17 de julho de 2020

Planície Pintada & Floema Dorsal. Diniz Conefrey e Maria João Worm (Quarto de Jade)


Perdoar-nos-ão os autores colocar num mesmo texto a apreciação dupla dos seus últimos títulos, apesar de tamanha disparidade. Queremos acreditar, ainda assim, que tal como as respirações criativas, partindo do mesmo ponto, se podem depois consubstanciar em ventos tão diferentes, que novamente esses movimentos se possam vir a unir numa força comum, a da leitura conjunta. (Mais) 

Antes de mais, gostaríamos de assinalar que Planície Pintada é assinado por Diniz Conefrey e Maria João Worm, sem qualquer indicação da distribuição das tarefas nem de grau de responsabilidade em cada página. E, em Floema Dorsal, uma das peças, “Cigarra”, é também indicada como sendo assinada por ambos em todos os elementos. Fazer exercícios, portanto, de identificação do traço, técnica, palavra ou estratégia, é não apenas inglório como algo desrespeitoso dessa decisão. Incorreremos, ainda assim, na péssima educação, ao puxarmos a atenção para alguns aspectos, como a de que adivinhamos a abordagem da técnica de alto contraste, raiada, texturada, de gravura – sobretudo xilogravura e linogravura – em Planície, como sendo uma assinatura mais permanente de Worm, ao passo que, em relação aos “temas” ou assuntos, nos parece estamos mais próximos dos recursos recorrentes de Diniz Conefrey.

Sem querer reduzir de forma alguma a prática de Conefrey a “tons” repetidos, estamos perante dois livros que salientam sobremaneira duas das linhas mais fortes das suas permanentes pesquisas e que podemos evocar, não sem estar a exercer a típica violência da destrinça entre “forma” e “conteúdo” - como se uma não existisse sem o outro, de uma maneira implicada num modo. Compreendendo que se trata de um espectro de interesses e intensidades, e não dicotomias exclusivas e excludentes, ainda assim poderemos, sem grande dificuldade, indicar que Planície Pintada está no seguimento do aturado trabalho do autor em torno de temáticas ameríndias pré-colombianas (visto em O livro dos dias, Nagual))« e que Floema Dorsal sublinha sobretudo a busca por um cada vez mais apurado sentido de criar banda desenhada abstracta (Os labirintos da água, Meteorologias). Alerte-se, sempre, que existem canais de passagem, sobretudo em Nagual, nada displicentes. Em relação a Maria João Worm, todavia, há o modo como a matéria verbal parece ser burilada, o abandono de supostas regras de convivência de plasticidades diferentes, que passam a habitar o mesmo espaço, e os interesses em criar formas entre o orgânico e o padronizado, a imagem reconhecível e a textura, e a permanente tensão entre o pictórico e o gráfico.

Ambos os livros coligem relatos curtos, que ganham uma consistência no interior de cada um dos seus volumes. Sempre numa musical oscilação entre tema e variação. Planície Pintada apresenta-nos quatro relatos, todos eles em torno das culturas dos nativos americanos, sobretudo dos territórios a norte, na fronteira – conceito que não faria sentido, ou da mesma maneira, para estes mesmos povos – com o Canadá (Lakota, Lushootseed, Iroqueses, entre outros), repescando escritos e testemunhos da sua história. Partilham todas as histórias uma estrutura genericamente clássica, de composições narrativas e lineares, com a presença de texto, sobretudo legendas, ainda que nenhum balão de fala, se bem que muitas vezes na primeira pessoa e associado às acções que vemos (sempre “no presente”, como qualquer imagem).

