29 de junho de 2008

Wordless Books, the original graphic novels. David Beronä (Abrams)

O objectivo geral de David Beronä com este volume é fazer um historial de um conjunto relativamente coeso de narrativas em imagem, sem texto, todos produzidos na primeira metade do século XX, e apontá-las como um elo indispensável no desenvolvimento do que ele chama, em inglês, de “modern graphic storytelling” (aproveitando as palavras de Will Eisner a propósito de Lynd Ward). Apesar de existir como que uma tradição, muito antiga, que faz pensar nos Volksbuch – “livros populares”, com ilustrações em xilogravura, que surgiram com o advento da imprensa móvel no fim da Idade Média, e no qual se conta o Bilder des Todes de Hans Holbein -, Beronä cinge-se a um intervalo menor entre 1918 e 1951, mas pelo contrário não se cinge somente aos ciclos em xilogravura como qualquer outro livro com qualquer outra técnica, desde que cumpra aproximadamente um mesmo programa narrativo.
O que vemos, porém, não é um trabalho de historiador, em que a argumentação nasça dos factos ou das pontes que associem indelevelmente as obras arroladas. Este é um livro que nasce de uma vontade arquivística e de bibliotecografia, de breve taxinomia e descrição, mas que acaba por não conseguir reviver o espírito contínuo das obras entre si, ou destas com o corpo maior que conhecemos por banda desenhada. Os capítulos que se vêem dedicados a cada um dos livros arrolados, dizíamos, acabam por apresentar textos que não são mais do que pequenas sinopses um tanto ou quanto fastidiosas, em que a valoração é mais pessoal do que argumentada (o único caso em que isso se altera, como veremos, é Lynd Ward).
Os trabalhos reunidos neste livro têm qualidades diferentes, muitas vezes incomparáveis. Entendo perfeitamente que existem elementos superficiais em comum entre alguma da obra de Frans Masereel, o He Done Her Wrong de Gross e Eve de Myron Waldman – precisamente o elemento que se encontra no título: “livros sem palavras”. Mas para além dessa característica, tudo o resto se desagrega e puxa em direcções diferentes, as quais não se podem reaproximar. Masereel é um autor de uma profunda e forte vontade política, com um tom moral igualmente superior a qualquer denominação ou dogma. Gross apresenta uma variação em papel do vaudeville e das aventuras a que o cinema havia habituado o seu público. Waldman simplesmente cria uma noveleta de amor singela. Beronä acaba por misturar a ideia de justiça, o encontro do que é equilibrado para cada um, o respeito pela individualidade, e o direito, medida idêntica aplicada a todos, como se todos tivessem a mesma superfície a medir (mas veremos que não é verdade, dada a atenção desmesurada, em todos os sentidos, que dá a Ward).
Não há dúvidas de que Beronä procurou uma especialização, e apesar da obra de Masereel, Otto Nückel, Lynd Ward e Giacomo Patri ser acessível nos nossos dias, e há livros aqui que são uma descoberta retrospectiva: o Childhood, da checa Helena Bochořáková-Dittrichová (publicado em Londres em 1931, e ainda que apenas um grau de variação dos livros em xilogravura de mestres como Masereel, uma perspectiva feminina contudente), My War, do húngaro István Szegedi Szüts (de que apresentamos aqui uma imagem: um relato da vida militar, num tom anti-militar, dado através destas pinceladas mínimas reminiscentes da caligrafia chinesa, e igualmente de Londres e de 1931), e ainda o Alay-Oop (1939), de William Gropper, no caminho do qual já Seth nos havia colocado, e que se presume seja alvo de uma reedição para breve. Mas isto não suprime os problemas de argumentação mais profundos.
Uma nota no início do livro explica que deixou alguns títulos de fora, por se tratarem de biografias ou de livros cujo propósito era o proselitismo religioso, por exemplo. Mesmo que aceitemos que a razão – que Beronä não dá – de que esses livros teriam um propósito mais limitado do que aqueles que são lidos – e só se o poderia afirmar depois de os lermos e a dúvida permanece (imagine-se numa discussão em torno da banda desenhada tout court, dispensar o Buddha de Tezuka ou o Che de Osterheld e os Breccia), o autor ainda diz dispensar “anomalias”. Esta palavra é assim apresentada, seguindo-se logo uma lista de cinco títulos, entre os quais o recentemente reeditado Scottsboro, Alabama: A Story in Linoleum Cuts, de Lin Shi Khan e Tony Perez, associado ao movimento comunista norte-americano dos anos 30, e Mitsou, do então jovem Balthus. Todavia, esta nota não me parece suficiente (já que não há qualquer argumento utilizado) para explicar a razão da sua ausência num livro que se propõem explicar a emergência deste modo de criar livros de narrativas desenhadas sem texto, e muito menos associá-las ao contínuo que existe – um contínuo cheio de flutuações e interveniências, sem dúvida, mas ainda assim um contínuo – entre os primeiros livros de Töpffer e o que hoje se edita. Penso que uma noção demasiado contemporânea da “graphic novel” preside o ponto de partida de Beronä e isso torna-o “aspectualmente cego” a uma leitura mais ampla, inclusive historicamente.
