Marie-Ange Guillaume, na sua nota de leitura que abre o livro, quer aproximar uma das invenções de Fred, um barco que anda a rum, e agora a “locomotiva à pata”, com o poético barco ébrio de Rimbaud. Todavia, estamos longe do rasgado e libérrimo aventurar pelas paisagens inóspitas mas recompensadoras da imaginação selvagem, ou do acto poético sem rede, já trilhados por Fred e as suas personagens. Estamos longe desses caminhos trilhados. A invenção poética, figurativa, as loucuras de composição, a lógica sublime e subtil da falta da lógica... parece ter diminuído de ímpeto, de febril energia e de fulgurante presença até uma quase imóvel sombra de si mesmo. Como se o acto criativo visse já a fímbria da sua aniquilação e se aproximasse dela relutante e não heroicamente. Penetrar no biografismo é um pecado crítico, mas a sua consideração, e até mesmo aquilo que é matéria da obra de outros (veja-se Desoeuvré, de Trondheim) cria o contexto pós-depressão que fez Fred regressar à sua série, ao último livro cujas primeiras páginas já havia criado há muito, e que agora resolveu terminar, mas criando no interior desta nova diegese uma espécie de “buraco negro”, de “buraco de Einstein-Penrose” que faz levar o término das viagens rocambolescas de Philémon à sua primeira aventura. Daí que a expressão “la boucle est bouclé”, na continuidade do interesse pelo autor em expressões feitas que se desmontam pela sua literalidade total, encontraria aqui uma aplicabilidade absoluta.
É um testamento, não é uma história. O ritmo da história que ainda se poderia contar é estranho, demora a… demarrer, não há outro verbo. A narrativa está tão atolada quanto a própria Lokoapattes na lama material, fora do túnel imaginário que a transportaria. Tal como Le corbeau a baskets, também este livro é provavelmente o mais autobiográfico de Fred, um espelho quase directo, se virmos para além dos elementos de ficção, ou se o entendermos à la clef. O próprio Philémon faz uma associação – por afinidade biológica, no interior da diegese – entre a Lokoapattes e o Manu-Manu, encerrando tudo nos textos fechados para sempre de Fred.
Há ainda uma outra forma de interpretar o final da série, se lermos as imagens de forma isolada. Uma forma de interpretar que obriga a uma leitura trágica, terrível. O episódio que dera início à série Philémon, em 1965, começa com o protagonista a tombar no interior de um poço velho, no interior fundo do qual ele mergulha para vir a emergir do outro lado (do espelho d’água, apetece dizer), no oceano em que se banham as praias da ilha A e as outras… Mas no caso presente, vemos Philémon a retomar essa história por poder servir de “combustível”, lá está, imaginário, para fazer mover a locomotiva. Por isso, essas páginas que se retomam surgem numa paleta mais esbatida, a cinzentos, casanho e azuis pálidos que dão como quem uma pátina de pretérito, enão fúnebre, às imagens. Philémon mergulha, outra vez, e pede por ar. Um spread mostra-nos uma imagem imensa de Philémon, de olhos fechados, a esbracejar nas águas fundas. Mas o spread seguinte, e final, apesar de nos revelar cores, e estarmos acima das ondas à la Hokusai do mar do outro lado, com os seus dois sóis-luas, não nos mostra sequer um sinal de Philémon. Nada. O oceano imenso báscula sob o céu nocturno, mas na total ausência de sinais humanos. Só podemos temer o pior. Para o evitar, não nos resta senão mergulhar de novo nos livros antigos.
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