Não é que não queira deixar de dar os parabéns à Asa por esta aposta. Não me custa nada enviar piropos às editoras nacionais, mas custa-me, sim, estar sempre a precisar de acrescentar o terrível chavão de "pedrada no charco", pois seria bem mais feliz se o nosso charquinho, em vez de levar de vez em quando com uma pedrada, estivesse sempre em flutuações mais felizes. Enfim, que fosse, como noutros sítios - Espanha, para não ir mais longe -, um rio, não um charco.
A edição de Buscavidas, uma obra de 1982, não me parece se dever a nenhuma aposta supreendentemente nova da parte dos editores portugueses, ou corresponder a um programa próprio. Breccia ainda não é suficientemente conhecido em Portugal por todas as gerações, mas não será este o primeiro episódio de uma suposta (re)descoberta, já que o que surge é um acoplamento à segunda edição deste livro em Espanha, pela Planeta de Agostini, e em França, pela Rackham (este acoplamento, como digo, reverbera noutras plataformas da Asa, como a biografia dos autores, cut-and-translate-and-paste da enciclopédia da Lambiek, sem essa indicação, o que me parece pouco aconselhável). Porém, esta edição portuguesa é bem feita, com uma boa tradução (salvo um ou dois estranhos desvios de nível de discurso), e apesar de uma impressão que poderia ser melhorada.
No entanto, permitam-me (mais) um exercício. Lendo o texto que se apresenta na contra-capa, e rebatendo cada um dos seus argumentos, descubramos este livro.
Diz-se ser esta uma das "obras mais conseguidas" de Breccia. Logo, que o autor "explora, uma vez mais, novos territórios gráficos". No entanto, este discurso de pouco serve quando se referindo, por um lado, a uma obra com mais de 20 anos e, por outro, a um público que, em geral, não estará assim tão familiarizado com a obra do argentino. Mas estes "novos territórios gráficos" que se apontam são mesmo nomeados: o "contraste entre as manchas de branco e negro". Não entendo de modo algum porque será este território novo, já que é esse mesmo território em que Breccia habitava desde o início da sua carreira, nos anos 40, e atingiriam o apogeu com Mort Cinder (escrito por Oesterheld a partir de 1962), a meu ver mais do que com El Eternauta (com o mesmo escritor). Já para não falar de Che, feito com o seu próprio filho Enrique, esse sim, a obra-prima indubitável deste desenhador, se bem que de um experimentalismo muito elevado, bem longe daquele que havia já experimentado titubeantemente nas suas séries anteriores. E, se bem que Breccia havia já trabalhado em séries infantis, não compreendo de todo porque é que Buscavidas "faz-nos lembrar os contos infantis", já que esta obra, escrita nos arreigados e violentos últimos anos da ditadura da Junta e do seu infame Proceso (dos quais foram vítimas familiares de Oesterheld, e, porque não dizê-lo?, a própria biografia de Che), nos apresenta troços de vidas abusadas de serem adultas, isto é, em que a inocência e a pureza usualmente atribuídas às crianças está absolutamente erradicada. Só se é o facto de o traço mostrar corpos bem menos realistas que as obras mais famosas de Breccia (mas estarei a fazer uma pausa com William Wilson e Dracula...?), mais avançados nas suas características físicas representativas de personalidades mesquinhas e ensimesmadas. Parece-me, portanto, que esse é um modo redutor de entender a escrita e a representação dos contos infantis e deste Buscavidas.
Quanto ao facto de Carlos Trillo ser um "genial argumentista", não discutirei o uso banalíssimo e irritante desse adjectivo - pois jamais se entende de facto o que se entende por genial, a não ser um acrítico "gosto imenso do que ele faz". Trillo já havia trabalhado com Breccia, e desta feita tinha uns quarenta anos e alguma experiência de trabalho, bastante diversificada, como iria continuar a fazer. Mas não deixo de notar que há como que uma espécie de amadorismo, talvez, algo que o prende, ao estar sob a alçada de Breccia. As "fábulas que deixam sempre no ar uma lição de moral", para continuar a citar e rebater o texto da contra-capa, são sobre um homem, de quem não saberemos nada, a não ser o facto de parecer um arquivista da vida dos outros. Mas qual é essa moral? Uma moral policial, de controlo social, em que cada vida é catalogada e arquivada para futuras inquisições, em todas as forças desta palavra? Ou será antes uma pequena e estranha tetativa de redimir as vidas tragicómicas que se retratam, as de membros de um povo sem satisfação amorosa, sexual, profissional, familiar? Se houver alguma moral, então é análoga à que se encontra em escritores como Max Aub, e os seus Crimes Exemplares. Ou seja, que o homem e a mulher, dadas certas circunstâncias - que Buscavidas, diagonalmente, tenta acusar e minar -, são capazes das mais puras das abjecções e vinganças.
Nota: o texto que aqui critico está na edição espanhola, e assim copiado para a portuguesa. Na francesa, há uma entrevista a Trillo, nalguns pontos iluminadora, e uma excelente nota editorial a abrir o livro. A responsabilidade do mau texto não é da Asa, mas sim a sua continuidade.
17 de junho de 2005
Buscavidas. Carlos Trillo e Alberto Breccia (Asa)
Publicada por Pedro Moura à(s) 1:10 da tarde
Etiquetas: Outros países
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1 comentário:
Apetitoso este!
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