30 de março de 2012

Les Yeux du Seigneur. Aurélie William Levaux (La Cinquième Couche)

Se já havíamos debatido a possibilidade de uma banda gravada (com Coché), e uma banda pintada (também com Coché mas outros autores poderiam ser arrolados), e variações múltiplas (pela fotografia, a escultura, etc.), é com Aurélie William Levaux que chegamos à banda bordada. Artista plástica que expõe o seu trabalho regularmente (nos circuitos galerísticos e museológicos), seria discutível se a agregação destes trabalhos num volume encadernado (é a segunda vez que o faz, na La Cinquème Couche, depois de Menses Ante Rosam) constitui uma mera colecção, se se trata de um catálogo, ou se se reformula esse conjunto num outro tipo de texto que procura outra ordem de coesão e significado, capaz de conquistar lugar numa outra disciplina – livro de artista, livro ilustrado, banda desenhada…
Os seus trabalhos consistem em desenhos feitos sobre panos de algodão cru cortados aproximadamente nas dimensões de uma folha A4, utilizando tinta, mas também introduzindo linhas bordadas, sobretudo a vermelho, e por vezes enxertos sobrepostos em pequenos apontamentos, tudo com costuras bem visíveis. Estas linhas compõem alguns dos objectos da imagem (um tronco de árvore, uma planta florida, os contornos e o corpo de uma personagem, pratos a lavar, uma vagina – dentata –, estruturas de emolduramento), mas não só, como veremos. Os tais enxertos parecem por vezes estar a servir de “correcção” das linhas que eventualmente se manterão por baixo, mas elas apenas são ilhéus em que se reforça a dimensão do material, da tactilidade envolvida (o fio é um rasto que se deixa ver, como uma linha crua a grafite ou uma pincelada vincada), da abordagem hábil. O livro ganha assim uma permanente textura delicada que jamais nos permite esquecê-la, jamais a transformando num simples fundo do que vemos, a ilusão da representação.
O que encontramos ao longo de Les Yeux du Seigneur são cenas inconjuntas de variadíssimas personagens, mas com uma grande incidência para mulheres, muitas das quais são “gémeas”, isto é, as suas características físicas – cabelos negros e fartos, sobrancelhas espessas e ligadas, um corpo robusto, um pequeno sinal na bochecha – repetem-se. Algumas dessas características repetem-se mesmo nas crianças, também do sexo feminino, e numa ou outra personagem masculina, tenha ou não o cabelo curto. No entanto, mesmo naquelas cenas em que não há uma total decisão se se trata de um casal, de um par de amantes lésbicas, ou de uma família, não é imediato se estamos perante uma daquelas cenas à Botticelli ou De Luca onde as personagens se repetem ao longo do eixo das suas acções no espaço. A ambivalência é, na verdade, condição da estruturação e leitura deste projecto. Se numa abordagem superficial o estilo figurativo de Levaux – linhas grossas negras, tramas densas para construir as vestes, os cabelos, os padrões complexos e/ou floreados dos vestidos, mas também o posicionamento dramático dos corpos, as relações que estabelecem entre si, através de toques furtivos ou amplexos apertados – nos faz recordar de Aubrey Beardsley, a leitura activa outros mecanismos de associação.
O primeiro ponto de comparação, então, será com o famoso ciclo de tapeçarias medievais conhecido como “A Dama e o Unicórnio”. Apesar da identificação dos cinco sentidos ou das virtudes, mais o desejo, nesse ciclo antigo ser mais ou menos claro, a presença de frutos, de cenas na praia, de pessoas abraçadas ou ao colo, de pássaros canoros, de veados bramindo, neste livro moderno, leva à possibilidade de afinidades sensuais entre uma e outra obra. Não há modo de fazermos corresponder imagem a imagem, claro está, nem sequer, parece-nos, é possível identificar “momentos” ou “episódios” em Les Yeux, ainda que possamos recriar conjuntos de imagens por algumas características (por exemplo, mas especulando, “cenas domésticas”, “cenas realistas/autobiográficas”, “memória de infância”, “cenas íntimas”, “cenas simbólicas”, etc.), mas existem elementos menores que permitem pensar nessa associação. Se tomarmos em conta, também, o estilo ou escola a que aquelas tapeçarias são associadas, dita de “mille-fleurs”, e que consiste na representação dos fundos como se se tratasse de um campo pejado de pequenas flores e vegetação rica, apercebermo-nos-emos do contraste efectuado pela escolha despojada, crua e mais simplificada de Levaux (ainda que as figuras desenhadas se apresentem com padrões complexos e tramas de linhas densas, como já indicado). É claro que o trabalho de Levaux não é uma tapeçaria, mas sim desenhos e bordados sobre algodão. Mas tampouco o é a chamada “Tapeçaria de Bayeux”, a qual mais rapidamente é chamada à colação de uma suposta história universal da banda desenhada por aqueles que negam a possibilidade de inscrição neste campo criativo desta e de outras experiências menos tradicionalistas, o que nos deveria fazer pensar. Ainda no seguimento desta associação, e como corolário da possibilidade avançada, está a cena “adicional” das tapeçarias medievais em que se lê “[à] mon seul désir”, a qual encontra um claríssimo eco numa imagem singular desta obra, onde duas mulheres sentadas apresentam bandeirolas saídas das bocas (mais um elemento a favor da aproximação medieval) onde se escreve “désir” e “intérdit”. A quem pertencerá, porém, esse desejo proibido?
Penso que valerá a pena transcrever a anedota final por inteiro, presente numa só página – existe matéria verbal, textos, balões de pensamento até, no livro, por vezes bordados, por vezes desenhados com tinta que se espalha nos fios de algodão – quase no final do volume, e que dá nome ao projecto: “sentia-me feia/então perguntei-lhe se/ela me achava bonita/ela respondeu/minha querida somos todos/belos aos olhos/do Senhor///isso destruiu-me a moral” (s.n.). As mulheres – de rostos repetidos umas nas outras, nas filhas, nos homens – têm aquelas características físicas apontadas acima, que por vezes, até por se apresentarem muitas vezes em rigorosos perfis e com os cabelos fulvos engrinaldados, recordam Frida Kahlo, não se coadunam com os regimes de representação da beleza feminina vigente. A própria presença de crianças, de episódios domésticos (de lavar pratos a máquinas da loiça em arco), de tomar conta de uma criança doente, de crianças deitadas na cama com a mãe, fazem com que todo este projecto possa ser pensado sob o signo do feminismo, filtro pelo qual a maternidade, o corpo e a doença, as expectativas de beleza e mesmo as relações intersubjectivas entre mãe e filha, mães e filhas, mulheres entre si e mulheres e homem e o mundo são repensadas por direito próprio, e não de acordo com modelos que partem sempre do homem como ponto primeiro.
