18 de abril de 2013

Kassumai. David Campos (Chili Com Carne)

Tendo acompanhado o trabalho de David Campos por toda uma série de títulos e projectos, como Bhikkú, Efémeride/Corto, Futuro Primitivo e Destruição, não era um exercício difícil projectar que o autor haveria de juntar todas as pequenas bandas desenhadas da sua experiência – uma temporada de seis meses na Guiné-Bissau enquanto voluntário de uma ONG – num livro. Kassumai reúne material já anteriormente publicado sob a forma de fanzines, mas apresenta igualmente muito material inédito e, sobretudo, uma forma final (o livro) que a transforma num texto coordenado e unificado num objecto. Não um texto contínuo, nem coeso nem linear; bem pelo contrário, quer em termos de instrumentos gráficos e técnicos quer no que diz respeito à estruturação narrativa, David Campos prefere a agregação de pequenos apontamentos, fragmentos, unidades mais ou menos diferentes. (Mais) 

A maior parte das páginas são compostas de vinhetas representando momentos singulares, e não tanto de transições de acções, acompanhadas de legendas autodiegéticas e retrospectivas. Existem alguns casos em que temos uma sequência mais clássica, de um intervalo menor de tempo, e outros em que surgem balões de fala, mas quer uns quer outros jamais assumem a importância central da “unidade” em que estão integrados. Não sendo propriamente uma estrutura idêntica à daquela experiência de mostrarmos fotografias nossas a outra pessoa e fazer uma narração do que elas representam, mesmo assim toda a matéria visual remete a uma espécie de apresentação global, com alguns pequenos focos a pequenos episódios ou situações. Acima de tudo, fica a sensação de uma calma na fabricação dos desenhos, como se tivessem sido feitos no momento, através de uma observação pausada, uma imersão no momento, ou então mimassem essa possibilidade.
O registo é, portanto, o diarístico, e de uma grande simplicidade, sem preocupações de sofisticação estrutural ou ontológica do gesto autobiográfico, da observação cultural, do apontamento de viagem. Não quer dizer que não haja alguns jogos que são permitidos sempre que se dá um espaço retrospectivo, no qual um “Eu narrador”, no presente da narração, poderá emitir juízos de valor ou tecer comentários sobre o “Eu narrado”, no pretérito das acções, criando-se uma diferença entre ambos (temporal, ontológica, etc.); mas eles são algo reduzidos, simplificados, e há mais um aceitar dos acontecimentos do que uma elaboração/efabulação posterior. A David Campos não parece interessar propriamente o registo jornalístico ou de literatura de viagens, as quais quase obrigariam à procura do exotismo, a uma permanente tensão entre um “eu” (“nós”) e um “eles”, mas antes essa escrita diarística que abraça desde logo o interrelacionamento humano.

Até podemos mesmo dizer que este livro é uma forma de demonstrar como a banda desenhada, se entendida (somente, redutoramente) como meio de comunicação, ela pode adaptar-se a todas e quaisquer expressões. A flutuação, digamos assim, de registos ou estilos gráficos, a caligrafia um pouco tosca, as gralhas em língua portuguesa, a diversidade de estruturas, faz adivinhar uma colecção de circunstancialismos de produção, efémeras, desiguais, apesar de se saber que a esmagadora maioria dos materiais foram criados tempos após a viagem, recorrendo à memória pessoal e a material escrito, fotográfico e outro. Com efeito, o autor recorre, aqui e ali, e de forma identificada, a registos fotográficos e videográficos, remediando-os. Este termo, segundo Jay David Bolter e Richard Grusin (Remediation: Understanding New Media), diz respeito à “representação de um meio no seio de um outro”, que não terá somente a ver com o surgimento de, por exemplo, uma fotografia enquanto objecto diegético, por mais decisivo para a intriga que seja, mas sim enquanto momento em que tudo aquilo que esse meio aporta é colocado nesse outro meio de maneira a colocá-lo em crise, questionamento, tensão, etc. No que diz respeito à banda desenhada e, por exemplo, a fotografia, obras como Maus, Fun Home, Le Photographe, a obra de Ricardo Cabral, entre algumas outras, vêm trazer questões diferentes e pertinentes, que tanto podem ter a ver com a questão da “verdade” e da “prova”, como de identidade, da criação de um espaço heterotópico no ritmo e sistema de representação (por exemplo, é a fotografia “colada” tal qual na prancha ou é ela “traduzida” pelo desenho?). David Campos, tendo um desenho relativamente solto, onde o domínio da figura humana e o grau de exactidão muitas vezes quebranta, lança mão portanto de toda uma série de estratégias diversificadas. Mas ao mesmo tempo, ao integrar sequências de um vídeo ou séries de fotografias, e não as utilizando somente como muleta para a representação e a memória, o autor procura também tornar todos esses instrumentos tecnológicos análogos à própria memória humana, ganhando uns e outra a mesma presença, a mesma matéria, no texto final.   
 