Apesar de poderem ser vistos como “adaptações” de textos previamente estruturados como tais, a própria escolha destes textos, os seus “géneros”, e depois o seu agenciamento como no livro, é significativo em si mesmo. Começamos com um texto, sub-dividido em curtos capítulos, que traduzem um mito iroquês. Depois segue-se um relato de um sonho por Alce Negro, figura proeminente do povo Lakota (antigamente designados por “Sioux”), em que ele tem o que parece ser a sua primeira experiência xamânica, viajando pelos domínios superiores ao mundo humano. “A sabedoria” é um lindíssimo conto dentro de um conto, em que um caçador, unindo-se à sua presa no acto de matar e ser morto, recorda um episódio à escala humana, mas que espelha precisamente a necessária empatia para a convivência no mundo entre todos os entes vivos, e que papel a morte pode ter, activa mas apartada. Finalmente, “Memória” [página aqui ao lado] põe em cena o famoso discurso, ainda que controverso, dada a sua dúbia veracidade histórica – que os autores discutem – de Seattle, ou Seathl, conhecidíssimo chefe dos povos de língua Lushootseed.

O significado da ordem destes textos, no livro, deve-se ao facto de que criam uma espécie de arco descendente e melancólico dessas mesmas culturas. Começamos com um texto glorioso, epopeico, da constituição da cultura, atravessamos outro momento de génese de um trânsito por entre mundos, expandindo a existência humana, depois inflectimos num breve episódio do quotidiano algo triste, real, condoído mas ainda esperançoso, e terminamos como a “carta” de um representante dos nativos americanos aos poder central da jovem nação dos E.U.A., e cujo conteúdo pode ser interpretado de muitas, muitas maneiras – e tem-no sido – mas que sobretudo tinge tudo num tom elegíaco e inevitável de que “todas as coisas sólidas se dissolvem no ar”...

A prestação da imagem, porém, tenta recuperar a solidez da presença dessas mesmas culturas. Em “Alce Negro Sonha”, por exemplo, os autores abrem um espaço para composições visuais e materiais que “invadem” o contrato de representação que leremos como realista, da vigília, histórico, para as visões de Alce Negro através de efeitos pictóricos que recordam os padrões do papel marmoreado [ver ao lado]. Essa sequência faz lembrar por demais, independentemente das distâncias, das estratégias de disrupção visual que Breccia rasga nas suas adaptações de Lovecraft, e se não há aqui “horror”, há seguramente “cósmico”. Depois, a sequência de “Memória” mostra aspectos materiais – esculturas, arquitectura, máscaras, trajes e instrumentos e danças, dos povos dessas regiões, se bem que nos podem recordar a cultura Makah, tal como surge no acto final de Dead Man, de Jim Jarmusch. Em ambos os casos, ou em todo o livro, os desenhos “por escavação” demonstram em si mesmos o esforço que é regressar a uma inscrição cultural que, ainda que sobrevivendo como pode, persiste mais nas suas distorções do que na sua plena identidade, tentada aqui e reconstituída por estes autores.

Floema Dorsal, cujo título enigmático esconde termos perfeitamente tangíveis e até prosaicos, é uma colecção de banda desenhada abstracta, no directo seguimento de Meteorologias. Floema apresenta-nos 5, digamos, “peças”, unidas pela vontade de abstracizar, mas lançando mão de muitas e diversas metodologias: presença ou não de texto, preto-e-branco vs. cores, abordagens de desenho a linha/tinta a texturizações de grande materialidade, manutenção de um “estilo” mais ou menos coeso vs. a mais total das heterogeneidades gráficas, exploração de metamorfoses internas às formas tentadas ou irrupção da figuração, suavidade ou anguloso/anfractuoso, orgânico e mineral, animal e humano. É a sua leitura atenta que revelará os momentos de oposição/diferenciação/complementariade e os de suave transição e desdobramento. Ainda assim, há uma estrutura comum entre elas, já que as composições de página seguem regras de alguma unidade ortogonal, com ora pranchas de uma só vinheta, ou então duas ou quatro em grelha regular, não havendo grandes desarranjos retóricos.




