4 de abril de 2013

Par les sillons. Vicent Fortemps (Frémok)

Se crermos que a banda desenhada é uma arte, para além de meras expressões vazias, como numerá-la de nona, temos de admiti-la enquanto entidade viva. E fará parte dessa vida a sua possibilidade de se expandir em variadíssimas direcções, mesmo que elas quebrem muitos dos elemento que se lhe julgavam “essenciais”. Já escrevemos bastas vezes sobre isto para repetirmos os mesmos argumentos.
Fortemps, desde o seu surgimento enquanto autor, coordenado naturalmente com todo aquele grupo que nasceu na Fréon, faz parte de uma dessas mais contundentes linhas de crescimento, e Par les sillons, paradoxalmente, “naturaliza”-lhe a linguagem já reconhecível e amplifica essa pesquisa. Fortemps, de quem falámos apenas brevemente por um seu menor livro (mas não “livro menor”), tem uma técnica pouco usual, mas é também o que lhe insufla a sua assinatura, irrepetível.
Os “sulcos” a que o título alude não são somente os das trincheiras da guerra, as da frente e as infligidas sobre as terras, as famílias, as pessoas (podíamos dizer que este é um livro sobre a 1ª Guerra Mundial, mas isso não “explica” nada). É também uma meta-referência à original e complexa técnica material do autor. Esta consiste na aplicação de pastel de óleo, lápis litográfico e tintas litográficas sobre folhas de acetato de celulose (“Rhodoïd”), que o artista aplica em quantidade sobre a superfície com os dedos e depois procede à raspagem, utilizando um x-acto. Assim, os sulcos, os vazios, tornam-se instrumentos de um “desenho ao contrário”, que reduz as tintas. Há casos em que são eles quem compõem o objecto referente: umas canas, um nevoeiro, as linhas de impacto no corte de cabeça de uma galinha, chuva. Mas na maioria, elas são um fundo. As suas imagens quase sempre partilham a mesma ambiência material, cheia de pequenas manchas, riscos que atravessam todo o plano visual, e que, figurativamente, poderão dar a ideia de uma permanente neblina, uma nebulosidade chã que envolve tudo, e sublinha como que uma espécie de continuidade orgânica entre todos os objectos retratados, desde a vegetação aos animais, da linha de horizonte aos espelhos de água, das pessoas às nuvens… Essa organicidade é ainda sublinhada por aqueles pormenores em que vemos a sua impressão digital moldando a tinta (na asa de uma coruja, numas sombras que tombam sobre as trincheiras, num caminho enlameado) ou se desconfia de uma unha raspando a tinta.
Domingos Isabelinho, a propósito de Cimes, explicava a bela animação que esse outro livro daria, e na verdade, a ideia de animação, aliada à complexa e original técnica de Fortemps, recorda os resultados visuais e texturados de um William Kentridge. Encontraremos afinidades entre os dois artistas no sentido em que estes parecem cobrir de tinta ou grafite as superfícies para depois as apagar, ou dar início a um movimento (sequencial em Fortemps, animada em Kentridge, conceptual em ambos), e ao mesmo tempo permitirem – através de técnicas muito diferenciadas, naturalmente – que se olhem os seus “textos” como palimpsestos (literais em Kentridge), nas quais as camadas do passado vão ficando soterradas pelas novas imagens, mas deixando sempre traços ora como elementos constituintes dessas mesmas novas imagens, ora obrigando estas a procurarem criar-se em seu torno. O famoso texto de Freud sobre o “Wunderblock”, ou o “Bloco Mágico”, que não é mais do que uma metáfora, em parte mecanicista, para os processos da memória humana, iluminariam estes processos. Se a memória é, de acordo com Michèle Simondon, uma “faculdade organizadora e sintetizadora”, e a banda desenhada, a seu modo, também organiza e sintetiza a cognição e rememoração pelos seus mecanismos próprios (a mise en page, a tressage, etc.), este trabalho técnico de palimpsesto torna mais visível esses mesmos mecanismos.
Este livro reaproveita um trabalho feito anteriormente para a revista Frigobox (da Fréon, anos 1990), em termos “narrativos” (já lá iremos) mas não visuais. Essa outra série, também intitulada “Par les sillons”, parecia ser feita numa espécie de gravura (linogravura, talvez), mas tinha títulos que individualizavam os episódios e se referiam a um qualquer objecto claro da acção. Apesar de não ter diálogos, as personagens tinham balões de fala preenchidos por imagens, e isso desde logo implicaria um desejo de comunicabilidade nítida entre as personagens, mas também entre estas e os leitores. O que passa nesta “nova” versão é antes uma aceitação da ambiguidade. No entanto, podemos dizer que as personagens são as mesmas, que o contexto é o mesmo? Apenas uma cuidada análise comparativa poderia apresentar esses elementos; por agora, diremos que estes são textos distintos e autónomos, ainda que relacionáveis.
