28 de abril de 2008

Quatro Livros. Shin’ichi Abe (Seuil, Picquier, Cornélius)

Na excelente secção de comentários a Un Gentil Garçon, de Béatrice Maréchal (igualmente tradutora), explicita-se a pertença da obra de Shin’ichi Abe ao género de banda desenhada conhecido como watakushi manga, ou “banda desenhada do Eu” em japonês (a primeira palavra é o pronome pessoal no seu modo mais formal). Mais, explica a tradutora que existem “dois conceitos estreitamente ligados e característicos” deste território, sendo o primeiro o naimen, que Maréchal traduz como “for intérieur” mas alertando de imediato para que não se o entenda como informado pela psicanálise ou as estratificações freudianas, sendo tão-só uma “dimensão íntima, inexprimível” do ser humano. Poderíamos eventualmente pensar num termo como alma. O segundo conceito está marchetado no seio do primeiro, e dá pelo nome de kurai: deve-se entender isto como uma “face escondida” do naimen, “a sua parte sombria e dolorosa, socialmente inibida”. A primeira face é inexprimível, a segunda, sombria. Todavia, nada impede a que não se faça um esforço de as tornar dimensões passíveis de uma traduzibilidade pela obra de arte.
Estes quatro livros de Shin’ichi Abe foram publicados com pequenos intervalos entre si, em três editoras diferentes, e faz parte do lento mas assegurado movimento de descoberta de um panorama mais amplo da mangá, e mais interessante e rico, com tudo o que esta frase implica de temperamental e de juízo de valor, sem desculpas. (Mais)

20 de abril de 2008

Orycretopus. Gabriel Delmas (Carabas Révolution)

A banda desenhada pode-se entender em termos gerais (mas ainda não, ou nunca, enquanto definição, i.e., um fechamento) como um conjunto de imagens subsumidas a uma direcção de sentido, estruturado de acordo com um programa ao qual podemos dar o nome de “narrativo”. Narrativa aqui não significa que seja um bloco inerte com todas as características possíveis da narrativa (tempo organizado, personagens, caracterização das mesmas, psicologismo, trama, causalidade, etc.) mas apenas um intervalo no qual se podem inscrever algumas dessas características. (Mais)

15 de abril de 2008

Grupo de Leitura de Banda Desenhada na Bedeteca de Lisboa.

A Bedeteca de Lisboa deseja criar um um grupo de leitores de banda desenhada.
No próximo dia 19 dar-se-á início à primeira sessão, de 11, do Grupo de Leitura de Banda Desenhada na Bedeteca de Lisboa. Estando envolvido nesse projecto, deixo aqui a notícia. Quaisquer perguntas ou sugestões, estarei atento. O GLBD é uma actividade da Bedeteca de Lisboa, concebida em colaboração com Sara Figueiredo Costa e Pedro Moura, sendo este último o moderador de cada sessão. O objectivo principal deste GLBD é a partilha das leituras de um conjunto de títulos de banda desenhada. Este conjunto está seleccionado e será apresentado pelo moderador na primeira sessão, assim como a sua justificação e a metodologia de trabalho a seguir. Todavia, para que haja uma maior proximidade das expectativas e conhecimentos dos leitores, espera-se uma participação activa dos mesmos na primeira sessão a delinear toda a estratégia, admitindo-se a alteração dos títulos.A metodologia geral prevê a leitura de cada título antes da sessão correspondente, na qual será facultado apoio documental. Leitura entre pares, alargar os horizontes de leitura, aprender mais sobre o universo da banda desenhada são os objectivos desta iniciativa.As sessões decorrerão no auditório da Bedeteca de Lisboa, de 15 em 15 dias. A partir de Sábado, dia 19 de Abril, às 16h30. Seguem-se dias 3, 17 e 21 de Maio, 14 e 28 de Junho e 12 de Julho. As inscrições estão abertas a pessoas a partir dos 16 anos, sem qualquer outro tipo de limitação. Poderão ser feitas através de telefone (21 853 66 76), contactando-se Marcos Farrajota ou Ana Júdice, ou o email bedeteca@cm-lisboa.pt.
Nota após primeira reunião: ainda estarão abertas novas inscrições, mas as mesmas fechar-se-ão na próxima sessão, dia 3 de Maio, por razões de dinâmica de grupo (isto é, as sessões não são abertas avulsamente, mas apenas aos inscritos no início, podendo porém haver inscrições mais tardias: por favor, consultar site da Bedeteca). Estão desde já convidados à leitura do primeiro livro a juntarem-se á discussão.
A lista de leitura decidida pelo grupo inicial é a seguinte:
3 de Maio, A pior banda do mundo - O quiosque da utopia, José Carlos Fernandes
17 de Maio, Varlot Soldado, Jacques Tardi
31 de Maio, O diário de K., Filipe Abranches
14 de Junho, Mr Punch, Neil Gaiman, Dave McKean ou O Homem que Caminha, Jiro Taniguchi (a decidir)
28 de Junho, Salazar, agora na hora da sua morte, João Paulo Cotrim e Miguel Rocha
12 de Julho, Palestina, Joe Sacco
(admitem-se alterações por razões de força maior ou decisão atempada do grupo).

