8 de abril de 2013

Fred. 1931-2013.

No primeiro manifesto do Surrealismo assinado por André Breton, em 1924, esse movimento é visto como uma das possíveis, se não a mais conseguida, passagem de regresso à infância, a qual é considerada mais perto da "vida verdadeira". O adjectivo "surrealista" é muitas vezes atirado sem grande rigor para se descrever qualquer objecto, artístico ou não, cujos contornos não se coadunam com a "normalidade", a "mimese" do mundo. Há casos, porém, em que o surrealismo, isto é, aqueles acréscimo de realidade que o acesso ao sonho permite, é mesmo levado a cabo da forma mais conseguida possível. Fred, que nos abandonou à nossa sorte, foi um dos autores que na banda desenhada com maior rigor lavrou o surrealismo. Foi à demasiado pouco tempo que demos conta de um livro que servia de uma espécie de balanço biográfico e da obra deste autor enorme, e tão pouco recordado por um maior público; agora olhamos esse livro como uma espécie de chave ou epitáfio.
Em Fred o humor, por vezes desabrido, tolo, intempestivo, não estava nunca longe de uma profundíssima compreensão do que faz mover os seres humanos, presos numa solidão incomensurável que não se ultrapassa mesmo no centro de uma multidão. Ou apenas se podem criar ilusões e erros de perspectiva em relação a essa solidão, os quais os instrumentos dos seus livros, como um piparote do Manu-Manu, faziam desaparecer subitamente. Numa palavra, a melancolia, o "signo de Saturno", era o afecto principal de Fred e da sua obra, tocando de perto, por dentro mesmo, o verdadeiro poder da verdadeira poesia. Ou, de novo, "humor", no seu sentido medievo-médico. Uma espécie de líquido lento que prende os objectos criados por Fred.
A sua obra é apenas aparentemente simples. Quer dizer, o seu acesso é simples, a sua leitura não apresenta escolhos, mas o impacto é protelado e os elementos específicos são muito variados. Fred pode ter criado o que parecem ser álbuns clássicos de humor franco-belga (e grego?) ou séries de aventuras, com Philémon,mas existem dimensões autobiográficas meio-veladas (Corbac aux baskets), formas de moldar o objecto literário inéditas (O Diário de Jules Renard), já para não falar dos modos estilísticos como ele criava as suas imagens, muitas vezes recorrendo a colagens quase à la Ernst, a forma como ele compunha as suas páginas, obrigando a duplos senão triplos olhares sobre essas unidades, a abertura dos seus universos diegéticos às impossibilidades-possibilidades da tinta no papel... Não deixou de ser uma pequeníssima e tímida homenagem a Fred as ilhas em forma de letras que povoavam rapidamente os cenários em Sanguetinta.

Na sua crónica do Hooded Utilitarian, Domingos escreveu um belo texto, que convidamos a ler, texto que de certa forma se torna igualmente, em retrospectiva, um epitáfio. É daí que retirámos a imagem, na esperança de que a corda apertada por Fred garanta um longo caminho livre ao Petit Cirque...
Não saberemos como Fred reagiu à sua própria morte. Talvez com um "Hum!".
Hum!
Agora procuremos Le train où vont les choses...

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