É mesmo tentador ler estas relações num quadro lacaniano, se nos recordamos de como para esse psicanalista se estabelece uma oposição (cronológica, de desenvolvimento) entre o Imaginário, que corresponde ao espaço em que a criança vive, uma espécie de “interior” que é o domínio maternal, antes da linguagem, e o Simbólico, no qual ao se entrar, e que é também o processo de individualidade, marca o abismo irreversível da separação com a mãe. Ora, se sobretudo tomarmos em conta que a maior parte das imagens que representam a mãe e a filha (isto é, se esta identificação funcionar), mas também no caso de outras mulheres ao longo do livro, não apresentam distância física entre si, ora unidas em amplexos, ora colocadas numa espécie de ilha (como a Dama das tapeçarias), ora unidas pelas estruturas bordadas, pelos próprios materiais que as circundam e as manchas, etc., essa falta de distância parece estar a ser aqui explorada de vários modos expressivos. Claro que, tendo em conta que estas teorias psicanalíticas foram criticadas pelo feminismo dos anos 1970 como construindo a identidade feminina no interior de uma economia de representação patriarcal, é possível que todo esse edifício conceptual seja falho nestas interrelações subjectivas entre mulheres, que se podem estender para além do círculo estritamente familiar, e experimentado nas cenas “sociais” do livro de Levaux.
Ainda no seguimento desta leitura, surgem aqui e ali imagens mais centralmente dedicadas a essa abordagem. A vagina dentada, os comentários sexuais espalhados pelos textos, e, acima de tudo, um diagrama de uma mama, vista de perfil e com explicações dos seus elementos constitutivos (auréola, glândulas, adiposidades, etc.). Esse diagrama sublinha essa característica feminina exacerbada, como sendo um lugar simbólico (de alimentação, de desejo sexual, de doença), contrastando essa única imagem técnica e fria com os momentos de intimidade e proximidade (senão mesmo de “confusão”) entre as personagens.
As cenas panorâmicas, algumas das quais estão impressas em folhas duplas que se desdobram, e onde estão presentes grupos de raparigas em pátios de escola ou em florestas acompanhadas por veados, e este tom quase inaudível e tenso de uma violência não-dita, faz aproximar Levaux de Henry Darger. Mas onde este associava as suas imagens a um texto tremendo, e todo o seu projecto a um mundo ficcional que nasce da sua obsessão e desinscrição da “normalidade”, até mesmo psicológica, Levaux faz no interior de uma comunicabilidade social, ainda que procurando mecanismos oferecidos por essa mesma possibilidade – artes plásticas, o livro enquanto difusão, a arena pública -, uma tarefa que serve para derrubar essa mesma “normalidade”. Uma vez que se abdica aqui de construções convencionais e tradicionais da narrativa com imagens, encontram-se outros caminhos.
Não é de surpreender, por exemplo, que as composições optem por uma força centripetal de todos os seus elementos, como se se imaginasse que o plano visual, tal como é visto na forma final (publicada) tivesse tido as suas margens num “ponto morto” da acção criativa, tal qual como quando se usa um bastidor se proporciona desde logo uma diferenciação entre o plano em que se trabalha e a margem “abandonada”. Daí a sensação das tais “ilhas”. E apesar da presença de pequenos troços de texto, que criam anedotas ou rápidas situações semi-narrativas enclausuradas nas imagens individuais, perguntamo-nos se esta ausência geral de narrativa, de períodos temporais, de continuidade diegética e de total garantia da presença das mesmas personagens nos permite pensar numa passagem para um outro domínio, sem temporalidade, talvez de instantaneidade simbólica ou alegórica. Esta ausência de tempo poderá vir a revelar-se uma pista falsa, porém. Ainda que não haja uma dramatização, por assim dizer, dos eventos apresentados, conseguiremos identificar presenças e/ou temáticas recorrentes que, coalescidas, farão emergir, senão uma narrativa, nem sequer fantasmática, pelo menos uma formação conceptual coesa, uma nuvem diáfana que encerra todo o livro.
Há aqui uma abdicação de códigos (narrativos, figurativos, representativos) “burgueses” para, pela relação entre as personagens, atingir um ponto social. Esta interpretação ganha forma se for feita à luz de um famoso ensaio sobre o olhar [gaze] cinematográfico por Laura Mulvey, “Visual pleasure and narrative cinema” (de 1975). Este ensaio levanta questões complexas, e não podemos fazer justiça ao seu encontro entre formalismo e psicanálise neste curto espaço, mas um dos seus objectivos principais é expor o modo como o cinema tradicional constrói um prazer muito específico, a que Mulvey chama de “escopofílico”, e esse prazer é dominado pela ordem dominante, androcêntrica, de tal maneira que passa por “inconsciente”. Quer dizer, o prazer de olhar é masculino, o objecto é feminino. Mesmo depois de alguns estudos que criticam esta abordagem de Mulvey, ela ainda faz sentido, mormente na banda desenhada, campo de criação que continua dominado por uma pesada herança tradicionalista nesses (e outros) aspectos. Mulvey escreve, “nos seus papéis exibicionistas tradicionais, as mulheres são simultaneamente olhadas e mostradas [displayed], com a sua figura codificada de um modo a desencadear reacções visuais e eróticas fortes, de tal forma que se pode dizer se conotarem com uma qualidade-de-serem-olhadas [to-be-looked-at-ness]”. Esta questão do olhar ganha um peso poderosíssimo se consideramos que, num livro intitulado “os olhos do Senhor” (Seigneur, portanto um sentido religioso), a esmagadora maioria das personagens tem os olhos fechados. Apesar de existirem algumas figuras de costas, outras pequenas de mais para se poder ver se os olhos estão abertos ou fechados, etc., de todas aquelas em que não há qualquer problema em identificar isso, são raras (mas talvez significativamente em termos interpretativos, que não procuraremos) as que estão de os olhos abertos. A questão é menos “Que quererá isto significar?” do que “Que tipo de interpretação podemos nós avançar?”
Terminemos, mas regressando à questão material. Aqueles elementos soltos de que falámos – dos fios aos enxertos de pano sobrepostos - não estão somente imbricados e interrelacionados com a figuração, a estrutura e os eventos retratados. Também o próprio título do livro, o nome da autora, o nome da editora e o cólofon aparecem como letras bordadas, assim como o par de olhos na contracapa, arrastando dessa forma esses elementos paratexuais para um plano material idêntico ao do texto central. Isto seduzir-nos-ia a considerar Les yeux du seigneur como uma obra auto-reflexiva (para além das pistas autobiográficas, intra- e extra-textuais), quer dizer, consciente dos aspectos formais pelos quais é constituída. Todavia, talvez não haja aqui uma procura tão activa por um auto-questionamento do veículo e contexto em si, mas um encontro, produtivo, mesmo assim, entre um modo de fabrico das imagens, uma prática, e uma forma de divulgação. Esse é um dos fitos desse objecto, o livro.
Nota: agradecimentos a Isabel Baraona, pelo empréstimo do livro.

