10 de abril de 2005
Phoenix, 5 vols. Osamu Tezuka (Viz Communications)
Infelizmente ainda não se pode dizer que Osamu Tezuka seja um autor sobejamente conhecido do grande público português (lamentação que se poderia esticar a outros autores, outras áreas, outras coisas, por isso é melhor não nos esticarmos), se de todo. Como não param de dizer os autores das suas biografias, estudiosos da história da banda desenhada japonesa (mangá), ou entusiastas críticos de Tezuka, “não é por demais exagerar o peso que Tezuka exerceu no desenvolvimento da bd moderna no Japão”. Praticamente reinventou-a sozinho.
Para um entendimento informativo da carreira e biografia de Tezuka, não posso mais fazer do que remeter a leituras mais indicadas, como os livros de Frederik L. Schodt, o site que lhe é dedicado (http://en-f.tezuka.co.jp/) e as suas obras, que vão sendo cada vez mais acessíveis numa série de línguas mais próximas (espanhol, francês, inglês).
Uma das coisas que mais me surpreende em Tezuka, em primeiro lugar é, associado à incrível profusão do que publicou em vida, é a sua diversidade: bandas desenhadas de todos os géneros e misturando-os, adaptações de clássicos da literatura (a de Crime e Castigo, de Dostoievski, é a mais marcante que conheço), livros ilustrados, séries infantis e juvenis, animações, biografias (sobre Walt Disney), e até mesmo obras semi-pornográficas ou de teor mais adulto. E o seu estilo sofreu mudanças drásticas, ao princípio (anos 40) muito próximo de uma certa produção de animação e cartoons editoriais (à la Fleischer, ou Disney) para se tornar cada vez mais “Tezuka” propriamente dito – e que influenciaria todas as gerações seguintes e até mesmo aquilo que mais rapidamente apontamos como típica mangá ou anime... Seria preciso chegar à revista Garo e aos tempos da contestação estudantil dos anos 60 e 70 para começarmos a ver trabalhos em diferentes direcções, e os últimos anos para encontrar novas impulsos estéticos, menos devedores (e mesmo assim há dúvidas) a Tezuka. Não adianta comparar Tezuka a Disney, Barks ou Kirby nos E.U.A. ou a Hergé no eixo França-Bélgica, pois o peso do autor japonês foi muito mais sentido no seu país (e arredores).
A segunda bateria de surpresas que sinto, mesmo em séries comerciais como Astro Boy, ou Atom, é o génio de invenção a que Tezuka se entregou. Uma vez que estava numa fase incipiente desta arte no seu país, isto é, uma banda desenhada como é entendida modernamente, Tezuka empregou pela primeira vez uma série de recursos, e é um autor que nos surge tão deslumbrante como McKay ou Herriman nas suas experimentações.
Seriam inúmeros os pontos que se poderiam demonstrar serem característicos deste autor. As personagens que fisicamente se assemelham mas surgem com diferentes nomes de série para série – como se de actores reais se tratassem em vários desempenhos, e é assim mesmo que são apresentados no site indicado – é um deles. Essa característica está patente em Phoenix, já que vogamos entre tempos passados e futuros encontrando mais ou menos as mesmas personagens, sempre em equações de relação diferentes, mas inteligíveis enquanto reencarnações da mesma alma: talvez o tema central desta série. A fénix é apenas um símbolo central para o contar as histórias que a circundam. Enquanto objecto de desejo ou mesmo cobiça pela imortalidade, esse pássaro parece quase surgir como anima mundi, ou além do nosso mundo mesmo, já que se chega a um tempo para além da existência da civilização humana. A ética budista, e as suas implicações ecológicas e morais de respeito universal pela vida estão patentes em todas e cada uma das histórias, o que não impede que Tezuka retrate impiedosa e cruamente a crueldade de que os homens foram, são e serão ainda capazes.
A diversidade da cultura e leituras de Tezuka permite-lhe dar tanto um sabor histórico a esta estória, como penetrar pela mais endiabrada das críticas sociais nestroutra, como em fantasiosas futurologias naquela. A estrutura livre de cada episódio desta série faz com que comecemos nos primeiros passos da História do Japão e terminemos a milénios de hoje, já os humanos extintos, ziguezagueando de trás para a frente até quase atingirmos o nosso tempo presente. Tezuka fizera uma primeira versão mais infantil em 1954, para a revista Manga Shonen (“Banda Desenhada para Rapazes"), e depois outros falsos arranques, mas em 1967 reiniciá-la-ia de vez na revista, para trabalhos mais maduros, COM. O seu último episódio seria, portanto O Sol, publicado entre 1986 e 88, apesar de alguns planos de Tezuka em a continuar... Esta nova edição americana será a primeira edição integral estrangeira de toda a série (sua versão definitiva), que infelizmente ficou inacabada dada a morte do autor, em 1989.
Todos apontam para que esta seja a série que Tezuka elegeu como a sua Obra-Prima, aquela para que mais dirigia os seus esforços criativos e mesmo filosofia de vida. De facto, coligem-se aqui todos os seus princípios estéticos, estratégias de desenho e diegese, ontologia, e saber. É uma obra de fôlego, que a cada novo episódio nos faz reconsiderar a um só tempo toda a série, toda a obra de Tezuka, e toda uma atitude perante a banda desenhada enquanto entendida como “deve ser assim” ou “deve ser assado”. A liberdade está toda aqui nestes avatares que se passeiam sob os nossos olhos.