O que está escrito nas estrelas. Anos I & II. José Carlos Fernandes (Tinta da China)

O trabalho ininterrupto de José Carlos Fernandes, o seu esforço contínuo em lançar novas linhas (ou séries) de narrativas, que se podem ou não cruzar – na nossa imaginação, deformamos as coisas para que se cruzem -, a sua peculiar maneira de elaborar com precisão os ditos “universos” de cada livro não o fazem merecer a preguiça mental da maioria dos textos que dão notícia da sua obra. Continuamente, também, surgem apenas as ideias agora feitas em torno do trabalho de José Carlos Fernandes, como blocos obrigatórios de passagem para a feitura de um artigo sobre ele e os seus livros, que se passa por “crítico”, o artigo, mas que revelam da mais pura cegueira da individualidade de cada um dos momentos da sua obra, das especificidades de cada trabalho, de cada ritmo de respiração, desembocando portanto nessa preguiça a que me referi, que pouco surpreende, pela falta de treino de visões amplas e ponderações acabadas da parte de quem os escreve.
Essas ideias-feitas são, por exemplo, a da “imensa cultura” do autor, quando não se nota que essa “cultura” é apenas um forma exacerbada, explodida, absurda e por isso cómica da citação caótica e impertinente, acabando precisamente por servir como crítica contundente das ilusões que essa “cultura” implica. Fala-se da sua qualidade “literária” como se fosse um ingrediente mensurável e concreto, passível de ter sempre uma mesma valia entre autores diferentes e entre contextos diferentes, e pouco se explora o progressivo afastamento de José Carlos Fernandes de uma certa poeticidade paradoxalmente serôdia e adolescente, e adomingada, dos seus primeiros trabalhos, na direcção de uma pesquisa por uma cada vez maior concretude e acuidade das suas descrições, inclusive dos mecanismos emocionais das suas personagens. Outra é de se tratar por “soberbo” o seu trabalho gráfico, quando a força reside num intervalo desse mesmo trabalho, já que não é o virtuosismo nem a beleza “desinteressada e livre” o seu território de cultivo. Outra é a de salientar a sua “imaginação”, açaimando esta faculdade humana como simples repositório de fantasias e não como poderoso instrumento de formação de imagens, que se pode e deve exercer sobre todas as direcções e matérias do mundo. Mas a imaginação de José Carlos Fernandes leva-o a pegar num comportamento humano natural, verificado, e levá-lo, talvez não necessariamente às últimas, mas a avançadas consequências, uma sua hipérbole, o que desperta o seu lado ridículo, absurdo ou até mesmo trágico (se bem que o trágico, em Fernandes, seja as mais das vezes risível): há sempre um avô a quem lhe doem os joelhos, prevendo-se a chuva; JFC leva a que a personagem sinta com a dor desse mesmo joelho a mais precisa intensidade e direcção do vento, a medida da chuva, a ondulação certeira nas costas, a temperatura correcta. É preciso, antes do mais, ler os livros de José Carlos Fernandes, e não manter-se apenas atrás das linhas das barricadas dos “fãs”, que colocam a sua capacidade de juízo e discernimento em descanso, e abrem os seus peitos para quaisquer aceitações.
José Carlos Fernandes é um autor de personalidade autoral forte (enquanto pessoa, terá o direito à privacidade, naturalmente, e não é papel do crítico imiscuir-se na sua esfera íntima), cujas características anfractuosas marcam cada um dos trabalhos, e notar-se-ão as suas forças de modo desigual, aqui mais vincadas, ali mais diluídas por um outro programa. Haverá, em termos pessoais, um método de entrega a cada um dos trabalhos, que o autor seguramente asseverará ser idêntico, profissional, contumaz na sua execução. Mas é da(s) obra(s) em si que desprende a flutuação dessas características e forças que habitam no autor e se vão expressando. Porque flutuam. Não há, em José Carlos Fernandes, uma constante.
O que está escrito nas estrelas. Anos I & II parece-me ser um desses exercícios que se colocará no mesmo círculo que a Última Obra-Prima de Aaron Slobodj ou as personagens “cabeçudas” (v. Quadrado Vol. 3, no. 3). Exercício, como tudo o que essa palavra tem de transitório e de aproximativo e de intervalar. Não se trata de um gesto acabado, rotundo, mas antes de uma forma de respirar mais calma a que José Carlos Fernandes se permite no meio da sua profusa tarefa.
De que trata este livro? De uma inversão, ou de um retorno, ou de um fortalecimento.