Em nenhum local se fala da obra de Palle Nielsen, Orpheu og Eurydike (de 1955), ou de um dos livros dos romances-colagem de Max Ernst, Une Semaine de Bonté (de 1934, o facto de ser colagem não deverá ser impedimento, pelo que indicámos da inclusão de outras técnicas, e o aparecimento esparso de palavras também não é critério em Beronä), da obra de Peter Newell, e de outros que eventualmente se pudessem constituir como exemplos de um mesmo campo que David Beronä parece indicar existir, mas sem jamais descrevê-lo, circunscrevê-lo e torná-lo pertinente. Mais, para depois integrar esse corpus no tal contínuo maior de que o autor diz fazerem parte estes livros. Em suma, pouca argumentação central que torne claro o espectro que o autor desejaria, pelo que se entende até do título completo do livro, cumprir.
Um outro ponto de contenção é a defesa que faz de Lynd Ward em detrimento de Frans Masereel. Num ou noutro momento do seu texto, diz que onde Masereel era mais “rude”, Ward alcançara uma maior desenvoltura do traço. E analisa a profundidade do seu trabalho de um modo muito mais marcado do que o fizera em relação a Masereel. Digo que este é um ponto de contenção pois vejo exactamente o contrário. Masereel integrava-se na tal tradição que bebia de fontes com séculos de duração, com grandes tradições de esquerda, e de uma profunda e culta raiz europeia, em que não obstante se transcreverem em imagens os movimentos das personagens como imbuídos numa ideologia, haveria sempre espaço para o livre arbítrio dessas mesmas personagens, face ao mundo que desafiavam. No caso de Ward, o proverbial peso do “destino” é por demais visível, e por vezes de uma maneira ditatorial. Ward, em algumas das suas obras raia mesmo o kitsch.
Kitsch aqui deve ser entendido como uma ultrapassagem da forma em relação à sua função, ou de uma excessiva presença do seu aspecto material em relação ao teor daquilo que deseja transmitir. Já aqui havia falado de um livro de Ward, God’s Man, sobre o qual havia alertado à excessiva visibilidade desse teor material. Uma das formas de assinalar o kitsch, ou o camp, como os americanos o rebaptizaram e Sontag o bem estudou, é o seu exagerado maneirismo, o exacerbamento de uma característica qualquer, que existiria num estado natural mais sereno no seu território original. Ward abusa da figuração daquelas personagens que representam funções-tipo fáceis de ler: o “capitalista”, o “artista sensível”, o “louco”... E as figuras as mais das vezes são entregues numa figuração cuja expressividade ora roça o histrionismo mais espalhafatoso e melodramático possível (e no qual incorrem quase todos os desenhadores contemporâneos norte-americanos que trabalham no mainstream; independentemente dos valores outros que conseguem alcançar) ora cai numa inexpressividade total que se quer fazer passar por “dignidade”, “superioridade” ou algo do género, tal qual a arte kitsch do panfletário Realismo Soviético. Além do mais, a entrega a um trabalho do detalhado não tem a ver com ultrapassar um certo grau de “rudeza” (palavras de Beronä) que existiria em Masereel, mas sim com esse fascínio pelo virtuosismo, a capacidade superna do domínio de um instrumento, o rodriguinho, o maneirismo já desprovido de sentido, o decorativo. Se Ward é um elemento de profunda influência na banda desenhada vindoura, sobretudo a de acção e aventura, não tenho dúvidas, mas isso não o iliba – nem aos que o seguiram – desses desvios e desequilíbrios de peso. Masereel, pelo contrário, é um clássico, em todas as acepções da palavra tal qual listadas por Italo Calvino.
Wordless Books é um livro muito belo (pelas imagens que inclui, e o seu arranjo) e merece ser uma referência numa biblioteca de história da banda desenhada e territórios contíguos. No entanto, todas as suas estratégias – papel de uma espessura considerável, inclusão de muitas imagens, apresentação dos textos em curtas entradas descritivas de cada livro – tornam-no de facto mais num “livro de referência” do que num volume de história, de considerações inovadoras e iluminadoras, etc. E até mesmo em termos de liberdade de pensamento, de associações livres para criar um saber próprio, fica muito aquém do que parecia prometer. Nesse sentido, o livrinho de Seth foi muito mais... ambicioso não é a palavra, porque isso revelaria de um propósito agendando a priori, e é mais de uma feliz descoberta. Seja como for, é de uma amplitude maior e de uma profundidade de pensamento mais vincada. Mesmo em relação a “livros sem palavras”, o mais importante não é dizer “muito” ou “pouco”, mas “dizer alguma coisa”.
Nota: agradecimentos a Domingos Isabelinho, por ter dado o mote a este post, e a uma palavra emprestada.