Classics and Comics. George Kovacs e C. W. Marshall, eds. (Oxford University Press)

De uma forma análoga aos estudos de Ben Saunders e Jason Tondro, este volume é constituído igualmente pela aproximação de dois campos de estudos, neste caso, os estudos clássicos, isto é, sobretudo a literatura mas também outra produção cultural associada ao locus do “antigo Mediterrâneo”, e a banda desenhada (há, portanto, uma claríssima inscrição no campo ocidental, mas o estudo de N. Theisen sobre uma obra de Tezuka demonstra os limites e as possibilidades da sua aplicabilidade noutros contextos culturais). Como explicam os editores do livro, e muitos dos seus críticos (sobretudo presentes em revistas e circuitos associados à primeira área, curiosamente), estes estudos estão ligados à Teoria da Recepção, ela mesmo uma área em franca expansão, e que engloba as transformações sociais e culturais permitidas pela cultura contemporânea, sobretudo popular. Se o cinema nas suas adaptações de temas ou textos clássicos é já objecto de muitos estudos, a atenção para com a banda desenhada não é só expectável como necessária, dado o grau da sua produção. “[Um] dos fins fundamentais da (…) investigação comparatista dos clássicos e do cinema é o de questionar as definições convencionais de ‘clássico’ e de ‘classicismo’” (pg. 9; uma citação de Maria Wyke, apud Benjamin Stevens). Além do mais, os próprios classicistas estão “constantemente a reler e reinterpretar os seus artefactos de acordo com novas metodologias, que vão evoluindo” (6), empregando aquelas mais tradicionais da “filologia, da historiografia, da filosofia e da arqueologia” para, também, “compreender a banda desenhada e os clássicos de novas formas significantes” (5). Não se trata, portanto, somente de uma aplicação de uma metodologia ou de saberes para identificar temas ou elementos na banda desenhada, mas antes um verdadeiro trabalho de “intersecção. Por vezes, a compreensão de uma banda desenhada pode providenciar uma mais profunda compreensão da antiguidade, revertendo a direcção esperada do processo de recepção” (pg. xi). Esta última afirmação ganha uma prova incrível no estudo de Giden Nisbet, que abordaremos à frente.
Apesar de estarem intimamente relacionados com Estudos Clássicos propriamente ditos (com uma excepção, todos os autores são de Estudos Antigos, Latim, Grego, ou áreas correlativas, e a excepção é Eric Shanower, autor de Age of Bronze), estes textos saíram dos trabalhos apresentados numa conferência especial para não-especialistas (“outreach”) proporcionada pela American Philological Association de Chicago, em 2008. Esta colecção é de facto excelente, por várias razões. A primeira parecerá, da nossa parte, algo como um argumentum ad hominem, apelando para a autoridade de filologistas encartados, mas a verdade é que essa disciplina treina usualmente os seus estudantes a um rigor férreo em toda uma série de aspectos que os torna mais impermeáveis a discursos impressionistas ou que flutuem entre várias disciplinas na procura da construção dos seus discursos, como outros sectores das humanidades e da crítica o fazem (da qual não escapamos, afirme-se). Aliado a esse rigor - demonstrado pelos instrumentos utilizados, que tanto podem tocar a papirologia como a gramática do grego clássico, como os conhecimentos do contexto sócio-cultural de épocas precisas - está a boa-fé na discussão dos objectos de estudo e/ou de comparação que são constituídos pelos textos de banda desenhada. Estas análises revelam como que uma boa vontade, um princípio que leva os académicos a libertarem de forma inteligente e ponderada as interpretações possíveis, e sempre de um modo positivo, desses mesmos textos. Em vez de encontrarmos uma soberba da parte destes investigadores (e classicistas, para mais!) em relação a estes outros textos, de uma cultura contemporânea, popular, ou ainda menos considerada, encontramos uma genuína preocupação em se compreender que tipo de trânsito conceptual é possível estabelecer.
É verdade que a escolha é igualmente judiciosa, considerando preferencialmente textos criados por escritores (há, como é de esperar, uma selecção ditada em primeiro lugar pela narrativa, ainda que a dimensão visual jamais seja descurada) mais capazes de gerir toda uma série de referências, de níveis de complexidade emotiva e conceptual, mesmo no interior na economia da banda desenhada mainstream. Por exemplo, num ensaio sobre o papel das Fúrias, ou Euménides, ou Erínias, no universo ficcional da DC Comics, por um dos editores, C. W. Marshall, contrasta as conquistas de Neil Gaiman (The Sandman: The Kindly Ones) e Greg Rucka (Wonder Woman: The Hiketeia) aos falhanços ou tratamentos mais fracos de Mike Carey (The Sandman Presents: The Furies), apontando mesmo como ferramentas de construção e adição próprias dos mitos aquilo que Gaiman e Rucka fazem: “Onde Sonho [Morpheus, o Sandman] incorpora as possibilidades polivalentes da narrativa (…[e]) as Fúrias têm um único propósito, que é o de parar as histórias” (pg. 93); “Esta história [The Hiketeia] apresenta um desenvolvimento genuíno das Fúrias, o qual, inevitavelmente, tal como acontece no desenvolvimento de qualquer mito, força a uma reapreciação retrospectiva das versões anteriores” (100). Esta última afirmação fará compreender os leitores de super-heróis do modo como se pode estudar a “continuidade” e as “retroactividades” (retcon) como mecanismos de construção narrativa e de megatextos (a expressão é de Marshall, citando outro classicista, Charles Segal) algo aparentado - mas com as devidas distâncias históricas, culturais e, francamente, de impacto no próprio tecido da cultura - com os mitos da Antiguidade.
Isto não significa que apenas se leiam “grandes obras”. A atenção para com a representação de certas figuras mitológicas ou nelas baseadas leva os autores a considerarem, como é de esperar, todas as incidências ao longo da história dos comics books, atravessando títulos e personagens algo obscuros, de vários momentos da história (da Golden Age dos comic books à contemporaneidade) e de quadrantes geográficos (discute-se alguma banda desenhada franco-belga), mas sempre procurando-se uma explicação que lhes sublinhe a pertinência.
Alguns objectos antigos não são apenas citados como fontes ou pontos de comparação, mas muitas vezes estudados com os instrumentos desenvolvidos na banda desenhada, desde o papiro de Hércules à famosa descrição do fabrico do escudo de Aquiles por Homero (Ilíada, XVIII 483-608) passando por toda a sorte de vasos figurados.
Numa aplicação que parece ultrapassar o escopo geográfico das fontes e dos objectos de estudo, Nicholas A. Theisen estuda Apollo’s Song, de Tezuka, demonstrando também a pertinência de um grau adicional de ligações (dos clássicos à banda desenhada, do ocidente à mangá). Apesar de ter algumas generalizações sobre a banda desenhada norte-americana menos conseguidas, a sua atenção para com o texto original e as suas condições de produção, recepção e inscrição cultural levam a noções iluminadoras para além da própria circunstância da obra de Tezuka: “[ela] é um espelho no qual nos podemos ver a nós mesmos e não necessariamente a cultura de onde partiu” (pg. 69), quer dizer, cria-se assim “uma dupla perspectiva no qual reconhecemos como interpretamos um texto e consideramos em suspenso aquelas ligações intertextuais que tão facilmente encontrarão as suas raízes no leitor como no texto em consideração” (70).
Como é de esperar, a maior parte dos textos versa a representação de eventos da antiguidade na banda desenhada, ou adaptações ou aproveitamentos de textos antigos (desde o Ulysses erótico de Lob e Pichard a The Infinite Horizon, de Gerry Duggan e Phil Noto), ou ainda a transposição de certas figuras e/ou personagens (Marte, Hércules, Vénus, etc.). Há ainda alguns outros ensaios mais generalistas e menos focados, mas mesmo aqueles que apresentam apenas uma espécie de arrolamento de representações de figuras mitológicas, ou detectam fontes, ou debatem uma questão de presenças temáticas, despertarão certamente um ponto iluminador qualquer nos leitores.