A astrologia, de acordo com Walter Benjamin e, antes dele, Aby Warburg, é uma das formas sobreviventes de “atitudes cognitivas humanas primitivas”, um resquício de uma mundividência que era habitada por sombras muitas, rotundas e com uma presença mais marcada no mundo, que entretanto se dissipariam com o advento da dita iluminação da razão e da ciência, e do seu músculo positivista. Esse último autor, porém, notava nela uma dialéctica, um equilíbrio entre a “fantasia concreta” e a “abstracção matemática”, isto é, não apenas a parte que desenhou figuras monstruosas (“que mostram”) nos céus mas também aquele que previa, com precisão, e à distância, os mecanismos dos fenómenos celestes. Apenas mais tarde se faria uma progressiva separação entre essas partes constituintes, dando uma origem à astronomia e às ciências correlatadas, e a outra a esse exercício cada vez mais generalista – mas não mítica, precisamente porque se desligou totalmente dos mitos que lhe deram origem, e sem essas histórias originárias, não entendemos a trama, apenas os fragmentos e restos - e que hoje se reveste numa sua forma redutora e caricata nos horóscopos de jornal, um coluna de cinco linhas para mil ou mais cidadãos diferentes. E as fracas e incontroláveis correspondências (cada signo com sua parte do corpo, e pedra preciosa, e dia da semana, e santo Católico, e flor, e cor, e tipo de carro, e tipo de chá, e marca de champô) que esta astrologia por atacado serve apenas desagrega o mínimo poder que ela poderia ainda assumir nesta era que ainda pensa ser possível esgotar todo o saber.
Por isso é curioso que neste livro, nos textos apócrifos que o acompanham, se indique que este horóscopo seja de um “assombroso rigor científico” (o oximoro não é inocente) e se fale de um apoio, para além do mágico, científico (o telescópio Hubble e o CNRS). Ou melhor, não é curioso, é revelador. Revelador, pois as ciências atingiram um limite nos nossos dias que as remete a um discurso abstracto, hermético, quase oculto: as escalas femtométricas diluem-se numa impensável Lilipute, as p-branas parecem pertencer aos contos de Hofmannsthal, as possibilidades da biotecnologia às bancadas de Hefesto, a implicate order de Bohm aos desígnios de Zeus, os comportamentos dos buracos negros a mistérios antigos...
E, então, como reequilíbrio dessa questão, O que está escrito nas estrelas propõe um retorno da astrologia a essa concretude antiga e absoluta: mas tão abusada que se torna portanto totalitária, tão exacta e determinista, que atinge uma natureza ridícula mesmo. É essa a sua Ideia.
As personagens não têm espaço para a fuga, o determinismo é-lhes sufocante, se não mesmo violento. Para as pequeníssimas histórias que José Carlos Fernandes instaura para cada mês destes dois anos previstos, o autor aproveita contos populares, conselhos típicos da publicidade, sonhos demasiado literais, cenas do quotidiano (a história de Abril do Ano II atinge uma crueldade perfeita, por ser, já, verdadeira) para as encerrar, às personagens a quem cabe esse destino, numa morte prometida. E é por isso que elas caem... Quase todas as personagens estão em queda neste livro. Ou literalmente, ou em quedas invertidas, ou em pequenos desvios e tormentos, ou encontram-se em espaços intervalares, praias, desertos, ou num combate e diálogo com uma criatura que lhes promete algo que não cumprem porque lhes é interrompida a promessa, ou deparando-se com criaturas fantásticas ou menos fantásticas mas que assumem um papel fantástico.
José Carlos Fernandes não é propriamente um virtuoso do desenho, um artista-artesão que domine toda uma série de mecanismos precisos da arte da representação através das formas. Este livro, em todo o caso, reporta-se a uma fase anterior da sua carreira mais contemporânea. Lenta, graciosa e felizmente, José Carlos Fernandes tem a oportunidade de ver sair da gaveta toda uma série de projectos que aí residiam até agora, e os seus “projectos na gaveta” ganham com a fórmula de Horácio, pois atingem um direito de cidadania não apenas sustentável como garantido. Todavia, não devem entender estas palavras como uma espécie de denegrir do seu trabalho. Bem pelo contrário, encontram-se nestas unidades narrativas singulares (desenho e pequeno texto que informa ou dá nova forma ao desenho) o mesmo princípio que nalgumas das obras de Blake, outro autor de quem, sendo menor a capacidade artística (enquanto disciplina regrada por princípios estanques) do que a poética, compensava com esta força, nos poemas, aquela fraqueza, dos desenhos. Também José Carlos Fernandes é um artista a pleno direito por infundir nos desenhos uma força que provém da sua Ideia, construída pela presença dos textos, singulares, e toda a estrutura do livro, enquanto texto maior.
Nota: são muitos os blogs e sites, inclusive os da editora, onde encontrarão imagens do interior do livro, a eles vos remetendo e por eles justificando a ausência de imagens neste post.