28 de junho de 2008

Pascal est enfoncé. Pascal Matthey (L’Employé du Moi)

Procurar os sinais neste livro que o tornem passível de ser tratado de “autobiografia” não é fácil. Mas eles existem. Não é somente a coincidência do nome entre o autor e a personagem principal, nem a presença do nome do autor no interior do texto, na capa do livro escolar da personagem que vemos de imediato na primeira prancha (o que leva à mescla entre personagem principal e autor, meio-caminho andando para cumprir o “pacto autobiográfico” explicado por P. Lejeune): trata-se antes da verificação de que a atenção para com essa mesma personagem não se cinge somente aos acontecimentos em seu torno, ou por ele protagonizados, mas a possibilidade de lhe entrar na alma, perscrutando-lhe a moral, o humor, os afectos. Nada disto é conseguido através do texto, pois não existem praticamente falas ou legendas no texto, e quando umas ou outras se verificam, são tão objectificadas, são tão circunscritas ao interior da acção que não chegam a tornar-se discurso vivo (como na cena do jogo, das duas pranchas seguidas aqui mostradas).
Pascal Matthey publicou um livro anterior a este, Le verre de lait, no qual explorava já a matéria da memória a que Pascal est enfoncé dá continuidade. e é cultor com um punhado de amigos de um fanzine mensal intitulado Soap (que tem um blog) e de uma outra série, Spouk. Através desses outros trabalhos, podemos verificar que Matthey explora estilos diferentes, traços diferentes e queremos acreditar que cada um deles corresponde a vontades e direcções diferentes do seu trabalho. Pascal est enfoncé pode-se resumir, num repente, como “autobiografia”, mas tem particularidades específicas que merecem alguma atenção. A maioria das obras desta tendência contemporânea – e pode-se exemplificar com L’Ascencion du Haut Mal, de David B., Persepolis, de Satrapi, o contínuo da obra de Baudoin, e mesmo (menos auto, mas não menos memória) Le Photographe e La Guerre d’Alan – coloca quase sempre o narrador a assegurar de que se trata de uma memória, isto é, algo que é resgatado do passado à luz do presente. Através das estratégias da voz do narrador, de analepses, de interrupções do fluxo narrativo, conseguimos sempre delinear a linha do passado rememorado e contado e a do presente enquadrante. No caso do livro de Matthey, o mesmo não ocorre. Somos colocados de imediato, e de lá não saímos, num tempo coeso e fechado em torno do quotidiano do Pascal-personagem, uma criança com os seus momentos de aprendizagem escolar, de lazer, de férias com a família, de episódios caseiros, de fantasia. É através de um exercício de esforço e de procura pelas pistas extratextuais que conseguiremos fazer reenquadrar todos esses eventos no “passado” do próprio autor.
Essa opção tem uma consequência imediata, que é corroborada pelo traço de Pascal Matthey (neste trabalho em particular): é a absoluta nitidez. Não há espaço para a dúvida ou a abertura. Isto não é uma fraqueza, ou uma limitação: é antes uma especificidade do livro, sua característica (sem juízo de valor) e sua força (aqui, sim, valorativo).
Em muitos dos passos, há uma escolha pela representação das personagens em corpo completo, ou cortados num plano quase geral, que nos poderá recordar das estratégias vetustas da “teatralização” da banda desenhada tal como ocorria em autores como Outcault (sobretudo em Buster Brown), Winsor McCay, Charles Forbell ou Herbert Crowley: representam-se sempre as personagens a uma mesma distância, de modo a que entendamos as suas acções o mais claramente possível e integradas na totalidade do seu espaço de representação. Por vezes, todavia, existem estratégias contrárias, de uma grande proximidade, mas ao invés de empregar essa aproximação para desvelar um qualquer tipo de virtuosismo em construir pormenores ou cenários carregados, Matthey prefere antes uma estruturação icónica, como que subtraindo tudo aquilo que menos interessa para se centrar no essencial do que há a mostrar/dizer. Nesse sentido, está muito próximo do trabalho da memória, tal qual Henri Bergson o desenhou, não como algo a mais, mas algo a menos: trata-se de uma selecção de um número maior de elementos. Veja-se esta página em que se representa uma cena em que se joga Pictionary (há quase que um movimento de plasmação entre as regras desse jogo e as regras do livro). Há aqui um uso absolutamente icónico (ícones diagramáticos, no sentido de Peirce) das imagens, como que recortado de um eventualmente maior espaço de representação. É uma outra forma, quiçá, do que se deseja chamar “minimalismo” na banda desenhada, mas prefiro vê-lo tão-somente como uma estratégia variada e inteligente de coordenar a nossa leitura aos significados máximos (precisamente através de signos mínimos) do que está a decorrer nesse momento. E Matthey parece optar por encaminhar o leitor de um modo directo, sem desvios ou interpretações dúbias e secundárias.
Tal qual os movimentos da memória, verificam-se em Pascal est enfoncé vários elementos que os mimam: não há propriamente uma trama central que una todas as acções do livro, mas antes uma atomização de cada recordação, não as transformando em episódios propriamente ditos (como sucede em La Guerre d’Alan), mas permitindo-os distinguir ao longo do contínuo (todas as pranchas apresentam a regularidade das 2 x 3 vinhetas); existem passos que dão conta das pequenas ignorâncias e dúvidas do pequeno Pascal, ou de uma palavra, ou de um conceito, ou de uma surpresa, mas que são imediatamente superadas pela ajuda dos seus ou do dicionário ou da sua aprendizagem no mundo (como quando aprende da televisão e da mãe o que aconteceu a Kennedy em Dallas) e, mais tarde, o empregará para ganhar no jogo de Pictionary; repetem-se momentos do quotidiano, como a oração nocturna, o intervalo do corpo e da imaginação antes de adormecer, os jogos e brincadeiras, os desenhos que faz, como modo de pontuar e criar a ideia dessa espiral de aprendizagem, de desenvolvimento, de rememoração e, enfim, da vida em geral.
Algumas dessas repetições tornam certas sequências dotadas de um misterioso ritmo (Le verre de lait é todo ele um exercício desta estratégia): mostra-se uma curta sequência, que depois de repete com uma ligeira diferenciação, variação, retomada de novo com um novo grau de informação e de novo e de novo, a cada novo tomar sempre com um passo a mais ou um passo a menos, o que nos permite a nós mesmos, leitores, reler as acções contrárias como pertencendo a uma sequência maior, mais longa e de certo modo mais completa, ainda que vejamos cada uma das suas instâncias de um modo fragmentado.
Ainda uma outra característica através da qual se pode integrar Matthey na tendência da autobiografia contemporânea em banda desenhada, com um grau de diferença, é o facto de que incluiu na sua história outras bandas desenhadas. Tal como David B., Baudoin, Fabrice Neaud e outros incluem nos seus trabalhos outras bandas desenhadas, de modo a fazer uma “recuperação da memória da banda desenhada” no seio do seu próprio trabalho, como quem instaura uma tradição para depois se integrar nela, também Pascal Matthey reserva páginas do livro para que faça emergir páginas de outros livros, nomeadamente das aventuras de Boule et Bill, personagens da série infantil de Jean Roba. O grau de diferença indicado acima diz respeito ao facto de que não se trata propriamente de uma instauração da tradição na qual Matthey se deseja inscrever e diz respeito antes, em concordância com o movimento e tom geral da memória tal qual surge em Pascal est enfoncé, ao(s) livro(s) que lia enquanto criança. Ou seja, uma vez que o espaço de rememoração presente-passado não existe neste livro, não existe esse filtro e peso em presença nesta memória, mas sim a representação desses eventos como se os recontasse sem os reviver, não faria sentido repesar as bandas desenhadas a integrar de um ponto de vista político e estético do seu trabalho actual, mas antes um honesto demonstrar das leituras de infância.
Esse peso do actual sobre o passado está ausente, a ductilidade e dubiedade das memórias também, e o propósito de ofertar uma sequência clara e nítida, sem quaisquer sombras de culpa ou escusas e desvios, é cumprido.
Nota: agradecimentos a Pascal Mathey, pela oferta do seu livro.

