto de José Gomes Ferreira (“A rua dos manequins”), é natural que essa naturalidade seja respeitada. Sara Gomes e André Coelho parecem contribuir com uma curta mais aberta nesses sentidos lineares, mas pode-se lê-la como uma ilustração de uma gigantesca metáfora, que não deixa de poder ser contada de um modo prosaico.

Já João Chambel, com uma história que parece ter lugar num cenário pós-apocalíptico e pós-humano, deixa em aberto alguns dos contornos da intriga, de maneira a que o leitor seja seduzido por essa mesma ambiguidade e force ele ou ela-mesmo a completação desse universo. Os ingredientes encontram-se lá, mas alguns deles são fugidios, ou as relações entre si não são decididas, mas é a sua presença que permite esse jogo continuado do lado do receptor. O mesmo, pensamos, poderá ser dito da intervenção de Martin Lam López.

Quanto às histórias de Sílvia Rodrigues (imagem ao lado), de Filipe Abranches, de Lucas Almeida, e, acima de tudo, de Rafael Gouveia - que não abandona o seu conhecido registo de um experimentalismo estático das imagens aplicado a um texto introspectivo - , caem noutros domínios literários, bem diversos daquele entendimento mais normalizado da narrativa. Não deixa de existir uma unidade de espaços, ou de personagens, mas abandona-se a linearidade aristotélica para se explorarem outros caminhos de associação, sobretudo com um impacto emotivo que passa ao lado da consciência verbal, se assim quiserem.

O trabalho de Dice Industries continua a par dos seus últimos experimentos formais, de que queremos dar conta mais detalhadamente em breve, associando-os enquanto um corpo muito concreto e coeso de pesquisa. Se esta “Dança Macabra”, no MdC 23, é menos narrativo em termos clássicos, a própria ideia da sequência hierarquizada que esse topos implica lança este trabalho a um campo mais alargado, senão da banda desenhada propriamente dita, pelo menos das narrativas visuais. A sua associação ao Inverno temático não poderia ser mais certeiro.

Em termos gerais, o tom desta nova antologia é de facto melancólico. Não deixa de ser algo expectável construir tramas em torno de cenários apocalípticos, paisagens inóspitas ou em que se desenrolam características colhidas de variadíssimos géneros para que sejam subvertidos numa certa amoralidade. É uma espécie de celebração pelo desencanto, de que as imagens criadas por Brito e Feitor são um signo potente. Não se cantam aqui vitórias, nem se glorifica o passado, e tampouco se esperam promessas de desenvolvimentos futuros muito específicos, mas constitui-se mais um gesto editorial muito marcante de um percurso, de uma atitude e de uma certeza em relação à forma de trabalhar, cujo testemunho é a própria existência deste pequeno grande tomo.
Nota: todas as imagens, inclusive o folhear inicial (apesar de cortado), colhidas do blog da própria CCC.

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