Exit Wounds. Rutu Modan (Drawn and Quarterly )

Temo não saber explicar bem, nem argumentar solidamente, a ideia que desejo aqui expor, para poder avançar numa interpretação aberta sobre Exit Wounds. O que se segue é mais um apalpar tentativo, mas não de modo algum uma decisão definitiva.
Acredito que todo e qualquer indivíduo tem a capacidade, mais, a obrigação de se separar das suas heranças filogenéticas para que possa tornar-se mais indivíduo ainda (o que não implica que para esse desenvolvimento interno não haja a necessidade de absorver em si, do seu modo particular, essas mesmas heranças e pertenças). Esta separação não tem nada a ver com uma busca mais ou menos patética – usualmente mais – por uma universalidade vazia e bacoca, demagógica e mal-pensante. Tem antes que ver com uma predisposição em procurar uma solidez interna que consequentemente permitirá nutrir a amizade como todo e qualquer ser humano independentemente da sua inscrição em quaisquer das categorias sociais que lhe couberem (nacionalidade, sexo, sexualidade, etnia, raça, cor de pele, comprimento das unhas, filiação política, clubística, estatuto económico, nível social ou educacional, gostos, e um sem fim de etcs.). De certa forma, é aquela abertura para com o “senso comum” de Kant, e raiz da única verdadeira comunidade humana. Existirão espectros que parecem constituir-se como excepções, como esses que dão pelo nome de “heróis nacionais”, que levariam a toda uma discussão diferente, já que os crimes desta perspectiva reflectem-se na honra daquela outra. É numa reduzida forma dessa ideia de nacionalidade que se fazem essas obras que dão pelo nome de “nacionalistas” ou “patrióticas” – Manoel de Oliveira parece primar nessa linha com os seus últimos filmes, por exemplo. Uma outra forma ainda mais reduzida, apesar de reforçar as linhas humanas pelas que se cosem são essas obras em que uma personagem, usualmente confundida com o seu autor, procura as suas raízes, ou consolidar a sua personalidade através de jogos especulares com a nação de que provém... Bastas vezes falámos aqui de autores desse grupo, sobretudo os norte-americanos de origem asiática.
Nesta senda, devo asseverar que não creio na coriácea natureza dos “geists” nacionais, apesar de ser tentador encontrar, de facto, em factos, características pertencentes a um grupo particular confinado por uma nacionalidade ou uma etnia que parecem constituir um espírito relativamente coeso e contínuo. E poderíamos encontrar diferenças de graus nos modos como cada um desses grupos vive a sua “especificidade”. Por exemplo, o modo como os portugueses, ainda que a saudade não lhes seja um sentimento exclusivo, a empregam como factor caracterizador. Os judeus, mormente os israelitas, parecem viver as características que lhe foram cabendo através da história de um modo perfeitamente acabado, a cada segundo e em cada palavra que proferem. Rutu Modan parece ter feito um levantamento dessas linhas caracterizadoras para construir o pequeno espaço circunscrito em Exit Wounds.
É reflectindo estas impressões – que não chegam a constituir matéria concreta de argumentação, evidente – que se torna premente olhar a própria profissão da personagem principal, Koby Franco, a de taxista, como uma metáfora da milenar vagabundagem judia (vagabundagem, ou melhor, vagamundagem, assumirá aqui o seu sentido literal). Metáfora abusadora? Talvez...
A narrativa coloca Koby e uma jovem moça, Numi, em busca do paradeiro do pai do primeiro, que ambos julgam ter morrido num ataque suicida num terminal de autocarros. Não é apenas a realidade violenta de Israel que se torna apenas ruído de fundo – e a ausência de comentários mais directos, quer a favor quer contra seja de quais os lados múltiplos existentes na questão leva a pensar que Modan quer mostrar isso mesmo, deveria ser algo tornado como ruído de fundo e esperar que desaparecesse; mas uma atitude mais directa, de encarar essa vexata quaestio, iluminaria pequenos pormenores espalhados na constituição desta ficção -, mas a busca do pai (sempre ausente, até ao fim, e cuja figura é sempre desviada para a de outras personagens) parece tornar-se numa outra poderosa imagem metafórica, ou metonímica, da busca por um Deus que parece não deixar sequer sombra, ou um hausto que lhe indique a presença.
O corpo do suposto morto é permanentemente elusivo, parece ganhar um movimento próprio de ausências ou intangibilidades permanentemente proteladas e, por seu turno, incute a Koby e a Numi um movimento que lhes pertence apenas a eles. Um road movie em busca de Deus? Esse movimento empurra-os também para uma paulatina e soluçante aproximação, que termina de um modo reminiscente do Trust, de Hal Hartley, não apenas pela sua camada mais superficial, mas pelo modo como em cada uma das personagens novas facetas se podem abrir por proximidade da outra. Digo soluçante pois todos os primeiros pontos de contacto desfazem-se rapidamente, e até mesmo o momento de maior força de encontro acaba por inflectir num forte rompimento. O modo como Rutu Modan distribui as manchas de cor são também significativas, com as partes diluídas contrastando com as nítidas surgindo não apenas como diferentes planos de um “à frente de” e um “atrás de”, mas como signos de uma distância incomensurável. E apesar da sua simplicidade, e dos desenhos que inscreve, e da composição das pranchas em que os inscreve, toda uma sucessão de simplicidades que concorre para uma complexidade final
Tratar-se-ão estas de sobreinterpretações, para as quais Umberto Eco alerta e repreende? Julgo que não. Veja-se a página 140. Nela, a lua parece sorrir. Não há qualquer esforço gráfico da autora para que essa ilusão se crie, não faz parte sequer das determinações deste livro, mas os elementos estão là, mesmo que por acidente, e uma imaginação – uma projecção – leva a que unamos os pontos e encontremos esse sentido, essa imagem. Sim, os elementos estão lá. Enfim, torna-se Exit Wounds, por antonomásia, já que não são apenas das “feridas de saída” (dos estilhaços, da bala, da dor, da ausência) que aqui se reza mas também de outros caminhos de entrada, em que o triângulo amoroso aberto (Numi havia sido amante do pai de Koby) se fecha num ângulo contrário àquele em que se abriu, e a relação dos dois personagens são um exacto contrário da relação que Numi tinha tido anteriormente. É como se se fosse uma história bíblica, de facto, daquelas em que os amores apenas se constituem pelo peso das penas e das mortes que deixa atrás ou promete no futuro. Confirma-se, menos por menos dá mais.