26 de junho de 2008

La Guerre d’Alan. Emmanuel Guibert (L’Association)

Após a longa espera pelo terceiro volume de La Guerre d’Alan, é com uma certa nota de angústia que lemos o final destas memórias. Como saberão os leitores dos dois anteriores volumes (de 2000 e 2002), Emmanuel Guibert explora aqui algo que tentaria novamente com Le Photographe (3 volumes, entre 2004 e 2006), trabalho em colaboração com o fotógrafo Didier Lefèvre (e ainda Lemercier): procurar beber das memórias de uma outra pessoa para depois as estruturar ele mesmo, como se as tornasse suas, transformando essa matéria – que julgaríamos inalienável – na sua própria expressão. Porém, La Guerre d’Alan vai ligeiramente mais longe, ou mais profundamente, uma vez que é o único trabalho totalmente a solo de Guibert (se excluirmos o seu primeiríssimo livro, Brune, entretanto renegado). (Mais) 

21 de junho de 2008

Sky Masters of the Sky Force. Jack Kirby e Wally Wood, et al. (Glénat España)

Este é o primeiro volume de três, que visa apresentar-se como a primeira edição totalmente integral, em estreia mundial, desta famosa/desconhecida série de Jack Kirby e seus colaboradores. Uma vez que incluirá as páginas de Domingo a cores (o que é, de facto, inédito), torna-se, portanto, uma substancial melhoria em relação à edição mais completa anterior, da Pure Imagination (2000). É uma excelente edição, que ainda conta com introduções variadas, material extra que tanto revela do contexto da sua época, como dos processos de trabalho, curiosidades da sua publicidade, ou da vida e arte de Kirby e Wood, etc. (por comparação, ainda torna mais interessante e forte o trabalho de Manuel Caldas, fora de uma instituição editorial convencional).
O título deve ser lido e traduzido como “Sky Masters da Força Espacial”, já que indica o nome do protagonista, a alcunha pela qual é conhecido nessa agência, mas cuja ressonância mitógrafa é claríssima (tal como outras personagens, jogando com o significado dos nomes, quer por antonomásia ou metonímia: Flash Gordon, Dickie Dare, Dan Dare, Steve Canyon, Modesty Blaise, Odd Bodkins, Johnny Galaxy, Jonny Quest). Em Portugal era conhecida somente como “Sky Masters”, aquando da sua publicação - grande parte dela - na colecção Espaço (do Mundo de Aventuras, publicado pela Agência Portuguesa de Revistas): começando no número 6, de 1961, foi publicado o primeiro “episódio”, completo, intitulado em português “Os fantasmas do éter”. Seguir-se-iam, nesta mesma colecção, no 13º “Traição no Espaço”, 18º “Planos de Mayday”, 23º “Perdidos na selva”, 27º “Bólides humanos”, e no 32º “A estação do espaço”. (mais tarde seriam reeditadas na nova edição da revista, com capas da série televisiva Espaço 1999 [poderão confirmar estes dados na excelente base de dados da BD Portugal, apesar de eu ter acesso às próprias publicações em si]). Tendo estas revistas o formato do “gibi” brasileiro, muitas das vinhetas foram reenquadradas, cortadas, manipuladas, enfim, mutiladas de uma forma ou outra. O formato das tiras é totalmente perdido para que haja uma ilusão de haver uma construção em página. Não servem estes comentários como moral retroactiva sobre a ética de trabalho desse tempo, seguramente pautada por princípios ligeiramente diferentes daqueles que nos movem contemporaneamente, mas se se dão essas alterações empobrecedoras, por outro lado foi um modo de divulgação. Tome-se com sal. Os nomes dos autores não são destacados em parte alguma, mas como as assinaturas são visíveis, estamos em crer que seria possível concluir-se a quem pertenceria o trabalho. Não deixam esses objectos da colecção Espaço de serem passíveis de curiosidade, nostalgia, coleccionismo, seguramente, mas esta edição espanhola vem permitir uma glória e estado prístino à série inédito (pois nem a primeira edição no jornal permitira observar certos detalhes das linhas - no entanto, as imagens que aqui coloco são de digitalizações dos originais, encontrados na internet onde são vendidos a coleccionadores abastados).
Trabalhando no interior de todas as convenções da sua época em termos de ritmo da história, de distribuição de caracteres, de tipos de resolução, Kirby avança com algumas estratégias visuais inéditas, como a sua predilecção pelo escorço (aqui, ainda não totalmente liberta como o estaria na Marvel dos anos 60, na era Stan Lee), uma vincada representação das tipologias dos corpos, a curiosa “falta de gravidade” e orientação dos objectos quando no espaço, imitando as condições reais dessa presença espacial, e, para mais, uma quantidade esparsa mas judiciosamente empregue de vinhetas “silenciosas” que marcam momentos de uma intensidade particular, de uma indizível emoção, tornando a ideia de “space opera” mais premente, sem dúvida, mas com razão... O trabalho de Wood é analisado na introdução e a inclusão de vinhetas mostrando as várias fases do seu trabalho de tintas e sombras é muito eloquente e esclarecedor.
Esclarecedores são também todos os textos que se incluem e se prometem incluir nesta edição. A conturbada história por detrás das condições de produção de Sky Masters será contada no segundo volume, mas aquilo que lemos já no livro de Evanier é o suficiente para nos apercebermos que nem todos os dados são definitivos – existem detalhes contraditórios entre as duas versões – mas que foi peculiarmente doloroso para Kirby. O que, apesar de tangencial em termos de análise textual, aumenta a apreciação impressionista da qualidade deste trabalho, arrancado nessas condições.
Ainda de acordo com uma das introduções, que apresenta um contexto histórico, político e cultural, de Álvaro Pons, Sky Masters of the Space Force não pode ser somente visto como mais um exemplo ou variação da ficção científica (que beberia imediatamente do Flash Gordon de Raymond), mas antes uma torção original desse género, “que abandona a fantasia para entrar nos caminhos da tecnologia e da política-ficção, numa pura aventura ancorada na realidade”. A quantidade e amplitude de informação real e disponível utilizada para a execução das histórias e imagens explicitam de uma forma cabal esse ancoramento, e a ausência do maravilhoso garantido por extra-terrestres, invasores espaciais, etc. A tensão criada pelos episódios prende-se com aspectos que, não sendo reais (ainda, alguns deles, na altura), eram pelo menos previsíveis, expectáveis e credíveis na visão científica da sua época.
Apesar da série ter sido publicada seguidamente, sem quaisquer interrupções ou mudanças, foram identificados vários “episódios”, nesta edição baptizados pelos nomes conhecidos. Além da óbvia centralização e segregação desses episódios uns dos outros, é importante notar como cada um deles parece beber de um tom ou estilo diverso, ainda que sempre subordinado ao tema geral da conquista espacial e dos sacrifícios necessários: o terror em “First Man in Space”, a intriga político-religiosa em “Sabotage”, a comédia/drama amoroso em “Mayday Shannon”, um cruzamento muito estranho entre o fantástico e o policial com “Alfie”... No que diz respeito a Kirby, nada de surpreendente, dado todo o trabalho que ele já vinha desenvolvendo, quer nas variadíssimas tiras de jornal, quer nos comics de acção ou românticos. Mas o mesmo também poderia ser dito de Wood, em termos da dimensão visual, que já arrecadara grande fama nos seus trabalho para a EC Comics.
Nesse sentido, Sky Masters of the Space Force abriu caminho ao trabalho de muitos outros autores e séries que se seguiriam, de uma ficção científica informada de facto com os patamares da ciência do seu tempo, e cujo maior representante actual (na banda desenhada) é, penso, Warren Ellis, especialmente com Orbiter e Ministry of Space. Há uma cena num dos episódios de The Authority, de Ellis et al., em que a personagem Engineer voa até à Lua pela primeira vez. Enquanto se aproxima, diz: “Este é um lugar estranho que vi na televisão, onde parámos de vir antes de começar a ler. Porque é que parámos de vir a uma coisa tão bonita como esta?” essa espécie de maravilha, de nota romântica de esperança, não se coaduna com o nosso tempo, por toda uma série de razões, as primeiras das quais económicas. Mas é esse tipo de atitude de olhos esgazeados e boca escancarada num sorriso de surpresa que perpassa por toda a série de Kirby e Wood, criada no preciso momento em que a “corrida ao espaço” começava a ganhar alento nos Estados Unidos. Toda a construção e informação científica está lá, mas é como se pertencesse a um cenário cuja função fosse destacar a atitude positiva dos homens envolvidos nessas missões. Kennedy disse que a corrida à Lua deveria ser feita não porque era fácil, mas porque era difícil. Kirby, apesar dos factores da ficção, não torna as dificuldades menores, mas mostra a facilidade com que mostrava esse fascínio.

