11 de fevereiro de 2007

Un Objet Culturel Non Identifié. Thierry Groensteen (L'An 2)

Groensteen deveria dispensar apresentações, caso o território da banda desenhada o fosse coesamente, em que a ideia de uma aturada e contínua investigação fosse não só respeitada como emulada. No entanto, mesmo entre os cultores ou aspirantes a discursadores em torno da banda desenhada, parece existir um bom número de pessoas a fazer orelhas moucas e tábua rasa de todo um historial (décadas) de uma bibliografia académica existente. Como disse num outro contexto, começar do zero é pura e simplesmente um exercício de preguiça mental e desonestidade intelectual.
Para aqueles que o ignoram, eis então uma brevíssima apresentação de Thierry Groesnteen: crítico faz décadas, desde o Cahiers de la Bande Dessinée, director do Centro Nacional da Banda Desenhada e da Imagem de Angoulême (no livro, Groensteen explica as razões, detestáveis, que levaram à inclusão desta última palavra, que por cá se imitou sem reflexão) e editor da 9ème Art, editor-mor da cada L’An 2, autor de variadíssimos livros fundamentais no estudo da banda desenhada, inclusive o seminal Système de la Bande Dessinée, um dos cultores teórico-práticos da Oubapo, instigador de toda uma série de acções relativas a exposições, catálogos, estudos, e o costumeiro “&tc.et.al.” A razão pela qual pareço estar a ser exaustivo (e não o estou a ser, assegurem-se) sobre as várias funções de Groensteen no mundo da banda desenhada é justificável precisamente por terem sido esses variadíssimos papéis o que o levou a escrever o presente livro. Como disse Domingos Isabelinho, este não se trata propriamente de um ensaio na verdadeira acepção da palavra, muito menos o resultado de um estudo aturado, mas antes o testemunho informadíssimo de alguém que viveu no “olho do furacão”, poderoso, da cena francófona da banda desenhada.
Groensteen dispara em variadíssimas direcções, como se pour prendre date em relação a um rol de assuntos ainda insuficientemente, se de todo, debatidos nesta área. Alguns deles revelam da sociologia, da teoria da recepção, da crítica cultural, da crítica das políticas económico-culturais, outros de questões estéticas: como expor a banda desenhada? Como evitar um “rapto” da potencialidade criativa e imaginativa por géneros que se arrogam de todo-poderosos como a mangá mais comercialóide e a nefasta, virulenta high fantasy? Como evitar as armadilhas do facilitismo mediático e do desejo em se atingir um sucesso imediato versus um verdadeiro e profundo trabalho intelectual? Como, enfim, pensar a banda desenhada? Algumas questões prendem-se com simples testemunhos ou realizações textuais de grandes acontecimentos marcantes: o advento do CNBDI, a discussão das origens e o “combate” entre os Töpfferianos e os Outcaultianos, os avanços e recuos da crítica e da edição alternativa.
Um outro ponto de grande interesse é o momento em que, num capítulo muito interessantemente intitulado “A traição dos editores”, fala da banda desenhada como “uma arte sem memória”, tema que me é particularmente querido, conforme alguns textos nestes espaço já o deram a conhecer. No entanto, o caminho e a chave dessa ideia não é absolutamente coincidente, se bem que se toquem em grandes aspectos.
Groensteen demonstra, enfim, a razão pela qual é verdadeiramente um agente incontornável da cena da banda desenhada francesa (senão francófona, ou mais além, agora que o seu Système foi traduzido para inglês e é capaz de ter alguma repercussão junto à Academia americana). Goste-se ou não do trabalho que desenvolveu é inevitável conhecê-lo e recusar fazê-lo é, repito-o, preguiça intelectual da parte daqueles que querem criar determinados discursos relativos à banda desenhada, ou pelo menos um discurso que se revista de algum grau de credibilidade intelectual. Só tem medo de quem pensa que não pensa, afinal. E é também descoroçoante, de certa forma, pensar sequer em iniciar um cotejo entre Groensteen e os gestos importantes que iniciou e cumpriu com aqueles que muitas instituições portuguesas parecem querer prometer fazer mas os quais estão desde logo votados ao malogro, porque estão, à partida, minados por esse medo. O medo de pensar.