La Musique du Dessin. Edmond Baudoin (L'An 2). Cantar com o Desenho 2.
Se aceitarmos Rodolphe Töpffer como o "inventor da banda desenhada" - facto que tem tanto de arbitrário como de operativo - verificaremos que a teorização da banda desenhada nasce ao mesmo tempo que a sua própria linguagem. Melhor, é a própria experimentação da linguagem que a vai tornando linguagem, e essa mesma experiência que se expressa também enquanto teoria, magistral e surpreendentemente exposta em Essai de physiognomonie, do autor suíço, publicado em 1845. Tal como outras artes entretanto desenvolvidas ao mesmo tempo (e penso obrigatoriamente no cinema) ou outras que vinham de trás mas começam a se alterar perante outros factores (a pintura dita "moderna"), também a banda desenhada se vai desenvolvendo (poderia dizer evoluindo, crescendo...) com a sua própria experimentação. Porém, ao contrário das outras artes mais geralmente aceites, são poucos os cultores do seu próprio pensamento. Ao longo da sua história, brilham mais os autores que sobretudo expõem aspectos técnicos (Will Eisner é o caso-mãe) ou saladas semiótico-comunicativas (Scott McCloud), do que aqueles que procuram estabelecer princípios internos e morfológicos da criação da banda desenhada. Há depois os teóricos, claro (Groensteen, Peeters, Baetens, Morgan, etc.). Baudoin apresenta-se a fazer algo ligeiramente diferente: não são blocos de aulas, mas antes trechos de pensamento que nos oferece. Mais recentemente, um outro autor mostra-se muito próximo de Baudoin nesta atitude de fazer emergir da própria acção de criar o espaço real do pensar essa mesma acção. Falo de Joann Sfar, especialmente nas várias anotações à margem de textos clássicos (a sua La petite bibliotèque philosophique) e nalgumas magníficas páginas de Ukelele.
La Musique du Dessin não é mais do que o culminar de um trabalho de investigação e pensamento sobre o desenho (e sua implicações imediatas) do autor francês, que já se expressara noutros locais, desde as entrevistas até trechos dos seus livros mais "normais" (seja o que for que isto quer dizer), até aos seus álbuns mais íntimos (Éloge de la Poussière, Chroniques de l'éphémère, Le Chemin de Saint-Jean, etc.), até ao mais recente Questions du Dessin, que colecciona as pequenas "Lições-ensaio" que dera na revista infantil Dada. Ler Baudoin é entender o seu pensamento sinestésico - muitas vezes fala ele de "desenhar é dançar", "a música do traço", "procurar o ritmo da linha", etc. Este pequeno mas maravilhoso livro atinge um máximo de poeticidade nas pequenas "perguntas" que deixa no ar... Na verdade, Baudoin não nos oferece lições, conclusões, fórmulas, mas antes abre-nos espaço para podermos entender quais são as questões que o fazem continuar a trabalhar... "Je ne sais pas, j'apprends encore." deverá ser o fio vermelho desta obra. A primeira parte, sobre pontos e linhas fazendo rostos (e que me permite aproximá-lo de Töpffer, Sfar, mas também de Wittgenstein!), dá vontade de ler em voz alta, muito alta...
Outra afinidade de La Musique du Dessin será com o livro "teórico" do pintor chinês Shitao, que é bastamente citado por Baudoin. A linguagem das manchas, o vazio como comunicante, e o interesse pela figura humana como presente em todos e quaisquer traços do desenho são alguns desses pontos de contacto.
É de facto interessante mas preocupante também que haja sempre um vivo afluir a exposições de "desenhos" de autores de outras áreas - arquitectura, pintura, cinema, etc. - mas pouca atenção ao trabalho de quem se dedica ao desenho por ele mesmo, procurando os seus limites internos, explorando as suas capacidades, discorrendo sobre as suas dobras e forças, sem o ver como trampolim a outras plataformas.
A quem interessar descobrir como se pode descobrir poesia e música num traço a negro, este é um livro obrigatório, que imagino poder vir a tornar-se numa espécie de "bíblia" de desenhadores inteligentes e abertos à sensibilidade.
Isaac, Le Pirate 4. La Capitale. Christophe Blain (Poisson Pilote). Voltar à Grande Aventura 3.
Não sei se o que mais me tocou pessoalmente, me emocionou, foi ser testemunha directa da “traição” amorosa de Alice, ou ver Isaac a descobri-lo por ele mesmo, no seu retorno a Paris. Este é o caso da Grande Aventura neste caso: a capacidade de criar uma personagem absolutamente redonda, para reintroduzir uma terminologia já um pouco desusada, mas que é pertinente face a tão acabada personalidade. Por outro lado, Christophe Blain segue na construção das suas histórias uma trama mais cerrada, o que é visível no arranjo das pranchas – bem diverso do que se verifica na sua colaboração com Sfar em Socrate, Le Demi-Chien que é fruto da estrutura de Sfar (repetida em Les Olives Noires, deste último com Guibert). Este álbum, ainda que seja uma espécie de pausa no exotismo e retrato de paragens “estrangeiras” do mundo da pirataria, navegação e cultura do século dito Iluminado, aponta antes para os cantos obscuros da metrópole, mais obscuros ainda pelas almas dos seus habitantes.