O artigo que pessoalmente nos mais satisfez nesta colecção é o estudo surpreendente de G. Nisbet - repescado e revisitado de um artigo anterior - e a que aludimos acima. Trata-se de um estudo sobre um famoso papiro, chamado “de Hércules ” (mais propriamente, “Oxyrhynchus Pap. XXII 2331”) e datável de ca. séc. III EC. Este é um documento que se vê repetidamente reproduzido e abordado em histórias gerais da ilustração, ou nas relações entre a imagem e o texto literário (nós mesmos utilizamo-lo em algumas acções). Este documento tem sido sistemática e continuamente apresentado como uma peça sobrevivente de uma suposta tradição de textos ilustrados na Antiguidade clássica, mas as provas disso são - pelo menos, por enquanto, espúrias. Além do mais, como sempre na contínua desconfiança iconoclasta da tradição logocentrista da nossa cultura, toda e qualquer ilustração, como estas, é vista como meramente “secundária”, “complementar”, “embelezadora” do sacrossanto texto (e estes, para serem ilustrados, terão de ser os clássicos canónicos). “O papiro de Hércules acaba por nos dizer mais dos preconceitos dos investigadores modernos do que das práticas de cartooning antigas ou da economia do livro antigo” (40), escreve Nisbet, invertendo neste ensaio a ordem de aplicabilidade da metodologia apontada acima: o seu objecto de análise não é a banda desenhada moderna à luz dos estudos clássicos, mas antes um objecto único e estranho da antiguidade (o papiro) à luz das teorias proporcionadas pelos estudos de banda desenhada. Através de uma cuidadosa leitura filológica do texto aliada a uma observação rigorosa e dedicada às imagens (em vez de as “ver” através do filtro do que é ditado pelo texto), integrado num estudo contextualizador sócio-cultural, físico, e detalhado do papiro, o investigador desperta, pela primeira vez, uma leitura positiva, enriquecedora e provavelmente iluminadora para todo o campo do “texto conjunto” que ele encerra. “Como vemos (…) é possível fazer emergir leituras sofisticadas se o permitirmos, quer dizer, se nos permitirmos a nós mesmos imaginar um público leitor de elite com uma educação literária avançada” (39).
Um outro gesto similar, mas sem a mesma amplitude, profundidade e consequente despertar de noções é um estudo de Emily Fairey sobre a representação dos persas nos vasos pintados gregos (ânforas, crateras, hídrias, etc.) após as Guerras Persas e aquelas de 300, de Frank Miller. A discussão atravessa vários argumentos, mas vale a pena citar a conclusão que contextualiza criticamente, sem com isso ilibar a responsabilidade de Miller nas suas opções controversas, se não mesmo racistas e politicamente conservadoras e pouco inteligentes: “A escolha de Miller em mostrar os persas como maus e corruptos, e [etnicamente] negros baseia-se na construção convencional norte-americana dos vilões [de banda desenhada sobretudo], a qual não possui relativismo e complexidade. Os tropos técnicos da criação da banda desenhada mantêm-se a força motriz principal do tom político desta obra. O ‘reflexo’ de banda desenhada, em que determinadas representações [looks] estão associados ao mal, assim como a trama narrativa e a codificação moral redutora, transforma 300 numa poderosa propaganda, tenha sido ou não esta a intenção, uma vez que a sua imagética não pode ser lida neutralmente, dado o contexto político presente [300 é de 1998]. Portanto, quando se estuda a construção dos persas de Miller, a não-realidade, o formulaico, e a hipérbole são os elementos mais notáveis. Miller pega numa noção simplificada da superioridade cultural grega (e do Ocidente) e transmite-a através de um funil visual, ao passo que os persas decorativos da pintura de vasos [em si mesma uma arte “menor” mas “de massas” e de ampla circulação, integrada numa cultura popular, análise do ensaio], que nunca tiveram uma ligação directa com a literatura [cuja representação era mais negativa, e que Miller seguiu], não cumprem o mesmo papel.” (170). Um outro estudo de Vicent Tommaso também estuda a utilização da Batalha das Termópilas em Sin City: The Big Fat Kill, mas de um modo mais fugidio, parece-nos.
Como também foi já afirmado, a única intervenção não-académica é a de Eric Shanower. Em vez de um texto em prosa, o autor opta, como é de esperar, por uma banda desenhada de 12 páginas explicando o que o levou a dedicar-se ao seu projecto, ainda em curso e que durará anos, de tentar criar a história da Guerra de Tróia mas que “reconcilie todas as versões contraditórias” (195), desde as fontes mais recuadas literárias a artefactos das culturas envolvidas, passando por versões mais tardias, mesmo que ficcionais (incluindo ópera, teatro, cinema, etc.) e, claro está, estudos académicos e apoio de especialistas. Esta obra, Age of Bronze (até à data 31 comics, e 2 volumes e meio), permite a Shanower que, mesmo não ganhando o apodo exacto de académico, o coloca numa posição privilegiada de conhecimento (ele escreve em linear B!), recepção e criação, entre o popular e o erudito. O que o leva a ser convidado para este tipo de certame, com o conforto do que pode debater. Sendo autor a solo, a responsabilidade culturalmente responsável e informada, expressas nas “faixas” narrativa e visual, apenas o torna ainda mais marcante, por contraste a outros projectos com os quais poderia ser comparado (e citados neste livro, saliente-se Jacques Martin, Goscinny e Uderzo, Dufaux e Delaby, com Murena, Enrico Marini, com Les Aigles de Rome). No ensaio que Chiara Sulprizio lhe dedica neste volume, sobretudo sobre o papel do amor e do erotismo na política de narrativização, focalização e caracterização dos eventos em torno do conflito (que ainda não chegou ao calor da batalha), escreve-se o seguinte: “quando se dedica maior consideração quer aos objectivos autorais de Shanower quer à sua abordagem inclusiva de recontar o épico, parece que as suas representações românticas servem para minar muitos dos tropos e convenções orientados para as figuras masculinas, as quais ditam como é que a sexualidade e a violência se devem representar na banda desenhada ["comic books and graphic novels"]”, levando assim “a colocar o eros num plano principal como uma força que é tão forte e influente na vida humana como a própria guerra. Nesta Tróia, o amor pode ainda atiçar as chamas da guerra, mas também as pode apagar e ultrapassá-las” (214).
No entanto, por esta mesma “mítica totalidade” (a expressão é de George Kovacs) de Age of Bronze, de um autor que pouco deve ao mainstream norte-americano nas suas opções criativas (foi editado pela Image e trabalha esporadicamente para a indústria), não se compreende a necessidade da autora, no fecho do seu ensaio, apresentá-la como “algo que vai muito mais além do domínio do comic mediado de super-heróis” (219). Não é que esteja errado. É que simplesmente não parece interessar mais ter que estar à defesa, e ter que recorrer a esses outros modelos - por mais visíveis que pareçam ser - para justificar a força e qualidade estética de uma obra como esta. Este tipo de saltos parecem também informar o último ensaio, de Thomas E. Jenkins. Este aborda duas adaptações da Odisseia, a saber, uma de Jacques Lob e Georges Pichard e outra de Franco Navarro e José María Martín Saurí. Ora, se esta segunda versão, Odyssey, foi publicada pela primeira vez em inglês, na Heavy Metal (a versão americana, mas muito transformada, da Métal Hurlant) em 1983, a primeira, Ulysses, começou em 1968 na Linus e concluir-se-ia por 1975, já sob a forma de álbum na Dargaud. Ora, toda a interpretação de Jenkins concentrar-se-á na dimensão erótica, da representação sexual, distribuição dos papéis societais de acordo com os sexos, e ainda da moralidade atribuída ao casamento (recordemo-nos que Ulisses tem muitas aventuras sexuais antes de regressar à sua mulher legítima), mas à luz das políticas e contextos editoriais proporcionadas pela francamente fraca, em termos intelectuais e culturais, Heavy Metal e depois Eurotica. Isto é, para além do claro elo narrativo das fontes, e da proveniência geográfica (autores europeus), o ensaísta subsume estas obras a um outro círculo específico e indiferenciado norte-americano. O problema é que Ulysses, de Lob e Pichard, apesar de concordamos com a leitura que Jenkins faz como uma interpretação machista do poema homérico, poderia ser pensado num contexto de sexualidade desabrida à la Losfeld, que teve contornos muito específicos (e que não desobrigam, atenção, dessa leitura). Mas uma vez que se trata de um volume sobre a teoria da recepção, as condições dessa mesma recepção devem ser tomadas em conta, e é o que se passa nesse caso.
Em termos gerais, este é um volume muito importante sobretudo no que diz respeito à atitude e generosidade destes académicos, mas que se revela também nas interpretações brilhantes de alguns deles.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta do livro.