20 de junho de 2008

Marvel Fairy Tales, Cebulski et al. [Ricardo Tércio, Nuno Plati, João Lemos] (Marvel)

Uma das palavras mais em moda em relação aos super-heróis é “revisionismo”, e pode-se estabelecer toda uma história desse capítulo no interior da tradição dos super-heróis (não assusta de modo algum empregar esta palavra, “tradição”, se tomarmos em conta que desde o aparecimento do Super-Homem em 1938 que se seguiriam centenas, senão milhares, de variações ou desvios desse pressuposto). Já havíamos falado disto a propósito de Ultra, tendo apontado a leitura de How to read superheroe comics and why, de G. Klock, como ferramente fundamental para essa mesma história particular. Porém, como havíamos também apontado, julgamos que é parte intrínseca da estruturação e natureza deste género o revisionismo, tendo ele começado na sua própria origem, com, como os exemplos mais óbvios e claros, a rápida evolução interna às “personalidades” do Super-homem e do Batman. É como um aguilhão circunrevoluto a todo o género (supondo que uma teoria dos géneros permita todas as ambivalências e cruzamentos possíveis) que o obriga a retorcer-se e relançar todos os seus elementos internos, por todas as direcções e em todas as direcções, tentando exaurir todas as combinações.
A colecção Marvel Fairy Tales é uma nova combinação, fazendo convergir as mais famosas personagens e histórias (repetidamente míticas, como as “histórias de origem”) da Marvel (até agora, sucessivamente, os X-Men, o Homem-Aranha e os Vngadores) com “contos de fada”, quer os das tradições europeias – Capuchinho Vermelho, Gata Borralheira – quer os de outras paragens – o japonês Momotaro, o africano Anansi – ou com clássicos de obras literárias infantis – o Pinóquio de Collodi, o Peter Pan de Barrie, a Alice de Carroll... Esta é uma colecção de tom divertido, singelo, capaz de conquistar leitores bem mais jovens (reequilibrando as políticas de conquista de públicos mais velhos com imprints/séries como a Max ou a Ultimate Marvel). Sendo cada uma das histórias escritas por C. B. Cebulski, nota-se uma constante no que diz respeito ao estilo da estruturação das histórias, e que tem a ver com uma redução, quase ad absurdum, das histórias em questão nos seus factores mínimos de estruturação actancial, quase como se as houvesse diminuído a um esqueleto de funções (à estruturalismo russo) e as preenchesse depois com as personagens da Marvel que melhor conviessem a esses papéis. O que acaba por suceder, em primeiro lugar, é encontrar algumas combinações curiosas, mais ou menos expectáveis (o Visão como Pinóquio, o Homem-Aranha como... o Homem-Aranha africano Anansi, os Vingadores como os Meninos Perdidos liderados pelo Capitão América/Peter Pan, e o Capitão Gancho “preenchido” pelo Klaw), ao passo que outras são menos imediatas e será preciso pensar nas relações internas ao Universo Marvel e a todo o historial da personagem.
Mas em segundo lugar, o que acontece é uma surpreendente leitura de que, afinal, não se havia saído do mesmo território ficcional, de uma mesma função. No fundo, convenhamos, as histórias de super-heróis sempre foram uma forma moderna dos “contos de fadas”. Não é que exista uma correspondência total entre os dois, mas onde os “contos de fada” preenchiam a necessidade da sua categoria nos seus tempos, tanto explanatórias (“porque é que existe isto?”, "porque é que isto é assim?”) como admoestatórias (“cuidado com isto”, “não faças aquilo”), emergentes na Idade Média e com uma vida prologada durante séculos, o dealbar da modernidade específica do século XX obrigaria a uma categoria correspondente mas que lhe fosse apropriada: as narrativas e programas utópicos foi uma dessas categorias, os super-heróis outra, virada para um público mais massificado. Órfãos que se tornam amados (ou temidos) por todos, catástrofes de saúde pessoal que são recompensadas como super-poderes (e super-responsabilidades), desafios tremendos sempre recompensados no final (antes de se lançarem num novo ciclo de desafio-recompensa), já para não falar de outros elementos presentes mas abaixo destes nódulos narrativos: transformações, espaços mágicos (a Fortaleza da Solidão, a Caverna, a Zona Negativa), objectos mágicos (escudo, anel, martelo, exo-esqueleto), rituais de passagem, alianças, alianças com antigos inimigos e inimizades com antigos companheiros, contactos permanentes com exemplos anteriores, advertências dos mortos, etc. É um sem-fim dos pontos comparáveis. Aliás, de certo modo, antes de Cebulski já J. Michael Straczynski havia notado nessas possibilidades, conforme o que escreveu em Spider-Man: The Other, interpretando o papel e função do protagonista.