Algumas das pranchas parecem ser reconstruídas directamente a partir das telas da mesma época retratada, com a mesma patina de uma neblina que nos faz desconfiar não ser apenas atmosférica, mas moral, emocional, de uma existência diferente de uma mais falsa visão histórica.
As aventuras de Isaac Sofer, pintor judeu pirata ladrão e amante, sobretudo amante para ser tudo o resto, ainda não terminaram.
(Espero que a Polvo continue a apostar na edição em Portugal.)
A Voz da Escuridão. Junji Ito (várias edições)
A capa que aí está é de uma edição coreana, mas serve de ponto de partida para a cada vez maior obra de Junji Ito, cujo Uzumaki deve ser a obra mais conhecida e mais bem conseguida. Porém, quase todas as suas histórias, das mais curtas e soltas (as que aqui se reúnem, por exemplo) até às curtas mas associadas entre si (a série Tomie) até outras mais alargadas (Gyo), e que se vão descobrindo em traduções acessíveis (inglês, francês, espanhol) apalpam o mesmo terreno, as mais das vezes feitas de corpos humanos sempre no limite de se tornarem outra coisa...
Se bem que não estamos perante uma obra-prima do maior requinte, dados os seus objectivos, também não estamos perante um crasso aproveitamento vazio de uma "moda". Isto é, as minhas preferências recaem noutro tipo de livros, mais complexos e que assistem mais intimamente com a nossa vivência humana, mas nada disso me impede de entrar em leituras mais "escapatórias". Mas o escape a que Junji Ito nos convida é bem estranho, porque escapamos para dentro, para a visibilidade total dos nossos corpos, e isso é incómodo. Estas são mesmo histórias arrepiantes, com um ritmo desconcertante (os painéis silenciosos, as onomatopeias quase exageradas) e sobretudo com uma atenção revoltante aos limites do corpo humano.
Como David Soares disse tão bem em Ler Bd (ver abaixo), a propósito de Uzumaki e a abjecta visibilidade dos corpos horrificados de Junji Ito, "O terror não deve ser confortável".
(Para os curiosos, o título desta artigo é a tradução da antologia coreana retratada).
Mattt Konture. Les Contures (L'Association)
Há uma característica do barroco – movimento a que a História de Arte resolveu associar aos termos morais de “exagerados”, “supérfluos”, “etc.” – que Deleuze elegeu como ponto de partida para um certo entendimento do fazer-arte: a “dobra” ou “plissagem” (le pli, em francês). Mundanizando este conceito, é o que nos permite, ao olhar um ponto fixo, desdobrá-lo ou desplissá-lo para descobrir que mundo se escondem nas pregas no interior e assim sucessivamente...
Este é um álbum que desvenda, explica, para depois complicar e obscurecer de novo. Há como que uma busca, um “fio vermelho” que se segue, e que atravessa as memórias de infância do autor, quer as de eventos reais, quer a de eventos sonhados, quer ainda as que se entalam a meio, como as visões hipnagógicas – tal como divulgado por outro companheiro de arte, citado, que é Zograf. Mas também explicitando que essa pesquisa das fontes faz assumir o risco de fazer perder a aura romântica, e revalorizando-a doutro modo, entendendo que esses “locais” são intocáveis...
Não sou particularmente um fã de Mattt Konture, já que me parece demasiado próximo de um Crumb ou até, mais recentemente, de uma linha próxima à de Julie Doucet para conseguir encontrar linhas de força que lhe sejam singulares. Mas esse pode ser um problema da minha leitura.... No entanto, este álbum parece-me bem diferente dos outros. É escrito para a filha, o que pode trazer logo uma diferente dimensão do propósito quando não é simples e necessária expressão, e atinge graus de uma intensidade insuperável, sobretudo as primeiras 5 a 7 páginas, que dá conta precisamente desse desdobrar que tentei descrever acima. Só elas, e depois o ponto alto do “soleil sombre” quase no fim, valem a entrada neste livro.
A possível combinação de lâmpadas de jardim + galinha depenada + personagens de desenhos animados dá origem a essa estranha criatura que dá pelo nome de “conture” (dando assim conta que este livro é também uma espécie de confissão d’arte) que surge só para poder preencher um vocábulo existente (uma curiosa inversão entre as teorias linguísticas, com a primazia para o objecto referencial sobre a palavra designante, mas que não surge aqui como linha operativa das considerações) mostra essa possível disseminação de fontes, ou melhor, permanente movimento de convergência-divergência, que Konture elege aqui como mecanismo de criação/produção.
Se bem que não deixe de fazer entrar traços que bebem da banda desenhada underground dos anos 60 ou das autobiografias de um Joe Matt, por exemplo – apesar de Konture trabalhar há mais tempo que isso, e o que existe é antes coincidência de fontes, não de mútua influência – Les Contures surge mais na categoria de um “ensaio” sobre a arte do desenho e da banda desenhada do que um álbum narrativo propriamente dito. Tendo sido cada “episódio” publicado esporádica e afastadamente na revista da L’Association, notar-se-ão as flutuações do traço, das direcções, e até da unidade do livro.
No entanto, essa fragilidade acaba por se tornar um dos pontos fortes de um livro que pretende, precisamente, autoanalisar as estratégias da sua própria emergência.