Alice's Adventures under Ground. Lewis Carroll (Frémok)


Ou A Recuperação da memória, parte 2.
Na história do mercado francês (ou francófono), o advento do álbum, fosse como o corolário das aventuras de uma dada personagem, coleccionadas após a sua pré-publicação numa revista (da Petit Vingtième à Pilote, da Métal Hurlant à (A Suivre)), da Charlie Mensuel à Hara-Kiri) ou fosse como pequenas revisitações dos famosos heróis, marcou a possibilidade da presença contínua dessas mesmas estórias: antes das chamadas graphic novels (nome falso quando se aposta nos trade paperbacks de séries anteriores), já os leitores francófonos podiam ter um livro de Zig et Puce, de Bécassine e, claro está, de Tintim. Isso levou, dizia, a uma relativa permanência de determinados títulos no mercado. Não é difícil encontrar, a qualquer momento, à venda livros de Hergé, de Saint-Ogan, de Chaland, de Tardi, de Moebius, de Franquin, para citar os mais famosos. Contudo, essa mesma situação leva a que essa permanência se note apenas nesses nomes de “grandes”, e que outros fiquem pelo caminho ou se percam no esquecimento, e não necessariamente de forma justificada, em termos da sua força estética. Cingindo-nos à produção francófona, diríamos que Francis Masse, Annie Goetzinger, Chantal Montellier ou Poussin (não o da Arcadia, mas o Gérard), e outros, caíram nesse pequeno esquecimento editorial. No entanto, desde os anos 90 que uma mão-cheia de editores menores, ditos alternativos (denominação que, de facto, como nos Estados Unidos, fazem sentido num mercado imenso e pluralista como o franco-belga, mas absolutamente nulo em Portugal, senão mesmo anedótico), para além de dos seus programas editoriais e estéticos específicos – penso em grupos relacionados com o movimento da Autarcix Comix, sobretudo os grupos Fréon, Amok, depois ambas fundindo-se na Frémok, e L’Association – também deram início a um percurso cuidado de reedição de obras “perdidas”, ou pelo menos fazendo parte de uma Memória muito especial. É óbvio que quase sempre essas reedições são de obras que espelham a mesma política e posição estética que as das obras editadas pelos autores contemporâneos dessas casas. Assim, a Fréon, com a sua sublime e empolgada esteticização do visual, é natural que reeditasse Che, de Breccia pai com Breccia filho, uma hagiografia que passa pelo experimentalismo total da matéria gráfica; a Amok, no seu intuito político de vozes dissidentes da (falsa) hegemonia francesa, repesca um ilustrador como Kamel Khélif; a Frémok, consubstanciando ambos os propósitos, procurou reintegrar-se numa longa tradição, quer francesa, com as obras de Alex Barbier, quer de muitos outros países (inclusive Portugal); e L’Association, com um maior pendor sobre a legibilidade e a literariedade da banda desenhada recuperasse Edmund Baudoin, Jean-Claude Forest, Francis Masse, Gébé, e até um Massimo Mattioli de uma produção mais infantil. Estas insistentes revisitações, além de marcarem na História o território que cada uma das editoras pretende, não fundar (pois o procurarem os seus exactos “precursores” afirma uma certa continuidade), mas esclarecer e consolidar, torna-se cada vez mais presente e forte. A elaboração de uma ideia de união intrínseca entre os gestos de desenhar e o de escrever também tem aqui o seu papel.