O outro ponto de maior publicidade, pelo menos em Portugal, desta série, é o facto de haver a participação estreante de três autores jovens portugueses. Com a excepção de Kyle Baker e uma colaboração de Mike Allred, a esmagadora maioria dos ilustradores eram desconhecidos, ou pelos menos não autores de primeira linha. Uma vez que estamos perante reduções, e não explorações profundas destas possíveis relações entre os dois géneros, e com elas chegar a uma exploração ainda complexa do que seria possível escamotear desse contacto, portanto, tendo apenas um intuito de criar pequenas histórias simples, de rápida absorção e fruição, essa escolha por pesos mais leves não é de surpreender. E a maioria desses ilustradores apresenta trabalhos feitos num estilo relativamente derivativo de todo um batalhão de autores anteriores visíveis aqui e ali no mainstream norte-americano. São os casos de Niko Henrichon, de quem já havíamos aqui falado com Pride of Baghdad, mas que apresenta no seu Spider-man fairy tales # 2 (lenda de Anansi) uma versão deslavada de Charles Vess, de Nick Dragotta (SFT # 4), que mais parece um clone de Mike Allred (o qual participa neste mesmo número, aumentando ainda mais o grau deste epigonismo paupérrimo), de Kei Kobayahi (vários números), um artista em miríades de outros que requentam o mais pobre estilo mangá (entendendo esta palavra como pejorativa sobre a produção mais comercial, e que a Marvel já havia tentado anteriormente, como no horrendo Iron Man: House of M)...
E é aqui que os autores portugueses, a saber, Ricardo Tércio (SFT # 1, construído sobre o Capuchinho Vermelho), João Lemos (Avengers Fairy Tales # 1, sobre o Peter Pan) e Nuno Plati (AFT # 2, sobre o Pinóquio) marcam um grau ou dois de diferença estilística, bem mais próxima de um equilíbrio interno deste projecto. Nada tem a ver com orgulho nacional ou coisa que o valha, é apenas uma constatação de factos, observação, análise e comparação. Se com os anteriores artistas ou se revisitavam, pela enésima vez, territórios já esgotados (ou ocupados por um nome e, por isso, desprovidos da necessidade de epígonos – nada contra imitadores, não esquecendo que Sienkiewicz, Frank Miller e Howard Chaykin eram “iguais” a Neal Adams quando começaram, Al Columbia a Sienkiewicz, Klaus Janson a Frank Miller...), ou se procuravam opções já secas à nascença, por todos os graus de “realismo” da banda desenhada, este trio opta antes por uma linguagem bem mais estilizada, personalizada, clara e leve. Seguramente que terão, cada um deles e todos em conjunto, uma linha de influências detectáveis ou aproximáveis (mangá em geral, as escolas de character design publicitário, artistas vários, de Mignola a Jim Mahfood), mas não me parece que este estilo em geral, e sob o qual podemos agrupá-los, ser o mais normal neste género de banda desenhada. Já havíamos detectado pontualmente estilos relativamente próximos, de estilos mais “redondos”, “cute”, na banda desenhada de super-heróis (ou géneros contíguos) de tom mais “sério” com artistas como Teddy Kristiansen, Damion Scott, Philip Bond, Darwyn Cooke e Tim Sale; ou poder-se-iam falar das séries “infantis” baseadas nestes universos, nas quais penso que Marvel Fairy Tales também se inscreve, como Batman Animated, Tiny Titans, Super Friends, etc.
Ponderando de um modo ou de outro, como tendência crescente de aceitabilidade destes estilos num território mais atreito ao “realismo” (mesmo que seja torturado por esteróides gráficos como os de Jim Lee ou Rob Liefeld ou Todd MacFarlane), ou como gesto absolutamente inédito e original (um novo estilo, “europeu” – palavras da equipa de produção Marvel, de acordo com João Lemos), é uma curiosa reinvenção de todos os pressupostos da companhia Marvel através de um desvio para um seu público bem mais jovem ao invés de um subir a parada através da ultraviolência (e sem moloko) ou de desafios cada vez mais insuperáveis (as sucessivas Crises – DC - e Guerras – Marvel – de que falei com OMAC).
Todos estes artistas empregam as suas forças e características (e fraquezas) numa construção equilibrada do propósito da história. Nuno Plati e Ricardo Tércio apresentam um estilo muito redondo, onde as personagens parecem ser construídas a partir de estruturas modelares, e as acções e emoções são transmitidas por estratégias largamente convencionais e marcadas, em cenários desenhados com informações mínimas de contextualização espacial, apenas o suficiente para criar o ambiente necessário. O que se coaduna perfeitamente quer com a natureza de “conto popular perdido nos tempos” do Capuchinho Vermelho quer as “emoções à flor da pele” do clássico de Collodi. As figuras de João Lemos são mais feéricas, naturalmente, e até femininas, e os cenários mais densos e populados, de novo e ainda que diferentemente, um equilíbrio perfeito para a história de crianças que não desejam de modo algum crescer e manter-se no reino que as suas mentes, que não distinguem os poderes da imaginação dos da percepção real, e a fantasia da responsabilidade mais cingida, projectam num “para sempre”. Num caso e no outro, este equilíbrio não tem a ver com um preenchimento das suas prestações gráficas a uma ideia preconcebida, mas antes a que é o casamento entre os estilos destes artistas e esta escrita de Cebulski que leva a essa leveza final.
É curioso que as capas desta mais recente série, Avengers Fairy Tales, todas da responsabilidade da artista francesa Claire Wendling, remetam a um trabalho reminiscente dos grandes mestres da ilustração inglesa da passagem do século XIX para XX, como Walter Crane, Richard Doyle ou Arthur Rackham, com fundos decorados, enquadrados ou padronizados (à la William Morris). É uma outra forma de querer fazer essas outras ligações com as tradições geográficas (Europa) e temporais (século XIX) da recriação do imaginário infantil (ou mesmo sua origem, no começo do conceito do “infantil” da sociedade burguesa e capitalista de 1800) e, assim, um repesar do Universo Marvel, o qual, provavelmente, começa a ter poucas formas de se reinventar.
Que formas reservará o século XXI para cumprir as mesmas funções?