Poulet aux Prunes. Marjane Satrapi (L'Association).
Marjane Satrapi vai saindo de si mesma. Até ao momento, as suas histórias centravam-se naturalmente – pelo seu projecto – na sua vivência pessoal ou imediatamente relacionada consigo, sobretudo a vida das mulheres iranianas. As várias experiências pelas que tem enveredado – colaborações, ilustrações de contos persas, versões de contos tradicionais – tem-lhe permitido talvez explorar outras escritas.
A estória de Poulet aux Prunes é relativamente simples (mas a estória só é importante para titilar as superfícies das mentes de quem não quer mergulhar fora de pé...o que importa é o modo que a eleva). Um músico, Nasser Ali, dado que a mulher lhe quebrou o instrumento sem preço – um tar ofertado pelo mestre – resolve morrer, deixando-se definhar na cama durante oito dias até que Azrael, o anjo da Morte, o venha buscar. Mas o que parece ser superficialmente linear torna-se uma revisitação das possíveis pulsões que o levam a essa decisão: o divórcio entre um verdadeiro amor e a sua concretização, as escolhas que lhes são impostas pela ordem social, a típica incompreensão a que os (verdadeiros) artistas são votados. Satrapi não deixa, porém, de nos apresentar os significados políticos da época (final dos anos 50), sobretudo um certo desencanto de uma esquerda progressista, enamorada de alguns valores do Ocidente – os enormes seios de Sophia Loren parecem carregar não só a única ponta possível de vida e erotismo para Nasser, como uma espécie de porto de abrigo aos conturbados tempos da vida política. E é precisamente pela apatia de Nasser face às revoluções permanentes – já exploradas em Persepolis e Broderies – que vamos ganhando algum contorno no conhecimento da situação da época. Em relação aos outros livros, parece haver algum avanço em termos técnicos, já que se trata de um récit contínuo (ainda que subdividido em capítulos) e parece haver uma maior experimentação nos enquadramentos (vinhetas distintas para o presente e as memórias, maiores manchas a negro). Isto é, Satrapi vai descobrindo aos poucos novas formas de completar o seu projecto político e, ao mesmo tempo, explorando as possibilidades de pensamento sobre a condição de autor através destes outros avatares, que são as personagens.
Unlikely. Jeffrey Brown (Fantagraphics).
Há muitas formas de viver a vida e muitas formas de criar arte. É uma força poderosíssima e quase avassaladora quando as pulsões de criação artística atingem o âmago da vida do artista, não enquanto artista, numa espécie de desdobramento de si-mesmo num "tempo de criação", pautado e organizado com os seus outros tempos, uma calendarização civil das várias pulsões que nos atravessam a todos e nos permitem o equilíbrio social, mas enquanto pessoa viva: lançando-o então para os limites da existência, e a que podemos chamar "loucura", "alienação", "falta de sentido de oportunidade", "esquizofrenia", etc.
Mas são raros aqueles em que essa pulsão é verdadeira, pulsante, havendo outros que procuram antes elevar a sua vida - cujas pulsões não diferem em muito das máquinas sociais das expectativas partilhadas em circunscritos "departamentos de vida" - à arte que desejam criar. São os que optam por elevar a autobiografia à sua própria criação, mas de uma forma sem filtro, quase directa, sem efabulação, despida... Por vezes, pode parecer-nos mero exercício de narcisismo, fútil, até de uma brandura que de pouco se reveste. Às vezes, essa mesma apresentação de si pode-nos parecer um abuso de confiança... Outras é apenas isso mesmo: um despojamento total que não sente necessidade de se justificar.
Jeffrey Brown é filho de uma escola relativamente recente que deu um pequeno abalo na banda desenhada independente norte-americana. A autobiografia não é um género particularmente recente, mas há toda uma nova geração que a ela se dedica, e é por isso que falo de escola. A meu ver, nesse grande grupo, há aqueles que rapidamente atingiram uma mestria por focalizarem apenas nos momentos de maior intensidade (ou que ao contarem esses momentos, transformaram-nos em intensidades localizadas), como Porcellino, outros preferiram disfarçar e apresentar uma construção mais seleccionada, como Debbie Dreschler, e outros ainda fazem convergir toda a espécie de estratégias para criar algo monumental, como C. Thompson e o seu Blankets.
Brown tem vários trabalhos dignos de nota já há algum tempo, mas parece-me que Unlikely queria chegar a um patamar de intencionalidade bem mais marcante do que trabalhos anteriores. É uma espécie de retrato despojado de romantismos, o mais confessional possível mas por uma atitude de certa maneira blasé - não se congratulando na merda de vida como Joe Matt, nem se desculpando a cada página como Chester Brown (ambos mais velhos, porém). É despojado, tal como a escolha do seu estilo, ainda mais "esferográfico" aqui. Mas parece-me também que não chega a existir uma confessionalidade desarmante, uma procura por uma honestidade impossível de atingir e que derreteria as barreiras últimas entre um leitor e o autor/personagem. É algo que está a meio, mas que, repito-o, passa pelo despojamento não para atingir plenitudes e estados de graça, mas simplesmente um estado de "ser-se-assim".