É precisamente a todo este “agenciamento” que se pauta esta recente edição, de um fac-simile do manuscrito de Lewis Carroll que o mesmo ofereceria à pequena Alice Lidell e suas irmãs, onde apontara e desenhara pelo seu próprio punho as aventuras da outra Alice, e as suas “Aventuras no Mundo Subterrâneo”. A existência de manuscritos com desenhos é uma tradição antiquíssima, desde o surgimento do próprio processo de escrever em uma qualquer superfície a guardar. A existência dos gestos de um só autor que quisesse unir os gestos de desenhar e escrever são também antigos: Matthew Paris fê-lo no livros das suas Viagens, Hans Holbein não pôde ler a sua cópia d’O Elogio da Loucura sem desenhar na margem, William Morris construiu um livro de poemas seus para oferecer a Georgiana, mulher de Edward Burne-Jones, com desenhos de Charles F. Murray; Sfar fá-lo continuamente de um modo; Tom Phillips fá-lo de outro. Carroll não percorre um gesto diferente nesse sentido. Se olharmos as imagens que ele fez para o seu Alice, vemos que tinha uma noção de figuração sólida, se bem que o tipo de aproximação dos rostos fosse demasiado solta para os gostos mais conservadores da sua época (não obstante a existência de um Doyle na Punch, ou de um Töpffer!), o que levou o seu editor a convidar Tenniel para a construção das imagens. Porém, esses desenhos de Carroll são hoje claramente passíveis de uma apreciação positiva directa. Tenniel, seja como for, redefiniria a imagem de (ambos os títulos) Alice para sempre, sobretudo depois de ter sido rapinado pela Disney (curiosamente, a companhia que mais combate o plágio, até de formas ridículas; veja-se o Rei Leão ao lado de Kimba, filme de Tezuka); e Alice seria revista vezes sem conta, pelos mais marcantes ilustradores da História dessa arte (de Arthur Rackham a Otto Seibold, com um filme em flash).
Por outro lado, a própria história da literatura ilustrada seria uma fonte constante de trabalhos magníficos de diálogos, mesmo que não haja essa união de gestos, mas uma mera co-habitação entre o texto e a imagem – na verdade, os exemplos em que penso não são “meros” de modo algum, mas conseguidos: as alianças entre Charles Dickens e Cruikshank e “Phiz” Browne, entre Jules Verne e Alphonse de Neuville e Édouard Riou, entre Oscar Wilde e Aubrey Beardsley e Jessie Marion King, entre muitos artistas das vanguardas russas (Lebedev acima de todos?)... O divórcio entre texto e imagem é possível e recorrente, mas termos uma edição destes autores literários sem as imagens que foram criadas, no seu próprio tempo, em colaboração por vezes, para esses textos parece-me ser uma pequena violência, sobretudo para com a Memória de que falo insistentemente, da História da Ilustração (e da Banda Desenhada também, por vezes, numa perspectiva ampla).
Esses desejos em repor um equilíbrio ou de novo em movimento essa Memória implicada parece-me ser aos poucos cumpridas por todos estes projectos editoriais, deste lado e daquele do Atlântico.

