10 de abril de 2005

La Musique du Dessin. Edmond Baudoin (L'An 2). Cantar com o Desenho 2.


Se aceitarmos Rodolphe Töpffer como o "inventor da banda desenhada" - facto que tem tanto de arbitrário como de operativo - verificaremos que a teorização da banda desenhada nasce ao mesmo tempo que a sua própria linguagem. Melhor, é a própria experimentação da linguagem que a vai tornando linguagem, e essa mesma experiência que se expressa também enquanto teoria, magistral e surpreendentemente exposta em Essai de physiognomonie, do autor suíço, publicado em 1845. Tal como outras artes entretanto desenvolvidas ao mesmo tempo (e penso obrigatoriamente no cinema) ou outras que vinham de trás mas começam a se alterar perante outros factores (a pintura dita "moderna"), também a banda desenhada se vai desenvolvendo (poderia dizer evoluindo, crescendo...) com a sua própria experimentação. Porém, ao contrário das outras artes mais geralmente aceites, são poucos os cultores do seu próprio pensamento. Ao longo da sua história, brilham mais os autores que sobretudo expõem aspectos técnicos (Will Eisner é o caso-mãe) ou saladas semiótico-comunicativas (Scott McCloud), do que aqueles que procuram estabelecer princípios internos e morfológicos da criação da banda desenhada. Há depois os teóricos, claro (Groensteen, Peeters, Baetens, Morgan, etc.). Baudoin apresenta-se a fazer algo ligeiramente diferente: não são blocos de aulas, mas antes trechos de pensamento que nos oferece. Mais recentemente, um outro autor mostra-se muito próximo de Baudoin nesta atitude de fazer emergir da própria acção de criar o espaço real do pensar essa mesma acção. Falo de Joann Sfar, especialmente nas várias anotações à margem de textos clássicos (a sua La petite bibliotèque philosophique) e nalgumas magníficas páginas de Ukelele.
La Musique du Dessin não é mais do que o culminar de um trabalho de investigação e pensamento sobre o desenho (e sua implicações imediatas) do autor francês, que já se expressara noutros locais, desde as entrevistas até trechos dos seus livros mais "normais" (seja o que for que isto quer dizer), até aos seus álbuns mais íntimos (Éloge de la Poussière, Chroniques de l'éphémère, Le Chemin de Saint-Jean, etc.), até ao mais recente Questions du Dessin, que colecciona as pequenas "Lições-ensaio" que dera na revista infantil Dada. Ler Baudoin é entender o seu pensamento sinestésico - muitas vezes fala ele de "desenhar é dançar", "a música do traço", "procurar o ritmo da linha", etc. Este pequeno mas maravilhoso livro atinge um máximo de poeticidade nas pequenas "perguntas" que deixa no ar... Na verdade, Baudoin não nos oferece lições, conclusões, fórmulas, mas antes abre-nos espaço para podermos entender quais são as questões que o fazem continuar a trabalhar... "Je ne sais pas, j'apprends encore." deverá ser o fio vermelho desta obra. A primeira parte, sobre pontos e linhas fazendo rostos (e que me permite aproximá-lo de Töpffer, Sfar, mas também de Wittgenstein!), dá vontade de ler em voz alta, muito alta...
Outra afinidade de La Musique du Dessin será com o livro "teórico" do pintor chinês Shitao, que é bastamente citado por Baudoin. A linguagem das manchas, o vazio como comunicante, e o interesse pela figura humana como presente em todos e quaisquer traços do desenho são alguns desses pontos de contacto.
É de facto interessante mas preocupante também que haja sempre um vivo afluir a exposições de "desenhos" de autores de outras áreas - arquitectura, pintura, cinema, etc. - mas pouca atenção ao trabalho de quem se dedica ao desenho por ele mesmo, procurando os seus limites internos, explorando as suas capacidades, discorrendo sobre as suas dobras e forças, sem o ver como trampolim a outras plataformas.
A quem interessar descobrir como se pode descobrir poesia e música num traço a negro, este é um livro obrigatório, que imagino poder vir a tornar-se numa espécie de "bíblia" de desenhadores inteligentes e abertos à sensibilidade. Posted by Hello

1 comentário:

Pedro Moura disse...

Olá, Marcelo D Salete. Acredites ou não, conheço o teu trabalho, da "Front". Como não posso responder por email, deixo aqui umas palavras. Pouco interessa tentar estabelecer hierarquias entre autores, já que cada um trabalha em territórios distintos que não são redutíveis a dois ou três pontos ou traços comparáveis, e os própósitos variados que surgem e fazem criar uma obra podem jamais coincidir e ainda assim atingir um panorama aproximável... Seja como for, Baudoin não é um autor de massas, mas sim para um leitorado exigente e, sobretudo, maturo. é também um autor que exige dedicação: mergulhar na obra completa dele é um prazer que não se compara com a fruição de cada livro. Há qualquer coisa - tenho uma ideia de quê - no seu sentido holístico que torna essa fruição um prazer inominável.
Dito isto, tomo minhas as palavras de um grupo cómico português: se Baudoin fosse uma equipa de futebol, e jogasse contra outra qualquer, por mais imparcial que eu quisesse a ser, a vitória de Baudoin seria sempre 15 a 0!!
Um bem-haja e a minha esperança que o Brasil encontre editor para Baudoin (Portugal também não tem e duvido que seja rapidamente que o tenha). Abençoado seja o mundo da internet!
Só uma coisa, eu não sou o António (Franco Alexandre)... Esse é poeta, mais inteligente que eu e merecedor de todo o respeito. eu sou o Pedro, um jagunço da crítica de quadrinhos aqui do pedaço...
Quem estiver interessado no trabalho de Mr. Salete, que vale a pena, chequem o site, indicado acima e aqui repetido: www.dsalete.art.br
Tchau!