Se, por um lado, toda a leitura de Unlikely nos parece que é um dos nossos amigos que nos conta algo de mau na vida dele entre duas ou três cervejas, e dizemos, "sei o que isso é", para rapidamente nos abstrairmos disso na passada seguinte, por outro, a última vinheta é quase uma metáfora possível do que um amor acabado é. Apesar do livro mostrar-nos todo o "historial" dessa relação, parece ser uma desculpa para poder chegar ao seu fim. E que metáfora é essa? Um lugar vazio na grelha de estacionamento. Um vazio que se pode preencher de um momento para o outro, sem espectáculos de maior, apenas meia-dúzia de manobras.
Nota: agradecimentos a Isabel Carvalho, que me emprestou o livro.
Paul Auster's City of Glass. Paul Karasik & David Mazzucchelli (Picador)
A esmagadora maioria das adaptações fazem-se pela camada mais fina. Isto é, escolhem os elementos mais visíveis e claros e transpõem-nos para outra forma. Ou seja, “a estória é a mesma”. Seja do cinema para a banda desenhada, da literatura ao cinema, do teatro ao livro, ou contrários, ou outros, a maior parte das vezes esboroa-se tudo, porque não passa o essencial, que é a mancha de sentido da obra original. Seria cansativo apontar os erros, de tantos que são. Mais vale concentrarmo-nos naquelas que no dão tanto prazer no seu primeiro avatar como no segundo, o qual, ainda que diferente, é o mesmo, ou sendo o mesmo, é diferente.
City of Glass, na versão de Karasik e David Mazzucchelli, garante-nos esse prazer continuado.
Paul Auster, apesar de não ser um escritor de primeira água, possui alguns elementos de interesse que atravessam os seus livros: a dissolução dos géneros, a mise-en-abîme através da introdução de outras histórias menores na maior, as coincidências e as coincidências felizes (ou serendipity), a mistura entre os vários níveis de ficcionalidade e realidade. Falo sobretudo da Trilogia... Nada que não caracterizasse já outros escritores que exponenciaram esses mesmos elementos, como, é óbvio, J. L. Borges.
A adaptação do primeiro conto/episódio da Trilogia, A Cidade de Vidro, foi um processo moroso e complicado, que passou em primeiro lugar pelas mãos de Karasik (fiel experimentador do modo da banda desenhada, ainda que a maior parte das vezes nos bastidores da Raw) e termina nas de David Mazzucchelli, conhecido do grande público pelo Batman: Year One escrito por F. Miller, ou de outro mais alternativo, por curtas e oníricas histórias (reunidas pela Coconino Press em Phobia, de 2003). Foi uma colaboração estreita, revista e refeita, com o apoio de Auster, e ainda Art Spiegelman.
As soluções visuais são tão bem ponderadas, estruturadas e finalizadas, que se torna quase estranho comparar ambos os textos - o literário e o da bd – já que o peso das palavras no primeiro parece transformar-se aqui numa leveza. Precisamente porque a estória não era fácil de transportar à mais visível das matérias, é a própria estruturação dos painéis, a maioria rígidos, à la Kurtzman, depois liquefazendo-se juntamente com a percepção da realidade por Quinn, que coloca o ónus da mancha de sentido no centro do nosso olhar. Existem sequências memoráveis, que se plasmam perfeitamente às palavras: o discurso de Peter Stillman, o jovem, cuja voz parte de um local mais recôndito que o cérebro, e isso é expresso pela cauda do balão afundando-se na garganta; a ida à biblioteca e a avalanche de referências visuais díspares que concorrem num só espaço; as repetidas vezes que surgem os labirintos, as impressões digitais e as cabeças de um menino a gritar; as intromissões de infografia e metáforas quase-absurdas. Mais um exemplo: Paul-Auster-o-escritor-personagem-do-livro-de-Paul-Auster-o-real, nas páginas 88 e 89, nas duas vinhetas que apenas mostram a mão segurando a caneta. Quase um mudra, encerrando o significado mais no gesto que nas palavras ditas. O estudo próximo desta obra, contrastando com outras adaptações mais “clássicas”, que surgem mais como “reader’s digest”, logo, levianas, seria um excelente ponto de partida metodológico em pensar a teoria da adaptação e da transcritura (para citar um feliz neologismo). Entre nós, reina a preferência por um trabalho menos substancial e mais imediato, cujas excepções se contam pelos dedos – Filipe Abranches e o seu Diário de K. está nesse número. Chamar a este livro “experimental” não poderia ser mais errado, já que uma “experiência” não leva necessariamente à instauração de soluções repetíveis, utilizáveis – mas não de menores glórias, como The Cage, Here, etc. -, e City of Glass abre um panorama vastíssimo de pensar a acção da narrativa na banda desenhada.
(Nota: publicado originalmente em 1994, esta edição é de 2004. Existe uma edição brasileira pela Via Létera, de 98, com boa tradução mas má impressão)
Malus. Christopher Webster (Mmmnnnrrrg).
É preciso ter cuidado com a publicidade “enganosa” que se encontra na capa dos livros: auto-louvores, as mais das vezes, são sempre falhos. O facto de se apresentar Malus como “desafia[dor de] qualquer tipo de catalogação” é uma típica vontade de se fazer mais poderoso do que se é, como se se quisesse impedir à partida qualquer leitura externa. É o mesmo que dizer ser Christopher Webster um “independente” ou “underground” ou “alternativo”, e dizerem em seguida, “não é bem assim, não é só isso...”. Bom, meus amigos, já Wittgenstein disse tudo isto antes e em melhor estilo: quando falamos, utilizamos categorias, generalizações, palavras nem sempre bem empregues, e causamos mal-entendidos, e perante aquilo que não sabemos devemos manter-nos em silêncio. Mas o papel dos críticos é precisamente não se calarem, e continuarem a gastar palavras a ver se acertam nalgum sítio que valha a pena.