5 de abril de 2008

Ryota du Mandala. Jun Hatanaka (Seuil)

Esta tradução francesa reúne em três volumes o que penso ser a vida longa, 10 anos, da série “Ryota do Mandala”, sendo Ryota o nome do protagonista, um jovem de dezasseis anos (e que envelhece com o progresso “natural” dos episódios) e Mandala o nome da pensão termal onde vive e trabalha (pertença da sua mãe). Tratando-se de uma série cuja vida original se estendeu de 1979 pelos anos 80 no Japão, há porém uma qualquer patina que se desprende de toda a obra que faz pensar num tom nostálgico, que poderá ter a ver com a adolescência do próprio autor, ou com um certa apetência para um imaginário patente na ficção japonesa da época (no cinema, na literatura, e para além dela). Esse aspecto pode ser ilustrado com uma das facetas de Jun Hatanaka, que é a de cultor da xilogravura, um acto que, só por si, revelará um interesse e uma entrega a um modo de criação, não tanto obsoleto – comentário apenas possível naqueles que são cegos pelo fulgor do “novo” – mas aberto a uma rememoração de gestos menos habituais. É como se Hatanaka escrevesse no presente sempre olhando para o passado por cima do ombro. O passado não pode ser olhado olhando para trás rodando todo o corpo, pois assim passaríamos a estar de novo voltados para o futuro (que é, na nossa cultura, o que está em frente dos nossos rostos e olhar), mas antes olhado com alguma dificuldade para trás. Porém, é esta mesma dificuldade, até física, que torna claro o paradoxo de olhar para o passado e tentar falar dele por meio de uma obra (ficcional ou não, de arte ou menos), daquilo que, de certa forma, Walter Benjamin cristalizou na imagem de “olhar por um telescópio o passado através do presente” (é difícil traduzir esta imagem em conceitos claros, mas trata-se de fazer convergir num espaço todo um movimento, de condensar elementos numa só figura, de manter à distância aquilo que trazemos para perto de nós).
Os volumes são compostos por histórias curtas, episódios que têm como centro acontecimentos que não se relacionam entre si, tornando-os portanto independentes uns dos outros. Mas ao mesmo tempo existem aspectos recorrentes, que não têm simplesmente a ver com temas repetidos ou traços das personalidades das suas personagens revisitados, mas antes com um movimento espiralado, vestígios que se revisitam para a cada vez se tornarem mais claros ou mais complexos, fazendo emergir, no final, uma imagem compósita com todos esses elementos. Mais uma vez, é uma imitação do modo como a memória funciona, apesar de não existir qualquer indício directo ou extra-textual que o indique: trata-se de uma impressão criada por esse ritmo.
Na verdade, há um tema óbvio tratado em cada episódio da vida de Ryota: o despertar para a vida sexual dos adolescentes, não só o próprio Ryota, como a dos seus amigos mais próximos e a das raparigas que vão surgindo, tocando tangencialmente a de todos os outros intervenientes. As estâncias termais no Japão são classicamente consideradas um local de deboche e oportunidades sexuais. O conceito de “pecado” é inexistente na cultural japonesa, e a prostituição, apesar de ser uma figura jurídica ilegal, toma muitas formas aceites de um modo quase natural (quer dizer, sem estranheza) naquela sociedade. A existência de “serviços extra” num local destes – anos antes do desenvolvimento das soaplands – era não apenas esperada, como parte integrante. A estância Mandala tenta ser “limpa”, mas testemunhamos os momentos em que nem sempre isso é possível, e quando por vezes se verifica mesmo a conivência de todos os seus membros. Por exemplo, a mãe de Ryota por várias ocasiões sabe dos comportamentos do filho, que inclui espreitar as mulheres no banho, masturbar-se num local mais privado ou mais público, fazer sexo com várias mulheres... Isso não constitui um choque para a mãe, como o seria, talvez, nas nossas sociedades sob a sombra do pecado, e é matéria de interesse de contraste cultural. Quase todos os aspectos relacionados com a esfera sexual, nestas histórias, inclusive o humor, sublinham as diferenças culturais entre esta cultura particular e a nossa, mas é aí que reside a transformação desta histórias num palco de aprendizagem efectivo.
O humor de Jun Hatanaka vive portanto deste círculo de referências, piadas por vezes de mau gosto, ou de um gosto fácil, mas a obra ganha uma dimensão mais forte e acabada graças aos ângulos mais humanos que coloca em torno destes acontecimentos. Ryota du Mandala acaba por se tornar uma espécie de retrato da vida campesina ou montanhesa destas personagens, numa época em que a estandardização da cultura japonesa ainda não estava efectivada, em que toda uma série de estereótipos culturais por vir ainda se estavam formando e havia a possibilidade de uma procura por um espaço próprio, em que a mobilidade social era ainda possível, desejada e experimentada graças a abertura social e económica que começava a ganhar forma. Testemunhamos também os momentos de lazer e de confronto destas personagens com a vida mais urbana, das metrópoles em crescimento, quando eles “descem à cidade”. Vemos uma procissão de funções sociais e de personagens que, sendo personagens-tipo, ganham direito a um ou dois momentos de se tornaram verdadeiras personalidades (como o professor de Matemática, ou um criminoso que retorna para poder ver as filhas, ou uma jovem que fugira e se redime na vila que a viu nascer). Esse tratamento paradoxal tem também a sua dimensão e dinâmica visual, no tratamento quase ideogramático das personagens principais, especialmente os homens ou as personagens mais velhas, e uma opção por uma estilização estereotipada das raparigas jovens, por um lado objectificando-as, sem dúvida, mas por outro sublinhando assim a sua capacidade de fascínio (nada que não houvesse sido tentado antes, mesmo na banda desenhada ocidental, bastando recordar as “Gibson girls”, ou o tratamento análogo por George McManus, muito influente no Japão na emergência da mangá moderna, ou Cliff Sterrett). E há ainda momentos em que o autor se permite a inclusão de intervalos idílicos, graças à representação de um passeio, um piquenique, uma curta viagem, entregando-se a parcelares apresentação da natureza que rodeia a pensão Mandala, trazendo os exercícios clássicos das paisagens nas quatro estações para o interior destas pequenas narrativas.
Há, então, duas formas de lermos estes livros. Ou a de nos centrarmos somente nas escapadas e piadas em torno do sexo, que se repete e esgota a partir de certo ponto. Ou a de permitirmo-nos descobrir essas outras menos imediatas dimensões das histórias, que por sua vez as iluminam e as transfiguram em momentos de memórias nossas, mesmo que as não sejam.