Popeye, vol. 1. E.C. Segar (Fantagraphics)

Ou A Recuperação da Memória, parte 1.A banda desenhada, já o disse noutras ocasiões, é uma arte sem memória. Esta é uma questão complexa, com várias vertentes, e fico feliz por ver que é também uma questão debatida por outros ensaístas dedicados à banda desenhada, de longe mais profícuos do que posso fazer num espaço destes (refiro-me a Thierry Groensteen e ao seu último livro). É verdade que teríamos de fazer distinções entre as tradições a que nos referimos com isso, já que em Portugal o funcionamento dessa memória é necessariamente diferente do que ocorre em França ou nos Estados Unidos, por razões e factores implicados de natureza social, económica, cultural, artística mais propriamente e, claro, histórica (sem cair no perigo de cair em discursos afectos à lógica do Geist nacional). O que pretendo apontar é uma diferenciação das outras artes logo à partida, pela relativa ignorância da sua própria história. (Mais)

Please Release. Nate Powell (Top Shelf)


Do debate possível sobre a autobiografia na banda desenhada, deixam-se as palavras anteriores e as promessas de discussão alargada (vejam-se os comentários, que pedem a vossa resposta, de David Soares, aqui).

Serve este post, portanto, para anunciar brevemente a edição deste título de Nate Powell, jovem autor com uma mão-cheia de mini-comics e antologias da smaller press. (Mais) 

American Born Chinese. Gene Luen Yang (First Second)