Nota: agradecimentos a João Lemos, pelas conversas descontraídas e divertidas, onde se lançaram raízes para novos projectos futuros na Marvel, como os Marvel Yiddish Tales, X-Martim Moniz, O Cancioneiro Fantástico, e Avengers at Sea: The Adamastor War.

Cadernos de Fausto, de Rafael Dionísio (literatura) no Cadeirão Voltaire

Não é banda desenhada, e a função deste post é para dar conta da minha "visita" ao Blog sobre livros e leituras Cadeirão Voltaire, da Andreia Brites e Sara Figueiredo Costa, esta última também do (espero que conhecido e muito vistado) Beco das Imagens.
Será o início de uma colaboração que espero alongada, ainda que esparsa, de artigos críticos sobre literatura, especialmente de autores portugueses contemporâneos. Começo com o Rafel Dionísio e o seu Cadernos de Fausto, alguns dos textos tendo surgido primeiro no seu blog.
Obrigado pela atenção.

18 de junho de 2008

OMAC. Jack Kirby (Planeta DeAgostini)

Pequena nota introdutória: quando se entra em qualquer loja de banda desenhada – ou livraria com secção dedicada a ela – em Espanha, apetece dizer “hay de todo!”. A edição em Espanha atravessa uma crise idêntica à de muitos outros países, quer no que diz respeito a originais nacionais quer às traduções (dos Estados Unidos, do eixo França-Bélgica, mas de outros locais também), mas em comparação com o que nos é possível, é muito. Não é com inveja que observo as prateleiras no país vizinho, mas com pesar de não poder aceder a elas mais vezes. Mas delas darei conta em alguns dos próximos posts, com publicações espanholas. Numa coordenação editorial, a Planeta DeAgostini publica num mesmo intervalo de tempo a série OMAC (numa publicação a preto e branco, de papel de jornal e muito barata, que recordará uma versão "gibi" do formato Showcase Presents, da DC), um original de Jack Kirby de 1974, a série do mesmo personagem por John Byrne, de 1991, e a mais recente Omac Project. Falaremos aqui sobretudo da primeira.
Uma sinopse das linhas gerais tornará mais claras as notas que se seguem. Esta série desenrola-se num hipotético futuro próximo, em que existem grandes diferenças em termos de tecnologia e cultura, mas que se adivinham desde logo no presente. Existe uma Agência Global da Paz (uma super-ONU) que, preocupada com a subida do crime e da sua natureza, desencadeia um processo ultra-tecnológico na criação de um supersoldado (ecos do Capitão América e Superhomem), o O.M.A.C., “One Man Army Corps”. Os agentes, homens e mulheres, desta agência usam máscaras de “aerossol cosmético” para que não sejam reconhecidos e até para que sejam apenas vistos enquanto agentes globais, e não identificados com qualquer nação em particular (uma variação do véu que cobre o rosto da justiça). O homem que escolhem para ser alterado, via “cirurgia electrónica” por um satélite robotizado, o Brother Eye (corruptela benfazeja de Orwell?) é um fracote chamado Buddy Blank, sublinhando a pouca importância da sua personalidade antes de se vir a tornar OMAC (pois acaba amnésico da sua existência anterior com a transformação) e mesmo depois (mal termina uma missão, tem de se lançar numa outra, e jamais revela quaisquer traços de ser humano, apesar da patética tentativa de lhe obter uma “família”). Para além de toda uma série de estratégias que Kirby reutiliza, requenta, de experiências anteriores, OMAC parece mergulhar numa espécie de angústia sobre as potencialidades do futuro que abarca a própria criação do autor. OMAC é o seu título onde a desumanização de todas as personagens, inclusive a do herói, é uma constante. Neste futuro, é possível fazer colheitas de corpos jovens para colocarmos os nossos cérebros, existem salas de violência como forma de terapia rápida, formas de entretenimento de uma extrema crueldade e ilusão de realidade, pessoas que são torturadas e tornadas em monstros por deverem dinheiro a máfias multinacionais...
No fundo, Kirby faz ainda parte – e aqui revela-se como tal abertamente - da longa tradição do romantismo que desconfia do avanço tecno-científico, e até mesmo – pela própria natureza das ficções que propõem – apresenta laivos antiracionais. De acordo com Matei Calinescu (As cinco faces da Modernidade), há um entendimento desenvolvido nas últimas décadas do século XIX e nos inícios do XX, mas que se prolongaria (até hoje, poderíamos acrescentar), de que “um alto grau de desenvolvimento tecnológico surge perfeitamente compatível com um sentido agudo de decadência” (esta entendida como o não alcance do tão prometido progresso existencial e conforto moral.
