Que “o mundo é um palco” já o sabemos há muito e nem foi preciso passar pelo barroco nem pelo bardo isabelino, pois já Petrónio dizia o seguinte no Satyricon: “A trupe desempenha, sobre o palco, uma farsa:/este, o pai; esse, o filho; aquele, um homem rico.../Mal se diz o papel e se termina o riso,/a máscara lá vai... E reaparece a face.” (trad. de D. Mourão-Ferreira). É curioso unir estas exactas palavras ao modo como a palavra das máscaras gregas, persona, evoluiria para aquilo que mais prezamos no ser humano, a sua pessoa, isto é, a sua singularidade. Desta forma, esse tremendo chavão (por ser tão banal quanto profundo e verdadeiro) aponta para quão esbatidas são, nas nossas vidas, as fronteiras que julgamos existirem entre um desempenho teatral e o comportamento diário. Não é verdade que nos confrontamos com pessoas reais, por vezes tão reais que imperam sobre nós, no palco? Comecemos em Édipo, terminemos em Estragon. E não é verdade que empregamos máscaras, por vezes mínimas, subtis, para nos diferenciarmos em nós mesmos, para falarmos aqui e depois ali? Num movimento complexo e implicado, o Teatro do Absurdo aceita isso como princípio estruturante, condição de rompimento, característica a demolir. (Mais)
Uma das linhas de entendimento desse Teatro do Absurdo é a de que não existe qualquer significado – transcendente ou de outra têmpera – para a vida. Isto é, nada se encontra por detrás ou por sobre ela comandando-a ou sequer guiando-a. Não se trata aqui de construir uma ideia de dicotomia, uma irreparável e insuperável incompatibilidade. Trata-se de um cisma profundíssimo, uma escolha binária em absoluto: ou há causalidade ou não. É impossível desenvolver-se uma meia-causalidade, um meio-termo que apazigúe este arcano dilema. Tem cabido à filosofia compatibilizar um ou outro entendimento com outras características, como as do livre arbítrio, o propósito do indivíduo, o próprio esforço... Seria interessante partir-se do entendimento dessa arte e procurar os seus princípios na série A Pior Banda do Mundo, de José Carlos Fernandes (ou até alguns outros dos seus títulos), para uma espécie de análise comparada, que seguramente surgiriam frutos dignos de atenção. Não se seguirá aqui um sistema, mas apenas algumas pistas dessa aproximação.
Na verdade, é-me difícil chegar a uma conclusão, pois será necessária uma atenção bem mais aturada, algum grau de distância (temporal, entenda-se, de “digestão”) e sobretudo que se considerasse a obra enquanto acabada, mas gratamente vemos que o ritmo de José Carlos Fernandes jamais se estiolará em breve, bem pelo contrário, só podemos esperar que encontre cada vez mais os melhores canais para se espraiar conforme lhe convém. Isto quer dizer que não consigo atingir uma certeza se esta obra em particular se inclina totalmente para o lado do Absurdo ou se esporadicamente permite que se vislumbre uma qualquer união que faça emergir um propósito. Não obstante os esforços de personagens como Amílcar Knoss, Célio Procope, ou as que se unem sob “A Miragem da Imortalidade”, a verdade é que todos os sinais abandonados no mundo, como reza o narrador no seu monocórdico e mofento tom de abjurado, abandonando essas criaturas no cruel universo onde as encerra, não serão mais que “modestíssimas tentativas de libertação da inexorável lei do olvido”. Todavia, é precisamente essas ridículas acções de se tentarem salvar da apagada e parca existência que levam que as torna mais memoráveis e dignas de serem arquivadas, enquanto “casos únicos”.
