Este
título poderá vir a tornar-se num importante contributo para a
literatura gráfica portuguesa, menos pelas suas conquistas estéticas
ou reinvenção da arte, relativamente calma, mas por o que ele
poderá representar em termos de espelho das emoções mais vigentes
nas gerações jovens dos nossos tempos. Desenganem-se aqueles que
procurem aqui uma “plot-oriented story” à la Harry Potter ou
outra bodega YA que ande por aí à espera de adaptação
cinematográfica. Desvio não é bombástico. Sussurra com
compreensão. (Mais)
Desvio
não é o primeiro livro que a escritora Ana Pessoa cria com Bernardo
Carvalho, nem tampouco uma obra da escritora em que a imagem não
participe com um papel muito além do da usual compreensão de
“ilustração”, para assumir encargos mais significativos na
fabricação dos sentidos. As imagens, seja nos “romances” ou
outro tipo de objectos, não se encontra somente para “vender” as
frases de Pessoa, mas para estabelecer uma simbiose que leve um pouco
mais além as ligações com as suas personagens, as emoções
destas, as alianças criadas entre elas, e sobretudo aquilo que fica
por dizer na matéria verbal.
Em
Mary John,
por exemplo, há mesmo sequências, ou pranchas, que trabalhando em
paralelo com o texto, oferecem um reforço de intensidade e ritmo. E
o que dizer que Aqui
é um bom lugar, com
Joana Estrela? Chamar-lhe “literatura ilustrada” não é
suficiente. É uma verdadeira colaboração. Uma mestria do diálogo
entre as autoras. Em Desvio,
essa capacidade de jogar ténis volta a estar patente, em que há um
movimento líquido entre as possíveis responsabilidades autorais de
Pessoa e Carvalho, mesmo que se confundam, seguramente. Todavia,
haverá uma diferença, pelo menos de grau, num projecto descrito
como “banda desenhada”, em que a “faixa” da
narrativa/história se une à da imagem para fundar
o território dos sentidos, narrativos, emotivos e secretos, do mundo
diegético que tece. Ou seja, ou a banda desenhada é o resultado
natural da colaboração entre os dois autores, ou é um território
em que se exacerba a capacidade de absorção, em cada um dos
autores, das vontades do outro: Pessoa desenhada, Carvalho escreve.
A
autora é muitas vezes comparada com outros importantes nomes da
literatura dita para jovens, sejam portugueses ou estrangeiros, de
décadas passadas ou mesmo contemporâneas. A nosso ver, talvez
esteja mais próximo de um tom à
la Sue Townsend, em
que se afastam todos e quaisquer mecanismos de tentar incutir “lições
históricas”, “alta cultura”, “moralismo” ou “dimensões
edificantes” em nome de uma genuína compreensão por todo o
tumulto da vida dos adolescentes. E os muitos perigos que espreitam
esses dias, alguns dos quais sedutores. O frisson
da descoberta de domínios “adultos” - fumos, álcoois,
sexualidade, e essa coisa tão difusa e estranha e pesada que é a
“liberdade” - são, a um só tempo, e para ficarmos nas metáforas
de trânsito exploradas neste livro, um paradoxal semáforo com as
luzes verde e vermelha ligada. Isto é, não há regras claras nem
ditames certeiros, está mesmo nas nossas mãos a decisão. Estaremos
prontos? Estará o Miguel, protagonista de Desvio,
pronto? São essas
questões que ele, durante esta temporada em que passará sozinho em
casa, aos 18 anos, estudando o código da estrada, com os pais de
férias, os amigos em viagem, e a namorada a pedir-lhe “um tempo”,
se colocará, observando rituais domésticos diários de uma forma
quase automática, deixando em lume baixinho quaisquer tomadas de
acção. Aliás, a ausência dos pais faz com que leitores mais
velhos, pais talvez, possam ler este livro como uma forma de “ler
os filhos” também, ao passo que os mais jovens, que se
identifiquem com o protagonista, possam ler isto como um companheiro
com as mesmas preocupações. Não que ele tenha respostas ou seja um
“modelo”, mas pelo menos um reflexo, um símile, um aspecto, uma
proximidade. Apenas um ligeiríssimo desvio da mesma situação.