Uma das mais constantes acusações que se fazem à autobiografia em banda desenhada, ou para sermos mais precisos a esse género no interior do modo da banda desenhada, é o facto de por terem os seus autores uma vida “banal” não poderem senão criar uma obra de “banalidade”. A primeira linha de defesa estará em perceber o que se entende por uma “vida banal”, questão que nos lança em (também uma banalidade em si) ou uma tautologia – “toda a vida é banal”, sendo o que há de mais comum entre o ser humano (vivo) – ou um paradoxo – “nenhuma vida é banal”, com os laivos que isto tem de religioso-dogmático ou de maravilha perante o milagre termodinâmico. A segunda prende-se com o nosso território, no qual, treinado até à exaustão na aventura ou na caricatura de cordel (o mais banal), o bedéfilo mais primário quer impedir que esta arte vise o que há de menos espectacular em todas as vidas, que são as experiências do quotidiano. É como se apenas as experiências mais dramáticas (para não dizer histriónicas) fossem as únicas dignas do refiguração pela arte: o combate com um cancro, a morte de um próximo, a sobrevivência a uma tragédia colectiva, uma doença na família, a escape a uma opressão, a descoberta de um segredo, a perda da inocência, a fuga de um amado. Em terceiro lugar, uma ignorância. Recordarmo-nos de um qualquer episódio da nossa infância porque simplesmente mergulhamos um pedaço de madalena num galão não tem, em si, absolutamente nada de extraordinário nem “digno” de ser (re)contado; contudo, através das palavras de Proust, a transfiguração de um momento desses num dos mais sublimes trechos da literatura mundial é, ou deveria ser, uma... banalidade. Mais, falaria até de uma falta de sensibilidade e de curiosidade perante a existência do outro, de um próximo humano. Um dos problemas dos géneros é que os horizontes de expectativa criados por eles são, à partida, já dados. Antes mesmo de ler um qualquer livro que envolva o Tintim, o Batman, ou o Popeye, sei o que esperar do fim ou da resolução do livro: o herói vencerá. Até sei o contrário, dados os casos correctos: Charlie Brown, sempre, perderá. Mas que horizonte de expectativas teremos nós perante a vida, em geral, e as experiências reais da vida dos outros? Um verdadeiro horizonte. É preciso caminhar e só depois do caminho descobriremos que experiência foi, para nós (poder-me-ão dizer que, ao se depararem com obras autobiográficas de adolescentes – mesmo tardios – já sabem alguns dos elementos à espera: uma poeticidade exacerbada, um fechamento ao alheio e a uma maior amplitude de experiências, etc. certo. Mas é caso a caso que isso ocorre, não se trata de um horizonte previsto). Aliás, à medida que se vai tornando cada vez mais um género por direito próprio, e já não uma excepção (como o seria com Harvey Pekar ou Justin Green, por exemplo) a banda desenhada autobiográfica permite todo o tipo de explorações, umas mais simples outras mais poéticas. Caminhemos, pois, em direcção a este caso em particular.
Pouco importa, portanto, a meu ver, o que se conta. Importa antes o como. Logo, algo nos força a estudar, a analisar, caso a caso (repito-o até ser... banal). A luta por uma vida condigna com spina bifida é algo de meritório em termos humanos, quotidianos, éticos, mas na realidade, tangível e histórica, e não faz com que The Spiral Cage de Al Davison se torne uma obra meritória de uma atenção para além do circunstancial. Edmund Baudoin não tem experiências esmagadoras a contar, para além daquelas que temos, tivemos ou teremos nas nossas, mas cria algumas das páginas mais intensas de banda desenhada francófona contemporânea. O mesmo se poderia dizer de Fabrice Neaud, com o seu Journal, mas este autor sublinha sobretudo as suas “crises existenciais”, de uma forma mais explícita.
Gene Luen Yang apresenta-nos uma obra descomplexada quer perante os acontecimentos que retrata quer o modo como os retrata. Não há histerismos nem sublevações emocionais de maior ou gratuitas. Eu diria mesmo que há uma preocupação, conseguida, em garantir algum grau de leveza (vide Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio). O facto de ter sido seleccionado para os finalistas do prestigioso National Books Awards é uma conjuntura social interessante perante a questão da legitimidade cultural da banda desenhada, mas é assunto que não me importa aqui explorar.