As ficções tendem a querer demonstrar, mesmo que seja para além da compreensão das personagens, uma linha vermelha por detrás dos eventos. Exemplos aleatórios como os filmes de M. Night Shyamalan ou os romances de Paul Auster poderão dar uma ideia das várias estratégias que levam a essa união longínqua do que, de perto, parece desassociado. Não se enganem, porém, pensado que tal apenas se verifica aí, pois até mesmos escritores contemporâneos portugueses, de José Saramago a David Soares, de Gonçalo M. Tavares a Dulce Maria Cardoso, de modos diferentes e para propósitos diferentes, demonstram nas suas ficções a emergência de universos plenos de significados entrelaçados, de uma última causalidade regendo as suas diegeses. No território da banda desenhada, é apanágio dos escritores dos grandes épicos ou pelos menos das grandes narrativas a existência desse sentido último. Escritores como Alan Moore, por exemplo, vêem as coisas de um modo tal, que encontram em todas as mais pequenas existências no universo as marcas que as alinham a um plano geral, uma imagem única. Talvez seja por isso que as ficções de Moore nos encham de uma alegria final incomensurável, uma espécie de “sublime de bolso” quando nos apercebemos do puzzle montado, mas raramente nos consiga mover noutros domínios das nossas emoções (apesar de o fazer, com A Small Killing, por exemplo e, muito brevemente, em A Killing Joke – mas apercebem-se imediatamente pelos títulos que há sempre um preço).
Por outro lado, A Pior Banda do Mundo não parece querer mostrar-nos a cidade mapeável com os seus mais-que-idiossincráticos concidadãos, mas apenas os seus fragmentos – e isto não é uma redundância, mas uma acção contínua – fragmentáveis. Em bom rigor, e no prosseguimento da imagem teatral do início, A Pior Banda do Mundo presenteia-nos com o que parecem ser brevíssimos sketches, uma pequena anedota, que dificilmente ganham contornos daquilo que constitui sequer um episódio, uma cena, e muito menos uma trama. No entanto, é pela sua sugestão, poética, que ganham não apenas a intenção mas o poder de se tornarem uma crise, uma crise que nós resolveremos por nós mesmos, na solidão da nossa imaginação completando essa imagem ofertada. Repare-se como quase todas as estórias, se assim as podemos chamar, terminam no momento em que finalmente os actores começam a unir todos os pontos que nos foram apresentados pelo narrador e a sucessão de informadores, mas é nesse preciso momento que se suspendem. Para dar uma ideia dessa sugestão, repare-se em dois exemplos: “A Reescrita da História” e “O Imperador da América”.
Daí que se verifique uma aparentemente imparável e crescente disseminação de referências (cuja ancoragem no real, e numa suposta vertigem de erudição, apenas serve melhor o propósito aquando é estilhaçada no seu emprego no ridículo), de ministérios, de departamentos, delegações, profissões e diligências, coleccionadores e taxionomistas, arquivistas e rastreadores e cartógrafos. A cada nova peça, ergue-se uma espécie de imenso gabinete à la século XVII, em que a colecção de objectos (e pessoas, etc.) não parece seguir qualquer princípio discernível, a não ser aquele que o autor perseguiu aquando da sua junção e exposição, e cujos significados livres e abertos nós, leitores, nos entregamos subsequentemente, conseguindo melhor ou pior atingir as possíveis leituras. Para que não se torne uma “enciclopédia do obsoleto”. É por isso que se torna ridículo, deste lado do mundo, atentarmos sequer a uma verificação de fontes possíveis ou plausíveis para a obra de José Carlos Fernandes, já que elas apenas existem como factores de subsequente disrupção do mundo real. São por demais as instâncias onde se torna legível a sua instrução no nosso mundo, sendo talvez os dois exemplos mais visíveis a comparação com um certo Portugal burocrático e a insistência no sonho de Hipólito Heisenberg (em que “a nação mais poderosa do mundo era governada por um idiota” – aliás, muitas vezes é como se fosse esta personagem aquela em permite o mais directo salto, quântico?, para o nosso mundo). Essa ancoragem, da libertação da causalidade ou de uma narrativa bem encurralada numa estruturação clássica notar-se-á pela personagem titular deste volume, o arquivista de serviço, David Linx, reflexo aliás pouco distorcido do realizador norte-americano que mais tem desistido (pois não partiu logo do interior do território experimental) da narrativa dita clássica, mas penetrar nos insondáveis caminhos do ocasional activo. Peça por peça, e agradecendo que substituam as notas por notas horríssonas da Banda, José Carlos Fernandes vai-nos ofertando cada nova história como se fosse a promessa de um final cabal e cheio de sentido, porém que cada vez mais nos afasta de um suposto centro, que nos fizesse sentir seguros. Quer narrativa quer existencialmente.
2 de janeiro de 2008
Os Arquivos do Prodigioso e do Paranormal. José Carlos Fernandes (Devir)
Nota: agradecimentos à Devir, pela oferta do livro.
Publicada por Pedro Moura à(s) 10:37 da tarde
Etiquetas: Portugal
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