This book contains language. Comics as Literature. Rocco Versaci (Continuum)

Numa importante obra da Filosofia da Linguagem, Metaphors we live by, os seus autores, George Lakoff e Mark Johnson, demonstram quão presentes estão as metáforas na nossa linguagem, muito para além daquilo a que normalmente se dá o nome de “discurso figurativo”. Quando falamos, empregamos conceitos e aspectos de um domínio (a “fonte”) para explicitar um outro (o “alvo”). Os autores dão inúmeros exemplos da língua inglesa, mas muitos deles são literalmente os mesmos em português, e muitos outros seriam descobertos na nossa língua, ou noutras. Uma das metáforas sistemáticas (.i.e., que fazem sistema, logo, mais significativas e estruturais) que Lakoff e Johnson estudam, na verdade a primeira apresentada e debatida é a de “Discussão é Guerra”, presente em muitas expressões em torno deste tema. Quando discutimos, quando se trocam argumentos, dizemos que “as suas posições são indefensáveis”, “as críticas dela acertaram no alvo” ou “ele derrubou todos os meus argumentos” (op. cit., pg. 4).
E é esta a metáfora ubíqua na obra de Rocco Versaci, This Book Contains Graphic Language: Comics As Literature. Nos cinco capítulos centrais deste livro (há ainda uma longa introdução), a banda desenhada é colocada “versus” uma série de categoriais mais ou menos estáveis no interior da literatura, a saber, Memórias, Memórias do Holocausto (e Fotografia do Holocausto), Reportagem, Filmes de Guerra e “Verdadeira” Literatura. Deverá ser óbvio que, colocadas estas categorias tal qual, surgirá de imediato a questão de como é que estas categorias se relacionam umas com as outras, como é que elas se relacionam com esse animal elusivo que é a Literatura, e até mesmo se esta categorização é pertinente à partida. Porém, Versaci dedica algum tempo a apresentar razões inteligentes e convincentes em relação a cada uma delas, delineando-as de um modo claro (ainda que possa permitir abertura) e sublinhando-lhes os aspectos que são mais importantes para a sua argumentação principal – afinal de contas, o autor centra-se no aspecto narrativo da banda desenhada, ou melhor, na natureza narrativa da banda desenhada narrativa -, evidenciando as características em comum ou opostas em relação à banda desenhada (outro animal elusivo, sem dúvida). Devo confessar que, em princípio, não me parece que esta estratégia de argumentação seja a melhor, na qual algo se destaca para servir de arma de arremesso ou de comparação antagonista com outro aspecto qualquer, como se estivéssemos de facto perante um combate, ou seja, na expectativa de termos um vencedor no final. Uma coisa é esclarecer uma determinada qualidade, demonstrando como um conjunto de instrumentos analíticos, desenvolvidos numa área específica de estudo e de investigação, de uma disciplina, pode ser aplicado a uma outra área, contígua ou remota, despertando assim a esperança de que desse confronto possa surgir algo pertinente e frutífero. Penso que o livro de Ann Miller, Reading Bande Dessinée, é um excelente dessa estratégia específica. Outra é simplesmente colocar exemplos de um campo versus os de outro.
Não obstante, não é isso o que Versaci faz. Mais, se desejarmos desenvolver a metáfora da “guerra”, e se nos recordarmos da ideia de Heidegger, em A Origem da Obra de Arte, como um combate entre dois combatentes em que nenhum vence ou é vencido mas antes “elevam-se um ao outro à auto-afirmação das suas essências”, estaremos mais próximos daquilo que o livro de Versaci não só tenta como cumpre.
Depois de um primeiro capítulo introdutório às vezes demasiado pessoal, e muitas vezes entregando-se à indulgência, uma vez mais de que “a banda desenhada já não é só para crianças” ou que “há muitos exemplos de boa banda desenhada”, etc., mas que se compreende necessário à abertura do campo, são os seguintes estruturados de acordo com as tais “categorias”.
O segundo capítulo dedica-se não somente à questão da autobiografia, mas a uma categoria literária ligeiramente mais abrangente a que se dá o nome de “Memórias”. Versaci aqui debate algumas das obras de Chester Brown, Debbie Dreschler, Phoebe Gloeckner, Craig Thompson, Paul Hornschemeier, Al Davison, Dan Clowes, Catherine Doherty, Lynda Barry e, claro, Harvey Pekar e os seus colaboradores. Possivelmente o número elevado de exemplos impede Versaci de fazer uma verdadeira leitura pausada e pormenorizada destas obras, mas ele próprio revela não desejar tanto a exaustão como abrir um campo de discussão. O problema está no facto de que este não é propriamente um novo campo de discussão, e surge antes mais como uma espécie de balanço dos temas pertinentes de discutir neste campo – a representação/mediação do corpo-protagonista, a estruturação das memórias através de dispositivos ficcionais, a questão de “verdade”, etc. – em relação aos mesmos na banda desenhada. Esse balanço é bem-vindo, sem dúvida, e coloca este volume num mesmo patamar que os livros de Ann Miller ou de Bart Beaty (Unpopular Culture), todos eles neste momento excelentes livros de introdução às problemáticas contemporâneas do estudo da banda desenhada, mas não o torna um espaço de inauguração.