No
que diz respeito à imagem, recordemo-nos de que Bernardo Carvalho é
um exímio, heteróclito e multifacetado ilustrador, que procura
reinventar as possibilidades das suas prestações gráficas conforme
o projecto a que se dedica. Ainda que munido de um “estilo”, ou
de uma “assinatura” que é recorrente entre vários projectos,
não é inusual sermos surpreendidos por algo que é escavado na
máxima especificidade do texto/projecto em questão. Pense-se em
Troscoscópio,
feito com celofanes coloridos transparentes, transformando uma
performance sobre variações de materiais “fechados” numa
re-construção ideológica; em
Daqui ninguém passa!,
que tira partido total da espacialização absoluta e deíctica do
objecto-livro para a diegese; os livros duplos e cruzados Olhe,
por favor, etc. e As
duas estradas; a
transformação do homem-pai em objectos úteis de Pê
de pai. As pesquisas
do artista nem sempre são as do “escritor” ou mesmo do “contador
de histórias”, mas do fabricante de significados.
Em
Desvio, até certo ponto, podemos dizer que a arte de Carvalho
estará mais subsumido ao programa narrativo, mesmo nos momentos em
que “não se passa nada”, ou os diálogos e legendas saem de
campo para dar conta de momentos hedonistas senão “desperdiçados”.
Dito isto, seria fácil encontrar várias questões em que diríamos
não cobrir o artista as várias possibilidades estruturais,
expressivas e até comunicativas da banda desenhada. Que haveria
hipóteses de sofisticação pelos quais não enveredou. Estaríamos
errados? De um ponto de vista analítico, talvez não. Mas seria
pertinente? De todo, seria mesmo um desperdício e uma falta de
atenção à forma fluida, implicada e tranquila com que o artista
cria a sua primeira banda desenhada tout court.
Por
exemplo, as cores de Carvalho lançam mão de tudo o que podem, sem
grandes estratégias pensadas atempadamente, de limitação criativa,
mas funciona, como se facto captasse na perfeição os dias de
canícula iluminadíssima pelos céus límpidos e azuis de Portugal,
sobretudo Lisboa. A acção passa-se numa cidade que é gémea de
Lisboa, e é-nos possível reconhecer certos elementos, cantos, zonas
da cidade, edifícios e até atitudes ou possibilidades, mas há
um... desvio dessa mesma representação. Reminiscentes dos
exercícios ficcionais de Nuno Artur Silva e António Jorge
Gonçalves, esta é uma “Lisboa” apenas dois graus desviada
da nossa num mundo paralelo, e que por isso cria inveja em relação
à existente.
Os
autores optam por uma composição de página relativamente clássica,
aqui regular, ali menos, de certa forma – mas por pura
coincidência, mas também afinidade que se une no selo editorial –
similar às de Wary em A Época das Rosas. A intromissão de
cenas de filmes, jogos, ou várias pseudo-referências à cultura
popular do nosso mundo (outros tantos “desvios”), não surgem
propriamente como reflexo simbólico da vida interior de Miguel, que
ele vai confessando através de uma incessante presença em legendas
de narrador, mas apontam a algo que não é jamais dito de forma
clara. O mesmo ocorre com as cenas de flashbacks, memórias
súbitas, ou o alcance dos interfaces tecnológicos, tudo isso
expandindo o cronótopo da história, para melhor compreendermos a
falta de dramatismo na vida de Miguel.
Estamos
longe aqui das “subculturas” que Hebdige teorizou nos seus
famosos estudos. A resposta deste jovem (destes jovens) A uma
sociedade cada vez mais empedernida e desassombrada com a
potencialidade humana, e apenas mergulhada em objectivos mínimos e
passageiros, não podem nutrir emoções fortes e reactivas em
relação à cultura vigente. A única resistência face ao
“empreendorismo”, à “carreira”, à “decisão”, é com
efeito esta estranha apatia, que como explicou Sianne Ngai,
apelidando estas emoções de “sentimentos feios”, “constituem
afectos menores que são bem menos intencionais e dirigidos por um
objectivo, e por isso mais propensos à produção de ambiguidades
políticas e estéticas”.
Contudo,
e eis o aspecto fulcral, o que os autores nos pedem é que sejamos
compreensivos e sejamos capazes de os ouvir, ver, compreender e
estarmos presentes, com empatia, para caminharmos ao seu lado. Mesmo
que nos desvie do ponto de partida.
Nota
final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro; infelizmente, recorremos às imagens disponibilizadas pelo press release, mas haveria cenas muito interessantes de "dissecar".
Love the drawings, could be easily made into an animation and sold to Netflix!
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