28 de março de 2012

3 secondes. Marc-Antoine Mathieu (Delcourt)

O texto que acompanha e explica este livro, mostrado na contracapa, subdivide-se em três campos desdobrando o significado do título, a que poderíamos chamar semântico, sintático e pragmático. Em primeiro lugar, explica-se que os “3 segundos” do título - apresentados com as aspas na capa e por extenso na lombada - “é o tempo que leva a luz a percorrer 900 000 km, de uma bala de pistola atravessar 1 km. O tempo de uma respiração. O tempo de uma lágrima, de uma explosão, de um sms”, apontando para os elementos, aparentemente soltos e autónomos entre si, presentes na diegese. Além do mais, equivaleria, num exercício de abstracção, ao número de imagens criadas pelo autor para compor este livro, que não corresponde, como genérica e habitualmente nos livros de banda desenhada, a um desenho por vinheta (este cômputo é, claro, demasiado generalista, mas é um preconceito mais ou menos produtivo como primeiro passo).
Seguidamente, esses três segundos, sintacticamente, isto é, na sua coordenação, interrelação e interpenetração, constituem “um enigma mudo no qual se imbricam personagens e indícios. (…) O leitor terá de reconstituir o puzzle”. As imagens mostram de facto cenas distintas, como uma performance numa galeria de arte, uma discussão no interior de um avião, um penalty a ser cometido num campo de futebol, dois homens distintos em lugares diferentes preparando-se para disparar armas de fogo ou disparando-as, homens aparentemente ligados ao mundo de futebol num escritório, e outras. Diga-se de passagem que é notável, do ponto de vista social, que Mathieu crie uma trama “polar” em torno do futebol e do mundo das artes (a presença de uma caveira de brilhantes à la Hirst não deve ser inocente), o que pode ser visto não só como uma crítica da maior parte da literatura (e banda desenhada e cinema, etc.) se concentrar noutras áreas passíveis de crime mais tradicionais, como talvez um instar a que se criem mais ficções (?) sobre os crimes de colarinho branco (só faltava incluir as farmacêuticas e a especulação da área energética). Ao atravessarmos cada cena, e à medida que voltamos a elas num momento à frente no tempo, por ligações diferentes, vamos acumulando as informações visíveis e aquelas que deduzimos, de maneira a ir resolvendo o mistério policial que aqui se encerra e adensa (reforçada até pelo estilo de alto contraste de Mathieu, que o coloca lado a lado, nesse aspecto, de outros autores, de Breccia a Tardi, de Toth a Bernet).
Normalmente, em determinadas séries televisivas ou cinematográficas com detectives com capacidades dedutivas extraordinárias, como no paradigmático caso de Sherlock Holmes, uma cena qualquer - a introdução de uma personagem, a entrada num local importante - é apresentada de forma elíptica ou rápida, e só quando o detective explica as suas conclusões (“você é jardineiro e bebeu café no comboio enquanto falava com a pessoa do lado”, porque há uma pequena nódoa de café no joelho das calças de bombazine, particularmente coçadas na zona das canelas ou algo que o valha…) é que a focalização da câmara permite ao espectador ver o que antes seria impossível (não houve nem tempo, nem proximidade, etc.). Pelo contrário, uma pequena tradição de enigmas visuais (como esta imagem retirada de um Reader’s Digest da década de 1980) apresentava tudo o que havia de suficiente para que o leitor ou a leitora inferisse o crime, a arma e o culpado, ou até o motivo. De certa forma, 3 secondes inscreve-se de uma forma particular com este último tipo de quebra-cabeças, não se tratando de um truque do autor e da focalização em sonegar informação que depois se revela, fortalecendo o papel do protagonista, mas impedido logo à partida que os leitores pudessem participar nas mesmas condições. Bem pelo contrário, este livro obriga os leitores a tomarem parte activa na sua solução. Na ausência de texto, quem não desvendar o mistério pura e simplesmente não chegará ao “fim” (?) do livro. É preciso, por isso, ter em atenção a toda uma série de pormenores, desde os relógios espalhados por toda a história, o número de barras de recepção dos telemóveis, as expressões e reacções das personagens ao que os rodeia, às notícias que se anunciam em jornais, Mupis e televisões, nos objectos que as pessoas têm nas mãos, na proximidade ou lonjura de cada espaço entre si, etc. Por isso é que não oferecemos uma sinopse da diegese aqui, ora por ser impossível optar por uma perspectiva somente ora por, confessemos, não sermos capazes de reconstruir todo o mistério.
Em terceiro lugar, os três segundos ganham uma descrição pragmática, uma vez que este projecto, diz-se, foi pensado imediatamente para surgir em dois suportes ou meios distintos: o livro e a web. Se o livro se apresenta como uma série de pranchas com, invariavelmente, uma grelha de nove vinhetas regulares, o “vídeo” surge como um zoom ininterrupto, que se pode manipular em termos de velocidade e direcção (para a frente e para trás). De uma forma sucinta, básica e provavelmente redutora, 3 secondes é um zoom através de todas aquelas cenas, utilizando os reflexos de várias superfícies - do globo ocular a ecrãs, de espelhos a lâmpadas, de capas de dente de ouro a poças de água no chão, de instrumentos curvos de sopro ao metal de taças, ou mesmo de espelhos - para poder atravessar as várias escalas e avançar, recuar, passar entre essas cenas. Imitam-se alguns dos procedimentos da cronofotografia, mas numa direcção, escala e dimensão impossíveis. Como se Étienne-Jules Marey se aliasse a Escher. Apenas a leitura contínua fará criar um mapa mental do espaço relativo (que compreende desde uma poça de água numa esquina de rua ao espaço sideral, passando por uma mão-cheia de locais mais centrais em termos da “trama do policial”), e apenas a re-leitura aturada é que poderá desvendar os segredos todos e, possivelmente, a(s) solução(ções) do mistério.
Fisicamente falando, as imagens foram produzidas da maneira tradicional, conforme se pode verificar pela sua exposição. Cada imagem corresponde a uma parte da imediatamente anterior em termos físicos (temos o interior da trompeta que está nas mãos de um adepto que está dentro do estádio que se encontra na cidade, etc.), mas em quase todas elas há necessariamente um intervenção digital, integrando umas nas outras de um modo quase inconsútil, para criar essa ilusão. Nalguns casos, existe algum grau de distorção, para imitar a superfície do que reflecte, seja a curva de uma taça, a concavidade da trompeta, etc. Na verdade, há uma ilusão maior, pois mesmo que fosse possível este zoom ininterrupto em escalas cada vez maiores em termos atómicos (mesmo que se reflicta a imagem da lua e dos satélites, é afinal uma imagem dentro de um espelho dentro de uma lente de telemóvel dentro de um olho, etc.), a nitidez das imagens dissipar-se-ia, o limite encontrar-se-ia rapidamente, e os graus de distorção multiplicar-se-iam até à incompreensão total. 3 secondes é, no fundo, abusivamente linear, como se desejasse recuperar o movimento de “aventura” de uma banda desenhada antiga, mas seja como for não é propriamente o realismo que se pretende criar (apesar do “tema”), mas antes um mecanismo imagético enigmático.
O livro, ou a trama narrativa, ou o início físico, começa da escuridão total emergindo para a luz, saindo do espelho que o performer tem nas mãos, face a um outro espelho. Mais, pelos jogos de espelhos e de ângulos e de ângulos mortos, e pela própria acção conceptual da performance retratada, opõem-se os termos “something” (nas costas da camisa do artista) e “nothing” (nas costas do espelho que ele tem nas mãos), talvez querendo desdobrar temas que se demonstram, ou reflectem, noutras escalas. No final (físico) do livro, regressamos a essa cena e mergulhamos novamente no reflexo, mas o espelho contra espelho leva-nos a uma luz finalmente cegante, o branco original da folha. Um espelho virado contra um outro espelho, de acordo com Mathieu, não produz simples infinitos, mas apenas uma ilusão de infinito que falha logo a seguir. A falta de equilíbrio e simetria entre as cenas inicial e final - repetimos, apenas nos termos físicos do objecto-livro em questão, não na forma da leitura, que se tem de desregular em termo de direccionalidade - e a aparente negação de que estamos a emergir do desconhecimento total para uma iluminação totalizadora tornam 3 secondes num objecto intelectual extremamente curioso no que diz respeito à ontologia da banda desenhada. Não se trata somente de um desvio do seu programa por aquela(s) outra(s) tradição(ões) de enigmas figurados, mistérios em imagens, puzzles, etc. Não se trata de um cruzamento de géneros. Trata-se antes, sim, da continuidade do programa criativo de Mathieu, em encontrar nas especificidades das estruturas da banda desenhada, e da sua história tecnológica, social e narratologia, novos modos de a problematizar nessas mesmas especificidades (afinal, a série de Julius Corentin Acquefacques é, acima de tudo, sobre banda desenhada). Existe progressão em 3 secondes, mas apenas espacial (e paradoxal, como vimos) e nunca “aventura”. Existe sequencialidade mas não emergência de uma simples causalidade e clareza graças a ela. Existe o estabelecimento de um número coeso se módulos espácio-temporais, de personagens e relações entre elas, mas não são perceptíveis de modo imediato os elos que explicitariam a hipotaxe diegética. Ainda assim, não estamos perante uma entrada e saída de níveis narrativos (como nas 1001 Noites) ou ontológicos no interior da ficção (como em Flex Mentallo): para todos os efeitos, estamos sempre num mundo “real” linear. A questão de estarmos ou não perante uma narrativa ganha aqui um caso de estudo liminar muito produtivo.
O acesso à versão digital faz-se através de um código disponível no livro. Essa sua possibilidade de arquivo na internet parece-nos ser uma solução melhor do que aquela do CD-Rom ou do DVD, como no caso discutido de MetaMaus. Além do mais, no site existe ainda um fórum de discussão, onde muitos leitores participam na troca de argumentos e interpretações para tentar compreender o enigma, mostrando de um modo claro como é que a interrelação pessoal entre obra e leitores pode ganhar uma dimensão activa e participativa na recepção (e, em parte, ajudar a perceber alguma coisa, sobretudo para quem, como nós, sofre de falta de capacidade dedutiva). Não há aqui grande diferença do que aqueles fóruns em que se discutem as fontes literárias de The Sandman, as teorias de The Invisibles ou o significado de Hurley ter utilizado apenas dois pacotes e meio de ketchup no segundo cachorro-quente depois de ter dito a palavra “camisola” em Lost. No entanto, há uma qualquer sensação, a nossa parte, de esforço gorado. Técnica e literalmente, o que é disponibilizado na web é somente um zoom. Ele é manipulável, é certo, mas de um modo fechado. Qual a razão pela qual a versão digital não tira partido de outras dimensões que poderiam ser integráveis nesse outro meio, como o som, imagens multiplanares, rotações, apontamentos cromáticos, opções múltiplas, etc.? podemos mesmo perguntar-nos, que ganhamos nós em termos duas versões de um texto central em dois meios diferentes? Ou melhor, será que este mistério policial ganha algum grau adicional de complicação, ou se apresenta sob a forma de pistas diferentes? Como já havíamos citado noutra ocasião, Jerome McGann escreve que não existem trabalhos finais ou acabados, mas apenas textos. No entanto, estaremos perante dois textos diferentes em cada uma destas formas estruturais diferentes?
Não nos consideramos, de forma alguma, tecnófobos (mas tampouco tecnófilos). Numa mesa-redonda tida há pouco tempo, Manuel Portela falava das potencialidades do arquivo digital para a interpretação da poesia. Uma das dimensões importantes discutidas era a de que a apresentação de uma versão de um poema (mas poderíamos falar de outro objecto qualquer) num suporte digital, ou na internet, é sempre vista como isso mesmo: uma versão, isto é, uma possibilidade de interpretação, uma (só) instância das suas performances virtuais. Contudo, ao mesmo tempo, essa instância funda precisamente a ideia de outras versões, a possibilidade de outras possibilidades. De certa forma, recorda a ideia de Deleuze de que o virtual é a condição do actual. Ora, o que nos parece falhar em 3 secondes nessa sua vida virtual é que não lhe acrescenta a ideia de uma potencialidade aberta, mas antes uma interpretação redutora das potencialidades expressivas entre uma e outra versão, e, logo, entre um e outro meio. Não são, a nosso ver, neste caso, um espelho virado a outro espelho multiplicando-se entre si, mas duas superfícies opacas.
Mesmo assim, como enigma, ressoará de um modo contínuo e até num crescendo.

21 de março de 2012

Pontes de encontro entre a banda desenhada e o diário gráfico.

Desta feita, por convite de Eduardo Salavisa e do Serviço Educativo do Museu Arqueológico do Carmo, participaremos no Ciclo de Conferências A Viagem e o Diário Gráfico no Museu Arqueológico do Carmo, na próxima Terça-Feira, dia 27, das 18h30 às 20h00.
A entrada é gratuita. Mais informações, aqui.
Nota: desenho de Eduardo Salavisa, feito no Museu, retirado do seu blog.
Sinopse:
Esta apresentação visa procurar entender os pontos (e pontes) de encontro e de divergência entre estas duas áreas, acreditando que o estudo das mesmas poderá iluminar ambas de uma forma mútua. Menos do que uma apresentação histórica ou sistemática, e imitando o modo de criação dos diários gráficos, procurar-se-á um passeio livre por entre os vários elementos que compõem estas disciplinas, deixando em aberto várias questões, para as quais o público estará desde logo convidado a discutir.
Apareçam!

24 de Março: Mesa Redonda em Serralves.