O terceiro capítulo especifica o campo anterior, afunilando as memórias àquelas relacionadas com o Holocausto judeu da segunda Grande Guerra (campo imenso na literatura, mas também noutros modos de expressão). Será evidente que a obra que se encontra no centro deste capítulo seja o Maus de Art Spiegelman (obra que já suscitou muitos estudos académicos), se bem que Versaci poderia eventualmente ter tornando este capítulo mais consolidado e alerta se houvesse alargado a sua atenção analítica a outras obras com a mesma temática (mesmo que as cite, fá-lo transversalmente). Acima de tudo, Versaci preocupa-se neste capítulo com o problema da mediação e a representação do “eu social” (na qual se inclui o corpo, naturalmente). Na conformidade da leitura de Susan Sontag, Versaci demonstra como Spiegelman evita cair nos perigos da suposta desejada objectividade no seu relato/retrato da experiência do pai na Shoah, incorporando os caveats de um modo implicado da sua obra, revelando como a narratividade – “só aquilo que narra nos faz compreender”, citando-se Sontag - do desenho, ou com maior rigor, da banda desenhada, ultrapassa as armadilhas prometidas pela fotografia. Há aqui um território por explorar, aflorado somente pelo autor.
Segue-se a relação da banda desenhada com o conceito de reportagem (de certa forma, um grau, não uma natureza, ligeiramente diferente da categoria anterior), explorando-se a obra de Joe Sacco, Ted Rall, Dave Collier e Sue Coe. Para ser mais específico, Versaci advoga que estes autores são como que uma nova geração daquilo que nos Estados Unidos se conhece por “New Journalism” (arregimentando-se neste campo Thomas Wolfe e Truman Capote como os seus “pais”, e Michael Herr, um jornalista na Guerra do Vietname, o famoso Hunter S. Thompson, ente outros). Versaci demonstra como aquilo que havia surgido como uma reacção moderna e saudável em relação a uma falsa objectividade do jornalismo (que mais não era que “a voz do dono” do poder da sua época, curiosamente um tema muito contemporâneo nos nossos dias após decisões de Alberto João Jardim), como a entrega a um consciente subjectivismo e até mesmo uma certa abertura e inclusão de uma verdade pessoal exacerbada levou a uma mais consolidada atenção democrática e humana, mas que seria mais tarde reabsorvido pelos “círculo do poder”, perdendo a sua força e até mesmo acabando por se reduzir a pequenos “tiques técnicos” em qualquer jornalista (Portugal, em particular, peca por excesso neste defeito). Porém, é de um território surpreendente, a banda desenhada, que surgem posições vincadas e destacadas da massa opinativa geral: Sacco com a sua posição dita pró-palestiniana, Rall contra a administração Bush, Coe contra a indústria da carne... Mas mais uma vez, seria interessante ter alargado o campo da discussão, integrando-se precisamente os problemas e as críticas que Sacco atravessou, ou se soubesse ter integrado outras posições radicais no campo da banda desenhada, como as do grupo da World War III ou de Philippe Squarzoni, se o conhecesse. Mais uma vez, fica como que a nota de intenções de “questões a explorar”.
Finalmente, o quinto capítulo é aquele que, se me parece ser o mais bem conseguido, e verdadeiramente “novo” no seu tratamento, também é aquele que revela os mesmos problemas aventados atrás, e que torna o resultado desta leitura naquilo a que de dá o nome em inglês de “mixed feelings”. Basicamente, Versaci opõe a banda desenhada norte-americana dos anos 40 e 50, de guerra, aos filmes (dos estúdios de Hollywood, o que é praticamente dizer todo o cinema norte-americano, já que não existia ainda a cultura dos independentes; mavericks, sim, independente não) da mesma época e da mesma temática. Se digo “basicamente”, é porque na verdade Versaci está a fazer uma escolha muito ajuizada, ainda que desequilibrada: centra-se sobretudo nas histórias que Harvey Kurtzman criou ou produziu para as revistas Two-Fisted Tales e Frontline Combat (por vezes, Kurtzman escrevia as histórias e apresentava uma mise-en-page