Sim, é verdade que ao ler Malus apetece fazer uma espécie de lista de compras de influências ao lado, vendo que elementos vêm de onde. Sim, é verdade que a opção por deixar a narrativa mais aberta que fechada (faltam “explicações”, “desenlace”, “moral”, “razão”, “causa”) coloca-o de imediato numa obra pouco convidativa a um público cerebralmente molenga. Sim, é verdade que o desenho de Webster pertence aos cultores de uma arte, não brut, mas de "gente bruta" mesmo. Não deixa, porém, de ser tudo isto muito justo no texto em que Malus consiste. Isto é, de uma capa à outra, tudo o que lá se encerra é coerente, é decisivo à linguagem própria que lhe pertence, como a qualquer boa banda desenhada.
Mas, afinal, de que trata esta esquisitice de livro? Perguntam bem, e a mim apetece-me responder, “De mal-entendidos, evidentemente!”.
(Mais uma vez, a mmmnnnrrrg aposta na bd mal-comportada, não fazendo concessões ao mercado e fazendo o que lhe dá na gana, gana que dá vontade de seguir. Não acham interessante que o único livro fora dos “mal-comportados” seja um livro de um workshop criativo com putos? Só não entende quem não quer...)
Le Chant des Baleines. Edmond Baudoin (Dupuis). Cantar com o Desenho 1.
Alguns autores acabam por dedicar toda a sua vida criativa em meia-dúzia de “temas” ou “obsessões”, e é-lhes suficiente para uma aturada investigação "daquilo que querem dizer". Baudoin, mais uma vez, dedica-se ao seu último tema, a procura da música interna, do ritmo único que é possível retratar, que ele deseja retratar, nas suas bandas desenhadas. Aos poucos, é como se estivesse na plena consciência de que qualquer um dos seus textos contribuirá enfim para o seu próprio Poema Contínuo (Herberto Helder) ou para o Poema Universal (Shelley). De facto, cada um dos álbuns de Baudoin, sejam escritos por si mesmo como história ficcional ou autobiográfica (e para o autor as fronteiras são ténues), sejam escritos por outros autores (colaborações com Nadine Brun-Cosme, adaptações de Fred Vargas, ilustrações a Genet, Pasolini, Lautréamont), de ensaios (La Musique du Dessin) a lições para crianças (Questions de Dessin), parece estarmos como perante variações musicais de um mesmo tema, ou testemunhando as inflexões possíveis de uma mesma Ideia.
O protagonista tanto se pode confundir com o autor real, histórico, como com todos os outros protagonistas (inclusive os femininos) dos seus textos: alguém buscando qualquer coisa, perdendo outras e sempre com a mesma questão na cabeça (o tema), expresso na seguinte fórmula: "...comment dire, et surtout, pourquoi essayer?". Essa busca pelo "traço único" é, para Baudoin, a impotência, mas uma impotência que antes o lança na busca permanente, e não numa miserabilista derrota de si mesmo. É quase como se Baudoin tivesse uma intuição que o aproximasse de um pensamento filosófico atento às percepções humanas, às "dobras obscuras" que compõem a alma de uma pessoa (Leibniz e as lições de Deleuze sobre o primeiro), e as fosse explorando na constante inquietude da criação.
Na página 47, a personagem salta uma brecha nas montanhas, enquanto na sua memória (visível para nós leitores-espectadores), a sua mãe (que ecoou na velha da montanha) fala aos tomates do jardim. A vinheta central apanha-o nesse voo. Mais à frente, o homem sobre outra brecha, enquanto pensa em todas as mulheres que amou ou poderia ter amado... são revisitações constantes em Baudoin.
Há um ditado chinês que o artista cita várias vezes, qualquer coisa como "a vida é como quando um cavalo salta por cima de uma ravina". Quer dizer, é o efémero desse momento em suspensão que melhor representa a vida. Um efémero que possui uma musicalidade própria, e que Baudoin procura restituir. Cantando com o desenho.
Gilgamesh. Gwen de Bonneval & Frantz Duchazeau (Poisson Pilote). Voltar à Grande Aventura 2.
As ligações entre textos pode ser feita da mais variadas maneiras: por autor, série, personagem, género... E porque não por colecção, quando é claro que essa colecção se constrói com um ou mais critérios relativamente visíveis? Quando falei em "Voltar à Grande Aventura" abaixo, e agora a ela retorno, é porque vejo aqui alguns princípios coordenativos das obras que se repetem. Mais uma vez, também aqui se revisita um bloco essencial da construção da Civilização Humana, que é o texto mais antigo da humanidade, a Epopeia de Gilgamesh (traduzida parcialmente em Portugal, ainda que não do original acádio, por Pedro Tamen, na Vega), mas para poder transmitir-lhe uma nova vida entre nós. Aliás, essa é uma muitas fórmulas de "clássico" que Italo Calvino usa no seu Porquê Ler os Clássicos?, a da vida perene que eles permitem não só a nós mesmos, nem apenas a si próprios como ao mundo inteiro que a ambos nos circunda...