O trabalho de David Campos na ONG em questão, o CENFOR, Centro de Formação Rural, implicava toda uma série de tarefas, mas necessariamente implica uma interrelação imediata com a população local, de vivências radicalmente diferentes da de um português urbano. Definindo-se, mas não se fechando, como tal, o autor não apresenta momentos de oposição entre as culturas, nem sequer grandes discursos sobre as diferenças ou proximidades. Mais, as considerações que tece quando da sua visita a Cacheu, onde visita os fortes, e a estátua de João de Teixeira Pinto, chefe do Estado-Maior da Província, demonstra não estar interessado na exactidão histórica (o autor confunde-o com D. Carlos, erro que não corrige mas confessa), nem na pesquisa… Diz apenas, dessa mesma personagem, uma estátua meio-derrubada e abandonada no meio do capim (recordando o famoso poema Ozymandias, de Shelley), “mais um pelelé [“branco”, na gíria local]  burocrata, e militar… provavelmente, apenas mais um que passou na história como sendo um gajo fixe!!” É muito discutível se as críticas mais ou menos expectáveis que o autor faz do colonialismo histórico português, de que uma consequência é a miséria contemporânea da região e a herança política, são tão efectivas como poderiam ser na ausência de um enquadramento mais rigoroso, incorrendo-se no risco de tombar numa mera doxa bem-pensante. Quer dizer, David Campos entende que parte dos problemas da Guiné se associarão a uma herança histórica, da qual nós mesmos, herdeiros desse passado colonial, temos uma responsabilidade (que não cessa com um corte desejado imaginariamente de “não ser do meu tempo”), mas não procura articular isso num discurso mais elaborado.

O que parece mover o autor é tão-simplesmente dar conta da vivência de todos os dias, a necessidade de viver todos os dias, e aceitar, não sem alguma alegria (e, poderíamos dizer mesmo, com paz e liberdade, para respeitar o título do livro), essas mesmas vivências: levantar cedo, beber chá, descobrir novos álcoois, partilhar fumos, pintar um mural e contribuir para projectos educativos e de emancipação cultural, viajar como se viaja por ali, fazer novos amigos. Enfim, viver. Sem grandes mais.

Sendo o segundo volume da colecção Low Cost, e pretendendo trazer uma dimensão relativamente diferente à ideia de “banda desenhada de viagem” (que em si mesma é diversificada, e que de que se tentou demonstrar alguns aspectos no sub-núcleo da exposição central do FIBDA 2012, no qual Campos se integrava), não é de todo displicente ler este volume à luz dos instrumentos criados por Boring Europa, e no futuro, pelos próximos títulos. Acima de tudo, há uma espécie de “correcção de perspectiva” dos locais visitados, à margem dos guias turísticos, das rotas mais costumeiras e instrumentalizadoras de uma cultura média e mediática dos locais visitados pelos próprios viajantes, turistas ou visitantes, também eles “médios”, “mediatizadores” e, por isso mesmo, que apenas confirmam ideias hegemónicas do Si, do Outro (confirmando essa dicotomia até), dos espaços cartografados capitalisticamente, e por aí fora. Nesse sentido, o grau de ausência de exotismo no trabalho de Campos inscreve-o num posicionamento político significativo.

Utilizando lápis e pincéis meio-secos, aguadas, corrector sobre manchas nalguns casos, e impresso a uma cor, um castanho acinzentando (tal como Boring Europa o era a azul), Kassumai também assume um aspecto material significativo, como se estivéssemos perante um objecto associado à cultura económica do comércio justo. Na contracapa somos informados que “kassumai” – nome de uma estação de rádio na qual o autor participa quando da sua visita - é um termo felupe que designa “liberdade, paz e felicidade”, do que se depreende não se tratarem de sinónimos, mas de uma mesma realidade sobre a qual, em língua portuguesa, podemos destacar três prismas. Não poderemos ver todos estes prismas, as facetas diversas do trabalho de David Campos, como unificados num só objecto, o livro, da mesma maneira?
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

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