mas não era ele quem as desenhava), a maioria delas sobre a Guerra da Coreia (então contemporânea), mas também versando outros conflitos bélicos. Versaci demonstra como a indústria cinematográfica norte-americana trabalhava em consonância com as políticas da Secretaria de Estado, não revelando quaisquer inclinações intervencionistas enquanto a América no geral não o era, e envolvendo-se na demonização do inimigo (diferentemente, mas quer dos alemães quer dos japoneses) depois de declarar guerra ao Eixo. Estabelecendo-se um diálogo directo entre o poder militar e político e os estúdios de cinema, não se poderia esperar que não houvesse senão um respeito para com todo um conjunto de regras inerentes a um processo que implicava, primeiro, uma concertação do direito internacional (o filme de Charles Chalin, O Grande Ditador, de 1940, antes da intervenção, levantou uma celeuma muito grave), depois as políticas de propaganda do Estado. Os comics, uma vez que estavam “abaixo do radar crítico” (Versaci emprega esta expressão dizendo que empresta o jargão militar, mas não deve ignorar que foi Spiegelman quem primeiro a aplicou à banda desenhada), escapavam a essa necessidade de controlo directo da parte da Administração da altura, o que permitiu criações bem mais intervencionistas (o Capitão América de Kirby e Simon a socar Hitler na sua primeiríssima capa, a 1941) e, mais tarde, a outras que revelavam o lado humano e trágico do inimigo (Kurtzman em relação aos norte-coreanos, aos alemães, aos japoneses, etc.). Versaci centra-se muito nestas criações “positivas” e de facto politicamente avançadas e até mesmo arriscadas, mas acaba por preterir em demasia a outra banda desenhada de guerra que era produzida na mesma altura, muitas vezes atroz na sua representação (V. Chris Murray, “Popaganda: Superhero Comics and Propaganda”, in Comics Culture. Analytical and Theoretical Approaches to Comics, Magnussen e Christiansen, eds., que Versaci não cita, apesar da sua boa bibliografia; e, se me permitem, o meu “Palcos de (des)concerto de guerra” in Vértice no. 120). Aliás, chega a mostrar exemplos, mas sem se referir aos seus autores (desenhadores ou escritores): mesmo que ache esse trabalho reprovável do ponto de vista moral ou político, não se tratam de trabalhos anónimos... No cômputo geral, o capítulo faz emergir uma ideia muito forte, significativa e que mereceria uma maior publicidade junto aos teóricos da cultura que desconhecem as forças existentes em obras concretas da banda desenhada, como as de Kurtzman, mas há outros aspectos no texto de Versaci que tornam, mais uma vez, a discussão “incompleta”.
Finalmente, o último capítulo, cujos dois últimos parágrafos servem de coda a toda a sua argumentação, é dedicado às adaptações em banda desenhada dos ditos clássicos da literatura. Naturalmente que parte deste capítulo é dedicado às várias versões do modelo estreado com os Classic Illustrated da Elliot (em Portugal foram distribuídos alguns dos volumes da Marvel Illustrated, entre os quais o Moby Dick de Bill Sienkiewicz), sendo esse quase o parâmetro “de ouro” das adaptações dos “clássicos” em banda desenhada no eixo britânico-americano, mas Versaci torna também a discussão mais interessante – que não pode ser surpreendente, mas apenas pertinente e alertando a uma atitude ampla para com a banda desenhada – ao discutir as várias adaptações-pastiche de Robert Sikoryak, espalhadas nas mais diversas publicações. O Sandman de Gaiman e tal. e a League of Extraordinary Gentlemen de Moore e O’Neill faz parte também dos blocos deste estudo comparativista, assim como outras várias adaptações das peças de Shakespeare. Versaci sublinha como a visualidade da banda desenhada traz uma dimensão de mais-valia em relação ora à encenação teatral ora à linguagem escrita, não apontando para qualquer tipo de superioridade que pudesse existir na instituição de uma hierarquia entre artes incomparáveis (o que seria ridículo), mas antes sublinhando as valências da especificidade da arte que discute, como que demonstrando não ficar a dever nada em relação às estratégias acessíveis aos outros modos.
O volume tem ainda alguns problemas de revisão textual e de impressão (uma página, a 148, que parece não estar relacionada com nenhuma outra) mas nada que impeça a leitura que se vai consolidando a posteriori; simplesmente traz alguns “soluços” à mesma. A inclusão de imagens é feita com um critério sólido, que não só terá a ver com o mero embelezamento das páginas, mas constituindo-se como os exempla concretos do que Versaci e emprega enquanto “armas” da sua argumentação.