A imagem da capa deste primeiro volume é muito bem escolhida. Retratando o primeiro e único embate inimistoso entre o rei de Uruk, Gilgamesh, e o Homem Selvagem Enkidu, criado para o derrotar, eis que se congelam nesta posição durante dias, num impasse que os demonstra verdadeiramente iguais. Este impasse entre criaturas diferentes mas de igual valor seria e será um dos mais antigos temas repetidos nas culturas do homem, sendo um outro exemplo do tema o embate entre Yahweh e Jacob (mas que o primeiro trapaceia para "vencer"), e que Delacroix pintou de uma forma idêntica à destes autores (basear-se-iam em Delacroix?).
Como ainda estamos no princípio da adaptação, não poderemos ver como os autores desenvolverão a morte dramática de Enkidu e os lamentos de Gilgamesh, episódios magníficos também da emoção humana que pelos vistos se mantém inalterada apesar de milénios passados... O épico original consiste em 11 tabuletas "oficiais" e uma outra, mais tardia, mas que ilumina questões das versões (perdidas) mais antigas, nomeadamente a homossexualidade entre os dois heróis (que deve ser entendida diferentemente da homossexualidade dos nossos dias). Mas isso são questões a aguardar... com ansiedade.
Socrate Le demi-Chien. Joann Sfar & Christophe Blain (Poisson Pilote). Voltar à Grande Aventura 1.
Sfar é formado em filosofia, e isso nota-se numa série de detalhes de algumas das suas obras, mas algumas delas estão mais cheias que outras. E há quase como que um eco de cada um dos seus livros nos restantes. É impossível não querer fazer uma imediata comparação entre o "gato do Rabi" e o "cão de Hércules", e tudo o que daí pode advir: a visão do mundo hebraica versus a grega, a displicência e superioridade de um gato versus a servilidade e justificação permanente do cão face ao amor irracional que sente pelo dono, mas também os aspectos que aproximam ambas as personagens, especialmente um certo "deixar andar". Apesar de eu falar de "grande aventura", não estamos perante nem os relatos heróicos de uma certa banda desenhada nostálgica, nem as viagens aventurosas da família Donald de um Barks, ou a pequena epopeia de um Bone (J. Smith)... Afinal Sócrates, o cão, pouco faz senão acompanhar e ver o que Hércules faz, comentar com o leitor e com outras personagens que atravessam o caminho - sobretudo as mulheres, num curioso diálogo entre dois dos "underdogs" da sociedade helénica. Não se esqueçam que a palavra grega para "cão" deu origem a uma palavra que também remete a uma atitude filosófica, os Cínicos (Diógenes é o mais famoso), e estaremos talez próximo do programa destas histórias que não só recontam os mitos e certos príncipios, como os recriam e mais!, os fazem viver de novo pois ainda nos ajudam a viver mais vida.
In the Shadows of No Towers. Art Spiegelman: (ainda): O Retorno da Memória.
Duas regras do jogo: Art Spiegelman (AS) não pensou In the Shadows of No Towers (SNT) enquanto livro, mas sim como um trabalho contínuo num formato muito particular, reminiscente da banda desenhada norte-americana das primeiras décadas do século XX, conhecido por "Sunday pages" (isto é, a total utilização de uma página de um jornal aos Domingos, a cores, por um artista de bd), no qual ele elabora 10 pranchas. Em segundo lugar, é preciso entender que trabalha no interior de um intervalo, cujos termos são, por um lado, a obsessão por uma imagem particular que lhe sobrou do directo testemunho do evento a que se chamaria "11 de Setembro": a torre sul, das Gémeas de Manhattan, incandescente, segundos antes de ruir; por outro, uma mão-cheia de "Sunday pages" particulares de várias séries clássicas que, no entender do autor, foram quase premonitórias do que viria a acontecer, e as quais são citadas através da inclusão das personagens "amalgamadas" noutras, mais próximas do autor (quando não amalgamadas nele próprio). (Mais)
Short. Histoires courtes en bande dessinée #1. AAVV (Actes Sud Bd)
Uma vez que tem um número 1, presumo que continuará. Parece feito ao estilo americano, com material inédito e édito, francófono (Michaël Sterckeman, a colaboração fabulosa de Gilles Tévessin e Romain Multier) ou doutras paragens: Israel (Rutu Modan e o escritor Etgar Keret, já conhecidos dos leitores das edições Actus Tragicus), Itália (com um dossier sobre Igort), Estados Unidos, Suécia e Japão (com um interessante trabalho de Imiri Sakabashira, colaborador da incontornável mas impossível de apanhar Garo, e seguramente filho de Tsuge Yoshiharu, com recorrência a drogas psicotrópicas). A Actes Sud lançou-se na banda desenhada com outros volumes também, e esta antologia muito diversificada revela os seus propósitos em publicar uma nova prosa, também presente no resto do catálogo. Histórias sóbrias, estruturadas, inteligentes, mas sempre com o ingrediente x da melhor literatura alternativa.