A esmagadora maioria das pranchas ou apresentam uma imensa vinheta ou dividem a página em duas imagens, por vezes de tamanhos idênticos, noutros casos desiguais. Isto incute, desde logo, e eis um paradoxo típico da banda desenhada, um ritmo tão acelerado – menos imagens, por assim dizer, ler-se-iam mais rapidamente – como abrandado – elas mesmas obrigam a uma menor estilização-para-a-legibilidade e uma maior degustação. Algumas apresentam sequências relativamente claras (a saída da fábrica, o enterro de um combatente, o cozinhado de um caldo), mas outras apresenta transições menos claras ou que fazem perder o olhar pela natureza impassível à vida e paixões dos humanos.
O autor como que abandona elementos sobre os leitores, visualmente apresentados, mostrados – uma paisagem vista de um comboio, folhas de alfarrobeira, uma aranha e a sua teia, uma pena de garça flutuando, um dente-de-leão desfazendo-se, uma taça de café sobre a mesa, solitária, dois soldados carregando um colega (ferido, morto?) num carro -, mas não os vincula a um sequer programa narrativo claro, uma teleologia nítida: é da responsabilidade dos leitores o esforço de contarem uma história a partir desses elementos, a inferirem um sentido que seja verbalmente traduzível. Isto remete novamente para aquela vida a que aludimos acima, obrigando a uma interpelação entre leitor e obra.
Podemos tentá-lo, porém. Numa paisagem rural, onde camponeses vivem a sua vida lenta, entre copos de vinho tinto, pesca a rãs e trabalho fabril, a guerra interrompe esses ciclos. Um casal é separado, ela secretária, ele operário-soldado. Os ritmos naturais (cujo olhar atento do narrador visual tece em torno da teia da aranha, girinos nadando por entre as pernas de uma garça, as voltas de uma alforrobeira) são interrompidos pelas linhas rectas e sombrias de obuses, trincheiras, nuvens negras, talvez de fumo, casas destruídas. Depois ele regressa, de comboio. A vida regressa a uma luz solar, branca, abrasadora, conforme o peso do trabalho de arar a terra. Mas a bandeira da pátria ergue-se, e com ela o crime da guerra, a destruição dessa vida, dessa terra. E um simples passeio de bicicleta torna-se numa frenética fuga, e a queda numa morte implacável, à qual o mundo é indiferente.
Mas apesar desta “tradução”, ou desta “imposição de significado”, a única certeza que podemos ter é que, em Par les sillons, há mais sugestão do que uma decisão narrativa. Não estando no campo da abstracção, nem sequer no da anti-narrativa (pelo menos absoluta), há porém uma forte componente da ambivalência dessas duas frentes artísticas instilada no seu trabalho. Aquele “regresso da terra”, por exemplo, poderá ser uma memória do tempo da guerra, que corta a vida do homem como uma cunha. O seu envelhecimento aparente pode ser pontuado pela sombra sempre jovem da mulher. E podemos estar a seguir diferentes personagens, e ficarmos perdidos nesse trânsito. Todavia, é aí que nasce a felicidade da procura, ou da sua falha, perdidos nos sulcos também nós.
Nota final: agradecemos a Filipe Abranches o esclarecimento sobre as técnicas de Fortemps, já que o artista português partilhou atelier com o belga.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Gostei muito da tua leitura dessa banda desenhada e, direi, da tua traslação, mas que "tradução". Par les sillons fica a minha "leitura" preferida há dois anos. Obrigada pela essa leitura e todas outras que se podem encontrar no teu blog! (desculpe pelo meu português, mas isso é a primeira vez que escrevo depois 7 anos!)

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  3. Caro Jele,
    Não há qualquer problema com o o seu português (presumo que, pelo menos, não é português nem brasileiro), que é excelente. E obrigado pelas suas palavras. Os desafios de Fortemps, e de outros autores, farão sempre expandir as nossas capacidades de leitura.
    Obrigado!
    Pedro Moura

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