A pausa em cada uma destas peças revelará os sentidos bem distintos que cada uma delas pretenderá explorar. “Nas rajadas de um sono” [ver em cima] deve ser lido página a página, compreendendo os movimentos de metamorfose das formas que apresenta, num momento lentas e claras, noutras súbita mas ainda assim lógica, mesmo que signifique a fusão ou quebra das estruturas usuais da composição de página. Mantemo-nos aqui no domínio sobretudo do mineral, mas a irrupção do vegetal é também simbólico de outras existências, inclusive antropomórficas. “Impermanência” [spread em baixo] tem algo de erótico, ainda que seja a peça mais heterogénea de toda a colecção, atravessando registos distintos de traços, cores e materialidade: mas é sobretudo através das tessituras que cria, como as próprias texturas das colagens iniciais, os veios debruados pelas formas dos “ramos” (?), a presença de rostos humanos em diálogo longínquo-próximo, que se vão revelando travessias dos planos visuais e formas que podem perseguir linhas de interpretação sexuais. “Onde estão as borboletas”, que deve ser lido enquanto afirmação, apresenta-nos um percurso que parte e regressa a formas anfractuosas e minerais, se bem que atravesse um figura humana, um canguru e árvores, possivelmente querendo mostrar-nos uma perspecvtiva não-humana, ou pós-humana, ou supra-humana (difícil escapar a todos este antropocentrismo) que une precisamente todas estas categorias existenciais (e criando assim um possível elo com alguns dos assuntos ecofilosóficos explorados nas culturas visitadas em Planície). “Cigarra”, criado com Maria João Worm, e muito próximo da sua prática da colagem/sobreposição de papéis texturados recortados, recupera a ideia do erótico, até de uma maneira explícita, dada a presença de texto, que vai narrando a proximidade e mútua implicação ou imitação das mais diversas espécies vivas e a aventura entre dois corpos humanos, aproximando-se nas palavras, deixando às imagens explorações de círculos mais amplos da vida. “O lugar sem espera” também nos apresenta uma história contada por palavras, quase banal, de um quotidiano burguês-capitalista, mas estabelecendo no plano visual uma série de paisagens talvez intepretáveis como figurativas, mais especificamente o fundo do mar, habitado por corais, como se esses invertebrados marinhos, de formas dúbias e moventes, pudessem ser igualmente o fundo no qual os sonhos e pausas dos humanos “ocupados” se pudessem alguma vez encontrar, houvesse vontade e capacidade.


Conefrey e Worm, seja através das explorações de como muitos dos povos nativos das Américas entendiam as alianças entre os humanos e o mundo de que nasciam (e não apenas “habitam” ou, muito menos, “usam”) seja através das junções heterogéneas de materialidades, estruturações e abordagens estilísticas tão distintas nas peças abstractas, vão ao encontro do que Deleuze entendia por “assemblagem”, no pleno sentido desse termo na sua filosofia. E, acima de tudo, aquela que é cumprida pela união do papel de ambos os criadores enquanto criadores, escritores, artistas, editores e, quem sabe, pessoas individuais na sua convivência (mas que não é já província do crítico). Como explica Deleuze a Parnet, a assemblagem “é uma multiplicidade que é feita de muitos termos heterogéneos e que cria ligações, relações entre eles através de eras, sexos, reinos – naturezas diferentes. Assim, a única unidade da assemblagem é a do co-funcionamento: é uma simbioso, uma “simpatia”. A importância não está nas filiações, mas antes nas alianças, nas ligas. Estas não são sucessões, linhas de descendência, mas antes contágios, epidemias, o vento.”

Já o repetimos aqui várias vezes. Uma das questões mais vexantes de ver repetida é um certo discurso desatento mas que se quer disfarçar de informado, que busca pelas “potencialidades” da banda desenhada. Não é preciso procurar. Basta ler aquelas já existentes que as cumprem, respiram e sustentam.
Notas finais: as nossas desculpas pela falta de qualidade das fotografias dos livros; agradecimentos aos autores-editores, pela oferta de ambos os volumes. 

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