Por grato convite da Biblioteca e Serviço Educativo de Serralves e do Projecto PO.EX'70-80, fomos convidados a participar, no próximo Sábado dia 24, numa mesa redonda com Johanna Drucker e Manuel Portela.
Este encontro intitula-se Edição electrónica e a materialidade do livro: Poesia experimental,
livros de artista e banda desenhada.
A entrada é gratuita mediante inscrição prévia para i.koehler@serralves.pt ou pelo telefone 22 615 65 40 (Isabel Koehler) e terá lugar na Biblioteca de Serralves das 17:00 às 19:30.
Sinopse: A convergência multimodal das textualidades digitais abre um
novo espaço de edição e arquivo no que diz respeito a formas multimédia e intermédia de escrita. No actual contexto tecnológico, a poesia experimental e de invenção oferecem um espaço particularmente relevante para testar as potencialidades da representação e da edição digital.
Esta mesa redonda discutirá a visualidade e a intermedialidade presente nas práticas experimentais, bem como a remediação, as migrações interartísticas e a materialidade das formas significantes. Os problemas da mediação tecnológica serão ilustrados através de exemplos de literatura contemporânea, nomeadamente o que diz respeito à poesia experimental, aos livros de artista e à banda desenhada.
Para mais informações, cliquem (novamente) aqui.
Apareçam!

18 de março de 2012

Vários títulos. AAVV (Ruru Comix)

No blog da Ruru Comix foi apresentada parte de uma autobiografia do autor e editor dos projectos associados a essa chancela, Rudolfo, e que será publicada no próximo número da Lodaçal Comix. Nela aprendemos vários pormenores, mas sendo o mais significativo, para nós, agora, o momento em que ele confessa que essa mesma publicação pretende ombrear outros projectos internacionais (cita-se a Garo e a Kovra), de maneira a “reflectir os meus gostos esquizofrénicos ao lado do amor pela banda desenhada”.
Aquela palavra, “esquizofrénico”, é escolhida não por uma exactidão clínica, mas como desejo de transmitir aos leitores a verve com que Rudolfo da Silva (seu pseudónimo artístico, mas para todos efeitos nome para toda a obra) se dedica à sua produção. Na mesma veia, o apodo que outros seus leitores lhe deram, de “hiperactivo” (recordando, sem dúvida, o refrão dos Dead Kennedys: “You’re a hiperactive child/You’re disruptive, you’re too wild”), seria imediata e explicitamente adoptado pelo mesmo. De facto, olhando para a sua produção no campo da banda desenhada, de que estes títulos são apenas uma amostra, encontramos trabalhos para outros editores, os seus próprios fanzines e o esforço editorial da antologia.
Mas além disso acrescenta-se outra dimensão que, não sendo obrigatória conhecer para a leitura destes trabalhos, ajuda a moldar o mundo de que partem e em que se inscrevem. Essa dimensão é a da música, já que Rudolfo da Silva (página no myspace) é uma das referências contemporâneas do que se faz por cá do chamado “chiptune” ou “Nintendocore” ou “8-bit punk” (confessemos que não estamos nada seguros no uso destes termos). Os concertos bebem da música de jogos de computador, do nu-metal, dos Ministry, das canções de abertura de séries de desenhos animados (Navegantes da Lua!), do pimba nacional, e até de canções provavelmente cantadas nas tendas de evangelistas… um caldeirão sem nenhum tipo de hierarquia ou preocupações de fronteiras de género para criar um comboio de referências, empregue somente numa queda livre de ruído, atitude e um real marimbanço para muitos dos limites que são sempre empregues em sociedade, mesmo por muitos dos cultores do anti-social. A experiência de um concerto de Rudolfo da Silva é uma imersão libertina numa energia pós-adolescente que vive num equilíbrio precário entre o sério e a brincadeira: não se percebe se é uma brincadeira que deve ser levada a sério, ou se é algo de sério que se deve levar a brincar. Talvez as duas.
Esse manancial de referências (Nintendo, animé, metal, etc.) encontra-se também estilhaçado e depois recomposto nos trabalhos de Rudolfo enquanto autor de banda desenhada. É como num universo paralelo Mike Diana fosse um autor sociável e conhecedor da cultura basura do youtube e tivesse “cool” como parte do seu vocabulário.
666 Hardware parece começar a meio de uma aventura, mas desconhecemos se pertence de facto a um épico maior. Uma personagem que se parece muito com o avatar da banda desenhada do próprio Rudolfo noutros trabalhos, mas armado de dois cornos e chamado de Satan, penetra num mundo diabólico com o seu imenso companheiro diabo Catumba, o qual se pode transformar numa espada, obviamente demoníaca, empunhada pelo mestre. Ambos procuram um skate que pertenceu a um legendário Natas Slayer. Lutam contra hordas de demónios, incluindo um gigantesco Vaginoroth, até conquistarem o seu prémio. E depois vão para casa.
Esta última frase pode parecer ridícula, e é-o sem dúvida na descrição, mas é justa. O que é curioso nisto tudo é que apesar de começar a meio, atravessar páginas de acção frenética, e morte, termina de uma maneira calmíssima, sem fanfarra, e Satan e Catumba volta para onde vieram… É como se tivéssemos atenção ao que acontece antes ou depois das cenas representadas nas capas de discos de metal. Um pormenor gráfico é que todos os “ts” são desenhados de maneira a parecerem cruzes invertidas, dando continuidade a toda uma série de clichés satânicos das capas de discos de heavy metal e derivados (mas para além da referência directa aos Slayer, a banda sonora só poderia ser mais frenética, talvez Anaal Nathrakh?).
Musclechoo é também uma espécie de festa rija de violência, utilizando uma espécie de Pikachoo schwarzenggeriano como personagem principal, lutando contra um exército de lutadores mexicanos (com as costumeiras máscaras), a soldo de um demónio. A missão é salvar a sua namorada, e apercebemo-nos de que a história vem de longe, como se este número fosse parte de uma série maior (uma estratégia análoga à de Alan Moore e companhia com 1963). Essa missão é cumprida, não sem um preço grande pago. Depois disso, Musclechoo dirige-se no seu jipe para uma fortaleza muito parecida com aquela de Hardware.
Se a descrição pode parecer muito idêntica à de 666 Hardware é porque a cultura de que o trabalho de Rudolfo emerge está menos preocupada com explorações de originalidade e psicologismos do que por uma dedicação quase exclusiva à conquista de pontos, à superação da prova, à chegada ao fim da missão. Desde os primeiros Game Boys dos anos 1980 às X-Box e ao que se seguirá, pode haver transformações de memória, capacidade de informação, velocidade de acção, número de níveis, de personagens, de habilidades, de cores, etc. mas as instruções serão sempre as mesmas:
Os modos de produção e desenho são algo diferenciados, com Hardware mostrando uma mais controlada arte final, provavelmente com tinta da china e artpen, uma maior cobertura dos fundos com preto, contornos mais grossos, e um trabalho de volumes e sombras com tramas mais consistente e paciente. A própria estruturação das páginas é cuidada, e regular, ainda que variada ao longo da história. Musclechoo parece ser feito mais depressa e mais despreocupadamente, talvez a esferográfica ou com uma caneta fina, as tramas criadas mais ao acaso, todos e quaisquer “erros” gráficos incorporados no desenho final, e apesar de haver uma idêntica variedade na composição de página e das vinhetas, estas são desenhadas à mão.
Lodaçal Comix é uma antologia viva, atenta e electrificante, que tira partido dos vários circuitos internacionais existentes numa rede underground de publicações, artistas e locais, sobretudo europeia, mas não só (Rudolfo parece ter aprendido muito com Marcos Farrajota e a Chili Com Carne, mas tem trilhado um caminho seu). Essa é uma das razões pela qual os zines de Rudolfo são em inglês, permitindo logo uma distribuição imediata nesses circuitos. É difícil, talvez mesmo indesejável, querer procurar características comuns entre os trabalhos e artistas aqui reunidos, quer portugueses quer internacionais. Talvez a única seja mesmo a disponibilidade em se encontrarem num mesmo espaço de expressão, e partilharem uma despreocupação - lá estão as afinidades de Rudolfo - por géneros narrativos, instrumentos de expressão, limites de possibilidade do que se diz e mostra, etc. “Lodaçal” é um termo muito correcto, não em relação à qualidade de algo informe, mas antes de experimentação total, barro moldável e parede dura - a publicação - à qual se atiram bocados ainda por secar…
Não é de surpreender, portanto, que encontremos aqui, unidos nessa tal verve, escolhas que oscilam tanto entre o cute e o grotesco, o onírico e o mais desesperado dos realismos, o estilo mangá e o metal/fantasy, o minimalismo e o virtuosismo, o poético e o escabroso, o character design e as capas de disco, o J-pop e o black metal, e o que mais for possível. Uma salada indigesta, sem dúvida, mas para que tomemos maior consciência, até física, do processo da digestão cultural. Tendo em conta a maneira como o “mercado” das publicações de banda desenhada são geridas em Portugal, não deixa de ser sempre motivo de curiosidade dos seus gestos mais amplos e contemporâneos e informados sejam encontrados fora dos circuitos mais institucionalizados. E provavelmente votados à desatenção permanente dos mesmos elementos que compõem essa institucionalização.
Os artistas que participam - neste número “fora de série” - são os seguintes (com links activos, providenciados no fanzine): Weja, Luiz Berger, Jesse Balmer, Jack Hayden, Tiago Araújo, Ricardo Martins, Zach Hazard Vaupen, Bruno Borges (com Christina Casneille), Nick Edwards, Marco Mendes, Laurent Albert, Tagas, Leah Wishnia, Michael Deforge e Natalie Andrade.
A partir daqui, os leitores poderão eles mesmos procurar que tipo de afinidades conseguirão criar entre eles ou que tipo de subsunção sofreram sob a perspectiva, frenética esquizofrénica, hiperactiva, de Rudolfo.