American Born Chinese lida, de caras, com a questão da identidade, a qual é sobejamente discutida nos nossos dias pelas comunidades de “outros” no seio de uma cultura e sociedade como a americana (mas outras também, ainda que a graus diferentes, como em França, Inglaterra, Portugal) que, paradoxalmente, se vê como homogénea. É uma questão debatida nos campos das artes visuais, das letras, do cinema, por imigrantes, segundas gerações, adoptados. Na banda desenhada em particular, mais ou menos directa, mais ou menos constantemente, é verificado desde Four Immigrants Manga, de Yoshitaka Henry Kiyama a Same Difference.., de Derek Kirk Kim (amigo e colaborador de Yuang), passando pelo The New Sun de Taro Yashima ou Citizen 13660 de Mine Okubo, e até Adrian Tomine (para nos cingirmos à comunidade “asiática”).
O que se verifica – de um modo desambíguo – é o entrelaçamento de três narrativas: um recontar da vida de Son-O-Kong, o rei-macaco, personagem do clássico da literatura chinesa Viagem ao Ocidente (que deu origem, no nosso campo, ao Dragonball de Akira Toriyama e a Monkey King de Katsuya Terada, da qual tive oportunidade de falar no clubotaku; e em rigor poderemos dizer que a sua primeira adaptação à mangá foi feita porHokusai, o cunhador da palavra que é hoje empregue pelos japoneses para falar desse objecto cultural não-identificado); a chegada do jovem Jin a uma nova escola dos subúrbios de uma cidade norte-americana, ou uma pequena cidade do interior; e o que parece ser uma sit-com, cujos protagonistas são um jovem caucasiano e o seu recém-chegado primo chinês, um estereótipo cruelmente racista (para os nossos parâmetros actuais, mas nada alheio à cultura de outros tempos: basta ver Breakfast at Tiffany’s). É apenas na resolução final (a anagnorisis, uma estrutura clássica cujas bases foi Aristóteles quem lançou na discussão narratológica) que entendemos ser esse entrelaçamento total, em que uma das estórias se implica na outra, onde elementos convergem e se resolvem, em que um valor num dos níveis se redefine noutro. Proporia que lêssemos cada uma das linhas da seguinte forma: o relativo ao rei-macaco é uma procura em integrar a memória colectiva (a tradição clássica chinesa, mesmo que se torne em alguns momentos complacente para com toda uma série de chavões atreitos à percepção da Ásia pela cultura pop e cool: o kung-fu, um espiritualismo deslavado [há até um cruzamento com o Catolicismo, ao vermos as quatro personagens do clássico literário, budista, reinventados como os Três Reis Magos do Cristo], até um certo sentido de design que é muito esclarecedor); o da vida de Jin na escola é o da vida “normal”, “quotidiana”, “real”, ou se preferirem até, “banal”, onde de facto se colocam as questões da integração e estranheza, preconceito e assimilação, ignorâncias (dos demais) e desejo em ser amado; finalmente, o da sit-com, ou por outras palavras a memória pessoal, que não é mais do que a transfiguração total dos desejos e dos medos, onde os fantasmas ganham corpo e cidadania, tornando-se opressores até, e que espelha, penso, uma espécie de memória intermédia, de identificação com uma comunidade mais reduzida (os imigrantes ou segundas gerações de chineses na América).
Estes três níveis são independentes, quase podendo ser lidos separadamente. A sua convergência final não é surpreendente, se bem que não possamos dizer que era totalmente previsível. É um meio-termo que se vê consubstanciado por uma estratégia, como disse, leve – uma espécie de "ligne claire" e de estilo Nickelodeon – que nos impede de, não obstante a constatação de três espécies de memória em co-habitação e convergência final, encontrar aqui um modo de as estruturar forte o suficiente para julgar o livro como significativo para o seu território muito próprio. Desejar-se-ia que a contaminação entre a “realidade” e a “ficção” fosse mais sustentada, até mesmo pelo preço da ambiguidade e da não-resolução da crise. Não estamos perante nem um Bildungsroman (mesmo que de sinal baixo como o Blankets de Craig Thompson) nem sobre uma revisitação do si-mesmo (como Baudoin faz, constantemente), tampouco uma redescoberta ou reinvenção de uma faceta individual (como em Huizenga), e muito menos perante uma profunda perscrutação da alma (como em Tsuge). Estamos perante um exercício, repito-o, de leveza, que emprega as estruturas da autobiografia para colocar uma questão, a da identidade (nacional, racial e, claro, pessoal), que se resolve em felicidade com um breve entendimento e uma insistente procura pelas raízes, ali ao virar da esquina (literalmente, cf. o livro).
Que nada disto, porém, nos impeça de apreciar o gesto de um autor encontrar, na “banalidade”, um certeiro sentido de “leveza”.

