13 de maio de 2013

Blog bd - Madie. Paul Filippi e Mathias Mercier (Casterman)

A quase exclusiva atenção para com banda desenhada “espectacular” ou “grandes obras-primas” leva por vezes a descurarmos aqueles títulos que, não redimensionando a  arte em si, são capazes, na sua existência singular e na sua relação com os modos de produção a que pertencem (que, a um só tempo, constroem e a tornam possível), demonstrar que a sua presença pode assumir as mais diversas formas, atravessando todo um espectro de intensidades. Madie é um bom caso de lume brando, e por essa razão atinge um apuramento simples, mas consistente.
Este é um livro sobre pequenos descentramentos. Madie vive a sua vida, confortável, burguesa, tudo de acordo com os modos que a vida ganha a partir dos 30 anos nas condições sociais que lhe pertencem. Uma relação séria e permanente parece contradizer expectativas da juventude, que eterniza na sua mente um lado aventureiro que evapora, ou melhor, se revela ilusório. Num grupo de amigos que sobrevive a adolescência em conjunto, uma forma de esbater esses desencantos é a preservação das memórias comuns, de uma qualquer nostalgia, da constante recordação e relançamento de desejos e sonhos. Madie inicia-se com uma morte, a qual desperta um fantasma: a de que um amigo e antiga paixão de Madie, Frédéric, poderá estar vivo e a viver algures. A intriga do livro é precisamente a tentativa de Madie em voltar a contactar Frédéric. Os dois descentramentos principais dirão respeito à tensão criadas entre essas duas personagens: a busca de Madie por Frédéric, como ela mesmo o dirá explicitamente, acaba por revelar mais dela mesmo do que de Frédéric, ou da relação entre ambos; Frédéric, que não é mais do que uma presença mcguffiana, iluminará tudo o que está em torno dele, como se se desenhasse um ambiente e o contorno dele, mas  nada no interior desse contorno. Uma outra camada de descentramento é que a atenção do livro voga por entre esse processo de busca, mas igualmente pela relação de Madie com o seu namorado presente, os seus pacientes (ela é médica), os seus amigos, os seus pais e o casamento conflituoso destes, e a vida em geral, enfim, em modo livre.
Romance familiar, numa escala doméstica e circunscrita a um espaço local, uma vila, não deixam de existir laços a questões mais alargadas, e que apontam, sem propriamente uma abordagem das crises desses mesmos enquadramentos, a um contexto multicultural e político complexo. Um dos amigos, Hocine, é muçulmano, Frédéric, o objecto central da procura e relacionamento da história, é militar, depois fotógrafo, mas parece estar permanentemente insatisfeito com a sua vida, quiçá fruto de algum trauma. Vemos, à margem dos acontecimentos principais, greves, associações culturais de apoio social, pequenas anedotas de personagens secundárias que vão, aos poucos, tecendo uma ideia do social que engloba e envolve esta pequena intriga pessoal. Tudo isso são elementos apenas citados, mas que servem para criar uma ideia de real mais lata e que estimula os eventos sobre os quais o livro se concentra.
Apesar de este livro não passar o “teste Bechdel”, ainda assim não deixa de ser significativo que a protagonista, e titular, do livro, seja uma personagem feminina, Madie, a qual recebe um tratamento singularmente maduro e nada redutor, e haja momentos em que ela estabelece ligações com outras mulheres (a mãe, uma amiga, uma mulher de um paciente, a ex-namorada do amigo que procura, etc.) que, ainda que por vezes estejam a falar de uma terceira personagem masculina (falhando o tal teste), sublinham particularmente as suas personalidades próprias, e não são apenas instrumentalizadas. Mesmo existindo cenas íntimas, e até sexuais, elas nem são explícitas nem procuram efeitos eróticos simples, de titilação dos leitores. Estamos perante um tom calmo, realista, de crises muito comuns e sem sombra de catástrofe.