14 de março de 2012

100 Scenes. Tim Gaze (asemic editions)

A descrição subtitular deste livro não é, de todo, uma provocação. Ou sê-lo-á, de um modo muito específico. Apesar da história complicada da banda desenhada, mais múltipla do que os seus convencionais defensores e divulgadores querem dar a entender, ela encontrou momentos de entrosamento com outras áreas criativas, ou outras áreas criativas encontraram nela modos de potenciação do encontro entre a imagem e o texto - ou uma camada visual e uma organização de sentido, melhor dizendo, querendo com isso apontar a um bloco de sensações mais livre na primeira e na segunda uma subsunção a uma coordenação passível de explicação lógica. Está ainda por fazer uma história completa (se for possível) dessa óptica alternativa da história desta arte.
No entanto, temos testemunhado uma acelerada multiplicação de valências, possibilidades, haustos, experimentações, fugas, nos últimos anos, que vêm reforçar o papel social e estético da banda desenhada enquanto disciplina artística cada vez mais aberta, mesmo no perigo (mas porquê entender esta situação enquanto perigo?) de que a sua linguagem ou o seu emprego mais convencional se venha a perder ou pelo menos diluir…
De acordo com Tim Gaze, autor deste grande livrinho, em vez de pensarmos nas imagens e no texto como dois sistemas semióticos opostos, ou pelos menos de natureza muito divergente, deveríamos considerar o seu contínuo. É claro que o texto, numa primeira instância, é percepcionado como imagem. Afinal, vemos as letras antes de as ler, e antes de as escrever aprendemos a desenhá-las. No entanto, se nos munirmos de instrumentos de abstracção e teoria, como a semiótica de Peirce, apercebermo-nos-emos das diferenças de interpretação que estão em jogo face a ícones (as imagens) e símbolos (as letras) (e a isto voltaremos). Seja como for, nesse sentido, podemos considerar algumas experiências em que a imagem surge num seu valor textual (desde os enigmas figurados ao movimento lettriste, passando mesmo pelos variadíssimos projectos de instituir uma linguagem infográfica, inclusive o Isotype) ou em que o texto é utilizado no seu valor visual (da micrografia hebraica e a pintura caligráfica chinesa aos caligramas de Apollinaire, dos vários capítulos da poesia visual às intervenções tipográficas do futurismo, de Paulo de Cantos, de Massin). Tim Gaze tem continuamente demonstrado no seu trabalho e discussões um interesse em beber de uma família muito alargada de referências para construir os seus próprios processos (muitas vezes estocásticos, mas que poderão levar a resultados coerentes) de criação. No posfácio de 100 Scenes, ele cita Oscar Domínguez e Max Ernst, Michael Jacobson, os lettristes, Andrei Molotiu e Henri Michaux e muitos outros exemplos, bem diversos entre si, mas todos eles concorrendo para essa ideia que elimina a separabilidade perceptiva, cognitiva e, eventualmente, semiológica, entre escrita e desenho.
Mais importantemente, aponta os seguintes aspectos: primo, que pretende irmanar-se com essas obras “tanto do domínio da literatura como da banda desenhada”; secondo, e correlato do ponto anterior, que “toca em duas áreas emergentes: a banda desenhada abstracta (…) e a escrita assémica”; tertio, que apesar de utilizar sobretudo manchas de tinta-da-China sobre papel (e já voltaremos ao aspecto material), não quer ser confundido com o teste de Rorschach, o qual é uma “ferramenta analítica. As minhas [manchas de tinta] querem servir ao estímulo da imaginação de pessoas saudáveis, por prazer”.
Este último passo é problemático na sua assunção sobre “pessoas saudáveis”, mas o que Tim Gaze talvez queira sublinhar é o facto das suas manchas não pretenderem constituir-se como um sistema restrito de interpretação estatística e clínica como o testo (fechado) de Rorschach. Mais importante ainda são os outros dois pontos que tenta demonstrar, em primeiro lugar, os domínios sociais (económicos, de distribuição, de divulgação) em que se pode inscrever, e em segundo, que papel pode ganhar em termos de “desenvolvimento e pesquisa artística” dessas mesmas áreas, as quais, graças ao próprio Gaze, se tornam potenciais áreas gémeas.
As ligações a áreas várias é assustadoramente complexa e multidisciplinar. Acompanhem-se os tremendos passos expostos por Andrei Molotiu no seu blog, e para uma história mais condensada mas tão vivaz dos encontros destas disciplinas (que podem não ser díspares), veja-se o texto que Domingos Isabelinho escreveu sobre este mesmo livro em The Hooded Utilitarian.
O caminho até à poesia é múltiplo, e não tem sempre a ver com uma mestria da linguagem em veículos expressivos. Austin Kleon é autor de Newspaper Blackout, uma antologia do seu trabalho que consiste em páginas de jornal cobertas com marcador, revelando apenas algumas palavras que constituem um novo texto, um poema. Muito similar à prática de Tom Philips, ainda que o resultado seja diferente quer em termos compositivos e visuais quer em termos de género literário. Mas onde Kleon e Philips chegam à poesia sem abandonarem a âncora (barthesiana, até) da matéria textual, Gaze quer lá chegar por outra via.
Uma das grandes (ainda) e vexantes (ainda) questões da crítica literária, que também se estende a outras disciplinas artísticas, é da sua categorização, implicando uma imediata emergência de instrumentos próprios de apreciação, análise e subsequente valorização, se não mesmo hierarquização. Ao mesmo tempo, esse caminho não pode levar a uma absolutização desses mesmos instrumentos, nem a legislações universais. Isto é, não poderemos julgar um determinado tipo ou categoria de texto - se concordarmos, logo à partida, com essa categorização - com um outro. Por hipótese, esperar de um texto da literatura infantil os mesmos elementos que um romance contemporâneo, ou esperar que um romance de ficção científica obedeça aos mesmos princípios cognitivos que funcionam na leitura de um ensaio. Tudo isto é claro, mesmo quando temos, de facto, literatura infantil que explora aspectos usualmente empregues na literatura contemporânea (experimentações no tempo diegético, explorações de uma vagueza conceptual, matérias emocionalmente profundas e jamais resolvidas, não-ditos, etc.), ou romances contemporâneos que empregam elementos do universo infanto-juvenil (personagens-tipo, estruturas simplistas mas empolgantes, soluções ex machina, emoções ou básicas em si mesmas ou com um tratamento básico, etc.), ou discursos científicos que podem misturar os dois modos (ficcional e ensaístico).
Quando se abordam textos “visuais”, essa questão torna-se ainda mais complexa, pois todos aqueles instrumentos que a narratologia nos oferece - focalização, tempo da história versus tempo da narrativa, velocidade e ordem do tempo, personagens, narrador, fábula e história, metalepses, etc. - vão pela janela fora, e é-se obrigado a ir buscar conceitos e instrumentos a outras disciplinas que pareciam ser totalmente estrangeiras, a saber, as artes visuais. A provocação do sub-título, como aponta Isabelinho, encontra-se no facto de que a relação deste livro de Gaze com a noção de romance (“novel”) é quase inexistente, mas, se ponderarmos cuidadosamente sobre a história desse género literário em particular, compreenderemos que tampouco se encaixa na perfeição naqueles livros de banda desenhada que parecem ter merecido esse nome…
Quando tivemos oportunidade para discutir a antologia Abstract Comics, falámos da noção da escrita assémica, que tinha mais a ver com a presença de signos que não constituem, na nomenclatura de Peirce, símbolos, isto é, uma norma convencional acordada em sociedade, do que algo que não possuísse significado algum. No entanto, e apesar de 100 Scenes ser constituído por imagens que não parecem ser manipuladas a partir de uma matriz comum, nem poderem instituir um princípio (simples, visível, interpretável, assinalável) de variações coordenadas, ainda assim, existem pequenas técnicas, estilismos, que são detectáveis: pequenas formações dendríticas, arrastamentos, carimbagens, possíveis manipulações via fotocopiadora (prendendo a imagem sob o scanner), uso do pincel meio-seco, golpes provavelmente circulares do pulso… O modo de reprodução e impressão (digitalizações simples de “tinta acrílica barata” sobre papel vulgar, tudo isto em offset) impede que se possa apreender as especificidades materiais dos gestos e dos instrumentos empregues. Algumas manchas aparecem com uma densidade de pretos que muito provavelmente não corresponde à mancha original, as texturas dos objectos com os quais Gaze criou as suas decalcomanias não são apreensíveis, e muito provavelmente há um tratamento e uso homogéneo de formato que nos impede de perceber quais as dimensões originais. Ainda assim, aqueles tais sinais regulares fazem-nos imaginar a possibilidade de entender um vocabulário mínimo e recorrente como aquele instituído por teóricos clássicos da pintura caligráfica chinesa, como Shi’Tao. Percebemos, portanto, o problema deste objecto, entre especificidades materiais e expressivas que se poderiam tornar significativas nelas mesmas, e uma homogeneidade gráfica final que pretende anular esses mesmos efeitos e aproximar-se dessa qualidade “neutra” (nunca o é, esta é apenas uma confortável ficção analítica) do texto impresso…