Chris Ware Monographics. Daniel Raeburn (Laurence King)
Editor de uma das mais interessantes revistas independentes dedicadas à bd norte-americana , a Imp, e que lembra trabalhos de fanzinistas e carolas dedicados à causa, Daniel Raeburn assina os esparsos textos que surgem neste volume de uma colecção que pretende fazer um retrato geral de alguns artistas gráficos. O livro dedicado a Chipp Kidd é quase o mesmo - fora o conteúdo. Para quem tem tudo do Ware e mesmo o Imp a ele dedicado, não há nada de novo em termos de fundo, e para os que querem descobrir, é um pouco um catálogo à vol doiseau: ainda assim é um belo volume para os maníacos e coleccionadores.
Le Golem. Dino Battaglia (ed. fr. Mosquito)
Faz parte da estrutura de fundo das edições francesas Mosquito - que lhes deve soar tão estranho como Mosquite nos soaria a nós - a reedição de vários autores italianos da escola dos anos 70, a saber: Sergio Toppi, Micheluzzi e Dino Battaglia. Alguns destes autores são conhecidos em traduções portuguesas, espalhadas em edições variadas, usualmente de adaptações de clássicos literários ou versões em bd da História Universal. Este é um dos últimos a ser editado, mas é interessante que o seja num tempo em que muitos autores contemporâneos retomam estes temas do fantástico e da literatura dita gótica, pelo que é sempre bom rever as soluções de mestres de antanho... Se bem que as adaptações sejam sempre um pouco redutoras, ao pé da letra, chãs e até mesmo problemáticas em termos de interpretação - discutível, eu sei - e usualmente eu não ser nada nostálgico ou conservador, cotejando esta edição a trabalhos mais recentes (por exemplo, os do Breccia filho), sinto que o que se faz hoje, em termos de desenho é chuva sobre o oceano...
Best of American Splendor. Harvey Pekar e amigos (Ballantine Books)
Para quem não acompanhou a tempo ou a par e passo a edição da publicação homónima, esta antologia é perfeita, parece-me, como introdução... Trabalhos dos mais amigos e longos colaboradores, dos quais se destaca Frank Stack, mas apresentando também trabalhos de artistas mais recentes e mais famosos, como Sacco, Dean Haspiel e uma prancha de Jim Woodring (do onírico Frank). Tirando a capa, não apresenta qualquer das colaborações com Crumb, que já tinham sido alvos de uma edição separada. Mas se o título se arroga de The Best of, levanta a questão se o é mesmo.
Cendre. Tonino Guerra e Lorenzo Mattotti. (Estuaire)
Não é banda desenhada, mas um livro ilustrado. É uma pequena novela do mais-que-profícuo T. Guerra (três títulos traduzidos na Assírio & Alvim), colaborador de Antonioni e Fellini, Tarkovski e até Vicente Jorge Silva. Curtos episódios que quase servem de textos poéticos separados, sobre um mundo pós-apocalíptico, no qual os homens procuram soluções que lhes permitam pequenos prazeres. Quanto a Mattotti, parece ter reduzido o seu trabalho a meras glosas prosaicas do que se descreve nas palavras. No entanto, é um belo livro para os cultores do objecto.
New Frontier. AAVV (DC Comics)
Como é que me atrevo? Bom, porque uma vez que também por cá existem Novas Fronteiras (título de um discurso de J. F. Kennedy), esta é uma série deveras interessante para os aficionados de super-heróis, mas que cresceram e possuem massa cinzenta e outros hábitos culturais, com especial destaque ao cruzamento de referências. Se bem que pode ser incluindo na já extensa lista de filhos de Watchmen, em termos de reescrita do Universo da DC e sua integração num tempo histórico real, ainda assim merece a nossa atenção, parece-me, pelas soluções apresentadas, pelas sucessivas homenagens a grandes nomes que contribuíram para a sua edificação, e outros pequenos detalhes que se assemelham às recompensas de quem folheia os álbuns Onde está o Wally?
Le Photographe, 2 volumes até à data. Guibert, Lefèvre, Lemercier (Dupuis)
A série de álbuns Le Photographe, colaboração estreita entre um fotógrafo, Didier Lefèvre, e um autor de banda desenhada, Emmanuel Guibert, reconta as viagens do fotógrafo acompanhando uma missão dos Médicos Sem Fronteiras no Afeganistão, nos anos 80. Curiosa alternância: cada prancha (página) apresenta tanto vinhetas desenhadas como fotogramas, fotografias, provas de contacto, algumas mesmo riscadas, como na escolha prévia à publicação. Num diálogo singular entre fotografia e desenho, surgem toda uma série de questões, no que diz respeito à complementaridade ou oposição das duas linguagens, sobretudo no seu uso diegético, a sua percepção solitária e combinada, os seus propósitos, se uma está ou não em função da outra, que funções distintas assumem, que hierarquias se estabelecem, etc. Nalgumas pranchas parecerá mais simples o diálogo que estabelecem, noutras mais complexo, mas é preciso ver com muito mais atenção do que se fosse apenas uma em uso... Passível que é fazer uma narrativa com apenas um dos meios (fotografia ou desenho, isto é, foto-novela ou banda desenhada), que se passará ao misturá-los? Tornar-se-á a linguagem mais complexa ainda? E estaremos perante uma simples mistura? Ou algo bem mais múltiplo? Bom, a resposta será o leitor que a construirá aos poucos e com a leitura deste álbum que, para mal ou para bem, é diverso.
(aguardem mais desenvolvimentos, após encontro com Guibert, por ocasião do Salão Lisboa de 2005)