25 de janeiro de 2008

Sorcières. Daisuké Igarashi (Sakka)

Podemos entender o modo como os homens e mulheres auscultam e moldam o mundo de dois modos. Utilizemos a escultura como metáfora de partida. Desde Miguel Ângelo que alguns escultores falam de “libertar” uma forma da pedra, a génese e semente desencadeadas pelo encontro dessa pedra e do escultor. A posição diametralmente contrária é entender que essas formas novas, aliadas apenas à interpretação e leitura humanas, próprias dos seus poderes e características, são somente “forçadas” na pedra, ela é torturada para que corresponda a essa visão que lhe é externa, já que a pedra tinha a sua própria forma, aquela que lhe foi sendo moldada pela natureza, em conjunto com a natureza de que ela mesmo faz parte (esta imagem de tortura foi dada pela personagem que desempenha Satanás em The Mystery Play, de Grant Morrison e Jon J. Muth). Uma solução de compromisso, ou que tenta dar a ideia de um encontro equilibrado existindo entre o escultor e a pedra são todas aquelas acções que permeiam as outras atitudes e, em graus diferentes, encontrar-se-á o readymade, a land art, a instalação com objectos naturais, etc. ou, pelo menos no campo ficcional, e com um humor que mima as tentativas do homem em dominar em absoluto o mundo natural, acrescentem-se as engenharias novas apresentadas por Yokoyama. Em todos os casos, porém, acredita-se que existe uma correspondência possível entre a “linguagem da natureza” (as suas formas, as suas direcções, os seus plasmares com as formas humanas) e a “linguagem humana”.
A crença na magia, mormente a “simpática”, é fundamentada nessa poderosa ideia de correspondências. Sem ela, não há laços para que a magia se transporte, se efective, se formalize, funcione. Baudelaire, como é sabido: “L’homme y passe à travers des forêts de symboles/Qui l’observent avec des regards familiers”. A familiaridade é o atravessar do que deveria manter-se estranho, distante. É claro que estas circunstâncias e este modo de entender o mundo nos lançam de novo para a causalidade destas ficções, que não nos deixam surpreendidos em demasia, já que, de facto, há um demiurgo orientando e delimitando todos os elementos que se nos apresentam. O autor. Mas se Daisuké Igarashi havia-nos, com os dois volumes de Hanashippanashi, ofertado com pequeníssimas rábulas estritamente fantásticas, em cujos solos pairava sempre, no fim, as fímbrias da dúvida para com os troços de magia que pareciam surgir, em Sorcières já calcorreamos, de cabeça erguida e com os olhos bem abertos, no território do maravilhoso, no qual o milagre ocorre do modo mais claro possível.
Estes dois volumes reúnem 6 contos, cada um deles coligindo um conto maior, um “médio” e outro de um punhado de páginas. Todos eles têm em comum o facto do protagonista ser uma “feiticeira”, ou seja, uma personagem feminina, as mais das vezes adolescentes ou jovens mulheres, que tem algum grau de controlo sobre forças supra-naturais (seria interessante desvelar esse caminho de associar as mulheres mais rapidamente às esferas do mistério, das fadas às bruxas, que ainda hoje ressoam nas sociedades, por mais “racionais” que se prezem). Estas histórias decorrem da Turquia à bacia do Amazonas às ilhotas em torno do Japão, num espectro temporal que ronda o tempo presente mas dele se pode desviar em qualquer direcção. E colocam sempre as protagonistas num ponto médio, seja esse entre a dúvida, a incapacidade e a crença e abraçar dos poderes (pela mesma), seja entre a desconfiança, o ódio e a aceitação, e apoio (pelos outros). Algumas das histórias mergulham mais nos elos possíveis entre a voz humana e a mais profunda natureza, ao passo que outras alcançam antes os diálogos que são possíveis de estabelecer com os mortos, e o delir de todas as fronteiras que a vigília e a razão impõem, através da magia.
É curioso notar como a mão de Daisuké Igarashi não altera os seus movimentos de um título para o outro (de Hanashippanashi a Sorcières), mantendo-se os mesmos esforços e dedicação ao pormenor, às carregadas sombras, ao equilíbrio entre a representação realista do mundo e a inscrição de criaturas maravilhosas e tenebrosas com um mesmo peso, aos inusitados ângulos para dar melhor a ver os cantos obscuros de onde fluem essas energias abscônditas. Por outra palavra, se bem que abusada, atravessa as histórias com um mesmo estilo. Todavia, o tom e atitude das histórias são diferentes, estas “feiticeiras” permitindo uma maior concentração numa personalidade precisa que molda o mundo que a rodeia e, assim, a nossa (leitores) percepção desse mesmo mundo, e onde o maravilhoso ganha um peso maior, ainda que tão poético como a fantasia de Hanashippanashi. Mais uma vez, como sempre, verificamos que não obstante um mesmo estilo (“forma”), ao ser empregue em tons (“conteúdos”) diferentes, acaba por despertar todo um diverso modo.

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