O tom, de facto, parece ser aquele de um certo cinema contemporâneo, urbano, de redes familiares, em torno das relações, jogos de segredos e mágoas entre um grupo de pessoas que gravitam uns em torno dos outros em constelações mais ou menos autónomas. Poderíamos, no que diz respeito à argumentação crítica, recordar algumas das ideias esgrimidas a propósito de Petites Éclipses, e o rol de cineastas francófonos então citados (Pagnol, Clouzot, Jaoui), sobretudo pelo facto de serem os diálogos elegantes, a um só tempo capazes de um humor inteligente e uma emotividade directa, a sustentarem as relações humanas (em detrimento, talvez, da tal dimensão pictural das imagens, subsumidas até certo grau ao seu programa de representação e eficiência).
Um conceito como o de “alto contexto”, talvez fizesse sentido na análise da trama deste livro. Tal como qualquer ficção, o leitor observa e lê os acontecimentos e diálogos entre um número de personagens, é a partir deles que infere as relações. Existem tipos de texto que são mais explícitos (os casos das narrativas mais comerciais, infantis ou melodramáticas) e outros no qual a inferência é maior. Pensamos que é o caso de Madie, onde apenas nos interstícios do que é dito, na atenção aos intervalos das relações mostradas, é que vamos compreendo os “segredos”. Se numa série de televisão ou num filme, temos uma gestão do tempo, dos silêncios e das mais pequenas expressões dos actores humanos, numa banda desenhada o que corresponderia a esses factores está muito transformado, quase ausente. Os diálogos por vezes em nada contribuem para o avanço da intriga, mas são a matéria própria que torna espesso o contexto emocional entre as personagens, talvez revelando que a esmagadora maioria das nossas “aventuras” possíveis passam-se não com movimento do corpo mas dos afectos.
O trabalho visual de Filippi, corroborado pelas cores suaves de Damien Raymond, inscrever-se-ão numa tendência francesa contemporânea de que já várias vezes falámos e, sem querer reificá-lo em demasia, encontrava em Joann Sfar o seu percursor ou instituidor. Sendo este meio visual autónomo e liberto de um hipotético punhado de referências para todos os seus textos, não importa criar um modelo central contra o qual se procurariam todas as comparações. Bem pelo contrário, deveremos aceitar as regras internas das abordagens a cada texto. Tal como no cinema aceitamos vários níveis de exigência e de ritmo, ou na literatura ora uma mais empolgante gestão dos acontecimentos lineares ora uma exploração da matéria plástica da linguagem, mesmo contra a presença de uma intriga, ou nas artes plásticas a decisão entre figuração ou abstracção, referencialidade ou conceito, não são mais factores hierarquizantes em si mesmos, também na banda desenhada teremos de conviver com os vários estilos, estratégias, escolhas. A tranquilidade do traço em Madie não procura jamais questões de metalinguagem nem de espectacularidade, mas antes uma descomplexada plataforma para a trama narrativa. 
Isto não significa que não se explorem estratégias visuais e compositivas específicas à banda  desenhada, desde aquilo que se pode chamar de “montagem paralela” (em que, por exemplo, duas tiras no topo e abaixo de duas páginas seguem um acontecimento, e o centro dessa dupla página apresenta outra dimensão da unidade espácio-temporal), àquela estratégia de desenhar a personagem sempre na mesma posição, e se altera tudo à sua volta - desde os momentos, aos locais, a outras personagens que a possam rodear - para dar conta de um alheamento e não-participação nos acontecimentos [vejam a imagem anterior], ou outras pequenas metodologias significativas.
Além do mais, aquele tecido social a que aludimos acima está também presente em pormenores apresentados visualmente, nas vinhetas de maiores dimensões que servem de establishing shots intermediários, ou sequências que passariam por travellings em relação a um espaço. A simplificação do traço, das figuras, dos objectos, e dos modos cromáticos não implicam necessariamente uma ausência de textura a esse nível.
E Madie é, acima de tudo, um livro leve mas coesamente texturado.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro (imagem da capa de URL externo)

2 comentários:

  1. Caro Pedro Moura

    Este seu post despertou-me a atenção. É realmente uma obra singular, presumivelmente apelativa no conceito de leitura e no desenho, que eu levaria a cotejar com Étienne Davodeau. Pela arte, que compara a Sfar, mormente pela cor em tons suaves e devidamente aplicada em "photoshop", é livro que gostarei de ler/ter a breve prazo, mesmo que não seja publicado em português.
    Quanto ao livro não passar no teste da cartunista Bechdel - teste que se aplica principalmente no cinema - não constitui desmotivação para a sua leitura, porque a personagem principal é uma mulher.
    Não quero fechar o comentário sem lhe dizer que, apesar de uma pequena polémica mantida noutro paraíso bedéfilo, não deixo de ler o seu ler-bd, porquanto este blog constitui uma espécie de objector de consciência da banda desenhada menos divulgada, porventura menos comercial ou, como nalguns casos, meramente saída de oficinas experimentalistas e de ruptura.
    Se falei em BD menos comercial, refiro-me àquela que maioritariamente o Pedro Moura aborda, sem deixar fechados outros pontos de vista que englobariam fora do conceito mercantilista outra BD, de que não ando arredado para ser levado a capítulo, como já o fizeram de forma literal e brusca.
    Conscientemente, aplaudo este post; objectivamente, é-me grato verificar que ainda temos gostos convergentes.

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  2. Caro Santos Costa,
    A "polémica", como lhe chama, não foi mais do que uma pequena discussão em torno de problemas que há que discutir. Se vivêssemos todos num consenso pateta, seríamos todos mais pobres. Desde que essa discussão seja feita educada e inteligentemente, como o foi, é muito salutar (mesmo que o a tenha despertado tenha sido um comentário meu em que "baixei a guarda" num tom de sarcasmo).
    Agradeço as suas palavras, e, se bem que não arvore este livro em qualquer espécie de grande conquista, ele é um livro merecedor da nossa leitura, e também folgo por encontrarmos - e haverá mais, decerto - pontos em comum.
    A ideia de chamar Davodeau é boa, mas em penso que esse autor procura uma maior solidez e certeza nas formas assertivas que desenha, ainda que haja esses contornos livres, um pouco como Baru, talvez Cabanés, e outros; mas acho que este está mais próximo do que chamei noutras ocasiões de "estilo caligráfico", daí eleger Sfar como figura fundadora, de um estilo que é mais célere, de apontamento, descontraído, etc.
    O facto de "falhar" o teste Bechdel não significa nunca que a obra em si é menor, pior, etc., mas tão-simplesmente que - e numa obra criada por homens - que haverá sempre um desequilíbrio em relação à "voz própria", que apenas pertence a quem de direito. Esta ficção é respeitadora e equilibrada em termos sociais - ao contrário de muitas coisas que passam por "feministas" entre nós, precisamente porque APENAS têm uma protagonista mulher. Neste caso, porém, o contorno é forte, sem dúvida.
    Gostava apenas de deixar uma palavra de desacordo em relação à ideia de que falo maioritariamente de banda desenhada mas experimental. Bastará olhar para as "etiquetas" para encontrar um bom equilíbrio, digo-o eu, entre os vários tipos de produção existente. E não penso que todos os trabalhos experimentais de que fale sejam inconsequentes, mas antes pelo contrário, demonstram ainda as possibilidades de inventabilidade e expansão estética que esta arte contém (se a considerarmos arte, então temos de aceitar ter os seus limites abertos). Talvez a questão seja antes que muitos dos canais existentes de divulgação e exposição de banda desenhada sejam um pouco mais circunscritos precisamente aos objectos mais reconhecíveis e, como diz, saídos do "mercantilismo", logo o ónus da diversidade não me poder ser apontado como negativo.
    E está para breve uma consideração sobre alguns títulos de super-heróis que ainda leio, por isso nem sempre estou tão longe do "mercado".
    Obrigado e até breve,
    Pedro

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