De certa forma, regressemos a um ponto anterior, esta abordagem visual está na continuidade do espectro que imaginámos ininterrupto entre os dois possíveis pólos da escrita e da imagem. O primeiro sendo uma altamente estilizada e codificada forma de apresentar signos que representam um número fechado de elementos (sons vocálicos, consonantais, melódicos, etc.) mas podendo depois, por seu lado, combinar-se num número infinito de representações, o segundo signos sem a possibilidade da dupla articulação, que representassem objectos concretos - por vezes, eles mesmos - mais ou menos próximos desses objectos “reais” que representariam (portanto, constituindo a relação de iconicidade, segundo Peirce). Mas vimos também como essa divisão apresentaria problemas, se tomarmos em conta que desenhamos letras, entre outras relações de com-plicação (á hifenização não é gralha).
Será possível encontrar ritmos internos no interior do livro? Pequenas sequências de página a página que nos permitissem imaginar uma transição como aquelas estipuladas por Scott McCloud? Ou encontrar pelo menos unidades em duplas páginas? A verdade é que é tentador encontrar essas unidades. Numa página, encontramos o que nos parece o campo negativo da imagem da página anterior; ali onde as manchas se espalhavam em torno de uma área branca, aqui inverte-se essa dominância; o enxame de círculos grandes desta página parece variar na página seguinte numa escala menor (fundos de dois copos servindo de carimbo?); uma sequência de quatro páginas parece consistir numa mancha de tinta espalhada numa superfície e depois “limpa” com os dedos; um dripping que levou a uma espécie de trama gigante parece repetir-se mas num movimento circular… Mas, depois destas uniões, que outro tipo de alianças serão possíveis entre estas hipotéticas unidades? Que coesão global? Que contrastes e continuidades? E, no final, a que se referirão afinal estas “100 cenas”? Haverá de facto um eco de continuidade com Hokusai, Hiroshige, Henri Riviére? Mas qual será então o objecto central de atenção? Os gestos? A tinta? Estaremos no domínio do que Walter Benjamin chamou de mancha absoluta, aquilo que se manifesta, isto é, um não-sinal, o qual por contraste se inscreve e recorta simbolicamente (“Pintura e desenho. Sobre a pintura, ou o sinal e a mancha”)? Mas então como compreender aquela “redução material” a que aludimos acima?
Tim Gaze é um poeta “experimental”, no sentido em que ele coloca “palavras” - estendemos a descrição desse mesmo termo para chegar a um puro gesto físico que cria uma mancha - num sistema que está para além dos padrões linguísticos convencionais ou consensuais. Recombina-as, aqui sob uma forma visual total, total no sentido de “apagar” a sua hipotética raiz “legível”. Por outro lado, trata-se de um autor que demonstra as suas preocupação pelos contextos formais de transmissibilidade, veiculação, espaço de divulgação dos textos (entendidos aqui no seu modo mais alargado possível), que podem ter lugar na página, mas que poderiam ser encontrados em telas, ecrãs, numa performance, num espaço físico público… O livro traz um aspecto curioso de “detenção” (apesar dele estar disponível em formato e-book pela Transgressor aqui e num slideshow musicado aqui). Se Gaze partiu da possibilidade da recombinação, e, para mais, através de processos permitidos pela flutuação das ferramentas digitais hodiernas (é uma hipótese, mas não cremos que esteja próximo em termos processuais da obra - apenas “visual”? - de Andrei Molotiu) - e que tornam realidade exponencial o que Raymond Queneau fez com Cent mille milliards de poèmes em papel - e que poderiam ainda ser ofertadas aos leitores/operadores graças àquele princípio teórico dos novos meios de comunicação social a que Lev Manovich chama “variabilidade”, a existência de um objecto como o livro vem fechar essa potencialidade. Não obstante, essa é uma herança de uma materialidade do texto e do próprio livro que havia sido iniciada por Mallarmé, o qual “tentou criar uma síntese entre uma visão filosófica do livro como um instrumento expansivo do espírito e a capacidade das suas formas físicas em incorporarem o pensamento em novos arranjos visuais”, segundo as palavras de Johanna Drucker em The Century of Artist’s Books. Outro autor, Jerome McGann (citado por Joseph Grigely em Textualterity), discute como “não existem obras finais ou acabadas, mas apenas textos finais ou acabados” (nosso sublinhado). 100 Scenes é um texto acabado, sem dúvida, a sua manipulação está fechada; todavia, ao mesmo tempo ele parece ser essa promissora expansão.
Nas notas anexas a este romance, como já indicado, o autor estabelece uma relação directa com várias experiências advindas de variadíssimos territórios, mas indica os romances-colagem de Max Ernst, como La femme 100 têtes e Une semaine de bonté, como a sua primeira raiz criativa, ou fonte de acção. Como escreve, “através de colagens estranhas de imagens, ele oferece pistas, que o leitor tem de transformar de certa forma numa narrativa [story]”. Todavia, o afastamento da obra de Ernst é produzida a mais do que uma medida. O primeiro aspecto, mais óbvio mas de não de somenos importância, tem a ver com a distância histórica, o seu impacto epocal, e o modo de circulação das obras. Quando Ernst criou as suas obras, a estranheza delas era total, algo que não compreenderemos hoje sem algum esforço da imaginação, que terá de fazer apagar toda a nossa experiência em encontrarmos aproveitamentos posteriores das suas técnicas, da sua figuração e das suas estruturas numa miríade de textos e propósitos, inclusive a mais prosaica e funcionalista das publicidades. O rapto de imagens retiradas dos seus espartilhados convénios vitorianos para um esquema desregulador, ou melhor, supra-regulador conforme os preceitos do Surrealismo, poderão hoje parecer-nos simples ou até inócuos, no meio de uma diluída atenção, garças à sobre-exposição aprogramática de experiências similares (ainda que similares somente na superfície). Um dos aspectos fortíssimos das imagens de Ernst, por exemplo, é que as suas colagens não são de forma alguma aleatórias ou ocasionais. As escolhas de quais imagens cruzar, e de como as cruzar, no mais ínfimo pormenor espacial e relacional, é superior a toda a extensão. Há algo de misterioso não por se ver uma cabeça de faisão sobreposta à de um homem, ou um reflexo num espelho que mostra as mesmas personagens mas seguramente retiradas de um outro contexto ou episódio, mas porque todas essas imagens estão subsumidas a um grau de realidade, de respeito aos poderes da gravidade e das escalas desse momento. E é esse o factor que as torna ainda mais fantasmáticas.
Ora, o trabalho de Gaze, abordando o abstracto, libertam-se de quaisquer associações dessa natureza. O que é um desenho? Paul Klee falaria de uma linha “a passear”. Louise Bourgeois responderia que é uma “secreção”. Em ambos os casos implica-se uma forma de ocupar o espaço com movimento, apesar de se capturar num estado estático. De acordo com Charles Hatfield, um importante nome da abordagem académica norte-americana sobre a banda desenhada, esta é uma arte de tensões, cujas forças habitam sempre o nexo entre dois pólos aparentemente contraditórios ou paradoxais. A banda desenhada é, como o próprio nome indica (em português), “desenhada”, mas esses desenhos não vivem no seu interior para encontraram a calma objectual e disciplinar. Bem pelo contrário, eles são criados para viver num permanente desequilíbrio accionado pelo acto dos leitores-espectadores.
100 Scenes, “100 Cenas“. Serão estas tentativas de nos aproximarmos do cerne desta obra, através destes nomes - mancha, sinal, desenho, banda desenhada, escrita assémica, etc. (atingíssemos nós 100 termos!) -, correctas? Ou haverá antes um outro caminho totalmente diferente, talvez físico, gestual para lá chegar? Ler, somente? Mas “ler somente” é sempre mais do que “somente ler” já, não é mesmo?
Nota: agradecimentos ao autor, pela oferta do seu livro.