Batman Year 100. Paul Pope (DC Comics)

Existe um fenómeno óptico conhecido como parentélio, que é quando a luz de um determinado corpo emissor de luz parece estar num ponto espacial, mas na verdade se encontra noutro, e a luz é desviada por uma qualquer atracção gravitacional que nos induz a essa ilusão e erro. Por outras palavras, parece vir essa luz de uma direcção, mas de facto encontra-se noutro território. Paul Pope é aparentemente um cultor da banda desenhada alternativa – distinção que faz sentido num mercado como o dos Estados Unidos -, no mesmo campo de um Adrian Tomine ou Seth ou Julie Doucet; mas essa perspectiva é falsa. Paul Pope é, como muitos outros autores, fãs incondicionais do mainstream que sonham nele entrar e participar o quanto antes mas que, no início das suas carreiras, dão passos na chamada “small press”, associando-se a públicos com os mesmos interesses. Ou seja, a característica de se ser “alternativo” não reside na sua expressão idiossincrática nem nas suas pulsões intrínsecas, mas somente nas estratégias de produção e distribuição. Pope está, portanto, lado a lado neste sentido com autores como Ed Brubaker, Kevin Smith, Brian Michael Bendis, David Lapham, entre outros (Alan Moore, Grant Morrison, Warren Ellis, pelo contrário, simplesmente mudaram-se de um mainstream – o britânico, menor – para outro – o americano, mais visível). Por outro lado, em termos de desenho, Pope é aquele que melhor integrou uma fortíssima influência da banda desenhada japonesa mais visível - o que é natural, tendo trabalhado para a Kodansha no Japão - e até banal (a ideia/preconceito/saco comum de mangá do leitor desatento ou do fã acriterioso) para tentar construir um estilo muito pessoal. Se o conseguiu ou não, depende de alguns factores, mas independentemente das inclinações do gosto, as influências a que me refiro são bastante, claramente, visíveis: na figuração das personagens, de traços límpidos para o rosto mas acumulados para dar conta de movimento; a estruturação das pranchas, simples e legíveis, contrastando com a profusão de informação aquando da representação de espaços interiores, cheios de objectos e piadas internas, de mecha (toda a parafernália tecnológica típica da ficção científica de um certo imaginário das mangás e animés); uma escolha contínua para representar raparigas jovens e núbeis extremamente sensuais e cool (um piscar de olhos a uma leve “barely legal porn”); o modo plástico como as onomatopeias se formam, comportam e ocupam a vinheta; etc... Aliás, Pope fez disso matéria de exploração numa colectiva dedicada à mangá de vários autores norte-americanos e ingleses, intitulada Manga Surprise!
Todos estes factores são demonstrativos de uma vontade e de uma inclinação, os quais me impedem de ver Pope como um verdadeiro artista com uma preocupação “alternativa”. Bem pelo contrário, a sua preocupação é criar ambientes cool, que faça convergir toda uma série de elementos que para isso apontam e falsamente parecem criar um universo diegético adulto, como se poderá verificar com a sua saga The Ballad of Doctor Richardson, ligeiramente pontos acima de uma diatribe de adolescente contra o inevitável crescimento e amadurecimento (e perdas associadas...). Rapidamente Pope desviar-se-ia para o seu território de eleição, como o livro com título gráfico não-pronunciável (influências de Prince?) editado pela Horse Press em 2003, ou Heavy Liquid.
Pope não está sozinho neste comportamento. Jim Mahfood, Mike Allred, Jay Stephens fazem o mesmo, convergindo uma cultura pop com uma certa consciência contemporânea pelo que rende no mercado da arte contemporânea, uma certa atitude urbana, mas tudo dissipado por uma facilidade de superficialidades e falsas poeticidades. O que nos leva a este Batman.
Penso que a exploração da personalidade de uma personagem que não é mais do que uma trademark – com todos os impedimentos que isso implica – não pode de forma alguma ser consolidada por um só autor (mesmo que esse autor seja múltiplo, como Dupuy e Berberian, para dar apenas um exemplo); mas até essa situação é interessante, porque pode levar a uma multiplicidade criativa ao longo do tempo, que é o que acontece no modo de produção da DC (e da Marvel, etc.). Batman, em todo o caso, é a personagem mais interessante alguma vez criada no seio do mainstream de superheróis norte-americanos – independentemente da frase de Dave McKean, de não gostar deste “menino rico que se mascara para bater em pobres”, há de facto uma base estrutural na sua história (o famosíssimo trauma infantil que o desenha) que permite algumas das revisitações e empregos mais interessantes feitas neste campo: por Adams e O’Neill, Moore, Morrison e, acima de todos, Frank Miller; todavia, mais do The Dark Knight Returns, com os seus laivos de macho-fascismo, é com Batman: Year One, em colaboração com David Mazzucchelli, que Miller dá continuidade ao seu trabalho de policiais com octanas excessivas (que experimentara sobretudo com a personagem Daredevil/Demolidor) mas redesenhando a personalidade de Bruce Wayne de baixo para cima.... Aliás, é a esta obra que Batman: Year 100 responde, obviamente. Mas perguntemo-nos: que acrescenta Pope ao mythos ou ao pathos de Batman? Pouco. “Coolness”, acção, uma esfarrapada desculpa de humanizar o herói através da visibilidade da sua organicidade física (o cansaço, a respiração ofegante, o suor, o cuspo, o sangue, etc.), mas que de pouco ou de nada serve a um ser que sabemos ser – sempre, constantemente – “super”, isto é, indestrutível (nem que seja o seu ego). Diga-se de passagem que Pope não é o único problema neste falhanço estrutural. Grant Morrison, por exemplo, acaba por conseguir fazer um caminho mais divertido e interessante com a sua escrita actual para o Super-homem, mas um outro, inócuo senão ridículo, precisamente com Batman – o que é estranho para quem escrevera Arkham Asylum. Parece que só tentando superar The Dark Knight Returns (já de si insuperável pela hipérbole em que mergulhava, e cuja segunda dose de Miller apenas conseguiria roçar a palermice pop) conseguirão os autores seguintes explorar esta personagem? Estão gorados à derrota.
Este é um daqueles casos em que se diz que um autor “é igual a si mesmo”, epigonismo inevitável mas que se emprega nos casos de uma linearidade de percurso, num contínuo sem mudanças. No caso de Pope, isto traduz-se por muito estilo sem substância. “Muita parra, pouca uva” mesmo.

The Ballad of Halo Jones. Alan Moore e Ian Gibson (2000 AD)

Reconhecerão os leitores os nomes de Hilary Robinson, Jack Adrian, Alan Hebden, T. B. Grover, G.P. Rice, Oleh, Murdoch McKenzie? Provavelmente não, pelo menos sem ajudas de dicionários de autores ou enciclopédias do ramo. Mas se se preocuparem em qual o espaço em que esses mesmos nomes surgiam, e se ao mesmo tempo descobrirem que junto a eles se instalava o de Alan Moore e de outros igualmente famosos, poder-se-á desenhar uma ideia do que significa a “diferenciação pela qualidade” ou “pelo mérito próprio”. Ora estes nomes todos estão associados no grupo inglês da Fleetway e outras companhias, verdadeiro cadinho do mainstream britânico dos anos 80, de onde saíam títulos como Time Twisters, Judge Dredd, Sam Slade Robo-Hunter, Rogue Trooper, e a revista 2000 AD. Na verdade, seriam os nomes de outros escritores a emergir desse campo para se tornarem mais conhecidos depois de trabalharem nos Estados Unidos, para os gigantes do mainstream (sobretudo dos superheróis) da Marvel e da DC (a famosa “Brit wave”): Alan Grant e John Wagner (na verdade o “Grover” acima citado é um pseudónimo de Wagner), Pete Milligan e Grant Morrison, e, sobretudo, o de Alan Moore. Nem todos os autores, por mais fortes que eles sejam no auge das suas carreiras, permitem que se revisite as suas primeiras experiências de trabalho, sobretudo quando estas se prendem a razões alimentares. Nesse campo, poder-se-ia falar de Dino Battaglia, de Milo Manara, de Hugo Pratt, de Chris Ware, etc.
Mas ao lermos todas essas revistas inglesas, apercebemo-nos de que é algo penoso atravessar algumas experiências ineptas e inconsistentes de muitos destes autores (quer dos famosos quer dos esquecidos), mas vislumbramos momentos raros de inteligência, de humor, de um rasgo realmente de diferença. As mais das vezes, esses momentos são-nos dados pelas histórias de Alan Moore, que escrevia para praticamente todos os títulos acima mencionados.
Por ser um génio (é esta a palavra que surge aqui e além quando se fala de Moore)? Não, não me parece. Como já disse algures, a genialidade é um rasgo existencial que ultrapassa a própria inteligência da pessoa, da sua consciência, da sua vontade. É como se fosse uma força para além dessa pessoa que por ela se expressasse. E é rara, surpreendente e necessariamente incompreendida no seu imediato momento – afinal, a originalidade é algo que não existia, logo não a podemos ver e compreender, ela obriga-nos a repensar e a reaprender a ver. Moore não é propriamente um génio, no verdadeiro sentido da palavra. E não o é porque é um autor atentíssimo, distante dos objectos que perscruta e inventa, e calculador (não “calculista”, entenda-se). A sua obra-prima de deconstrução – verdadeiramente a primeira, depois da MAD – dos superheróis, Watchmen, é, a meu ver, mais uma maravilha de ourivesaria de filigrana (ou melhor, de relojoaria, para nos associarmos de mais perto ao tema do livro), do que qualquer outra coisa. E esta sua competência de mergulhar em profundidade num determinado género da banda desenhada para recombinar os seus elementos com estilo e humor é o que o tornava destacado desde então até praticamente aos nossos dias, se bem que as últimas produções deixem algo a desejar, com a excepção da série Promethea.

Halo Jones, que Moore escreveu para Ian Gibson desenhou, não é, diga-se directa e paradoxalmente, “nada do outro mundo”, deveras. Penso que as histórias que Moore criou para a Time Twisters ou Shocking Futures eram bem mais conseguidas, brilhantes e surpreendentes – dessa típica surpresa que apenas o “pulp” nos pode dar, e que na banda desenhada seria cultivada sobremaneira pelos títulos da EC Comics – do que estes episódios sobre uma rapariga dos subúrbios de uma Londres futura que parte para o espaço sideral à procura de uma vida mais preenchida. No entanto, para um “robô-escritor” (a brincadeira que a revista fazia com os seus colaboradores) dos títulos da 2000 AD, Halo Jones é ainda uma linha diferenciada das restantes (conjuntamente com os outros projectos de Moore, como Skizz, com Jim Baikie, e D.R. & Quinch, com Alan Davis). Estamos perante uma tentativa, bem conseguida, penso, de escapar da criação de histórias curtas, auto-conclusivas, de “episódios soltos” de uma “situação eterna”, que era o modelo da produção de então em que Moore se inscrevia; uma maneira de moldar profundamente uma personagem humana a partir dos pobres materiais disponíveis.
Em todo o caso, é mais uma obra de curiosidade do que de maturidade. E curiosamente, está Halo Jones mais próximo dessa maturidade do que as últimas produções de Moore, quer directa (Top 10, por exemplo) quer indirectamente (Albion).