O desencantamento e desumanização que está presente em OMAC, e até mesmo o facto de que não há tempo nem espaço para criar uma verdadeira personalidade do herói – a série apenas durou oito números, mas o próprio ritmo das aventuras impele-o de uma missão para a próxima, cada vez mais perigosas até à sua aparente destruição; e, aliás, muitas vezes a lógica interna das histórias sofre com isso, com acções inexplicadas, um abuso ao recurso a deux ex machina, pontas perdidas... não estamos perante a melhor "escrita" de Kirby – poderá levar-nos a pensar que se trata de uma espécie de mágoa de Kirby expressa pela ficção: afinal de contas, ele mesmo é também “blank” na medida em que tem é de criar o mais depressa possível trabalhos para uma agência sem rosto – a forma como foi tratado na Marvel espelha isso. A mohawk que OMAC leva espelha claramente os estilos de penteados que surgiram nessa altura associados ao punk, e apenas posso imaginar que Kirby, tendo nascido em bairros pobres e violentos de Nova Iorque mas sendo um homem de provecta idade, veria nesses sinais de moda algo dúbio entre a expressão pessoal e uma cultura que lhe escapava. Tudo isso aliado leva-o a criar mais um outro título apocalíptico. Lembremo-nos de que pouco tempo antes, também na DC, havia criado Kamandi, The Last Boy on Earth. Mas se nessoutro título o apocalipse já se havia dado e o que observamos nele é a esperança da sobrevivência, em OMAC vemos o desespero do fim dos tempos e a tentativa de impedir essa derrocada. Porém, essa tentativa é gorada por vários aspectos: em primeiro lugar, por a própria série ter chegado ao fim num momento de fraqueza máxima do herói (retornado à forma de Buddy Blank); em segundo lugar, por mais tarde se fazer uma associação de OMAC a Kamandi, em que o primeiro seria o avô do segundo, compreendendo dessa forma que o mundo de OMAC chegaria a um fim irreversível e que ele não evitou; em terceiro lugar, porque mesmo este outro gesto de Kirby em lançar raízes de organização ficcional do universo apenas levou – ou será esse um elemento intrínseco deste género de banda desenhada? – a maiores e maiores níveis de destruição no seu interior.
É curioso, portanto, que a ressurreição deste conceito, mesmo com as alterações necessárias, no mais recente OMAC Project, que por sua vez faz parte da estratégia narrativo-comercial a longo prazo das “Crises” (uma forma de restabelecer os parâmetros de organização interna dos seus Universos, com repercussões não apenas a nível criativo mas igualmente económicas, obviamente), tenha a ver com mais uma variação da tecnologia independentizada do homem, do seu criador (Batman, neste caso) e que, sem a avaliação moral subjectiva, implementa políticas lógicas, sem quaisquer falhas, mas que significam obrigatoriamente morte e aniquilação. As paradas são cada vez mais altas nestas ficções de super-heróis, por isso sobem igualmente as escalas dos conflitos, as repercussões no interior dos seus universos: a maravilha está em entender como é que esses mundos ficcionais aguentam um estado de permanente catastrofização. No artigo sobre o livro de Evanier, disse que Kirby era Profeta, Rei e Arauto. É deste último papel que OMAC faz parte, como primeira tocha lançada no interior da fortaleza, que ele próprio havia erguido. Isto não constitui um paradoxo, mas sim a intrínseca condição das

Spring # 4, Garten Eden. AAVV (Spring)

Spring é uma revista de banda desenhada, ilustração e desenho do que parece ser um colectivo de artistas, alemãs e doutros países, radicadas em Berlim e de círculos independentes, cuja máxima preocupação é divulgar o seu trabalho, e não construir uma qualquer associação que as una num qualquer princípio organizativo de escola, estilo, editora... O site da Spring mostra-se precisamente como um aprogramático espaço de divulgação, cujo silêncio ou ausência de informações claras e definidas nos levam a concentrar nos trabalhos ofertados. O mesmo se passa com a revista, apresentado biografias mínimas e os endereços dos sites das artistas (informação gera informação gera informação). Não estando seguro se os anteriores números seguiriam o mesmo modelo, este número 4 porém é temático, versando sobre o conceito do “Jardim de Éden”.
Alguns dos trabalhos aqui incluídos apresentam irónicas revisões do mito de Éden, de modos mais ou menos claros e expectáveis, ou de modos bem mais subtis. Poderá parecer facilitista dizer que se tratam de versões “feministas”, mas a verdade é que estas participações sublinham aspectos que de facto têm a ver com a “condição feminina”, ou aquilo que parece ser essa condição enquanto imposta pela(s) sociedade(s) em geral: a maternidade, o desejo de beleza eterna como modo de conquistar homens e, mais, como único modo de existência de cidadã no mundo, as obrigatoriedades domésticas, etc. E tendo em conta que é precisamente a partir desse mito que no complexo judaico-cristão as mulheres passam a ser vistas como a parte culposa, que acarreta a morte em si mesma, que induz às permanentes quedas, todos estes trabalhos funcionam como uma espécie de correcção, de desvio ou de reposição de um peso.
Como já havia dito anteriormente, existe, de facto, algumas características que parecem recorrentes nalgumas mulheres, que têm a ver com a representação do próprio corpo enquanto plataforma de transformações angustiosas, mas também como espaço de revelação de uma violência indizível ou que, apresentada enquanto algo aparentemente doce, oculta uma dimensão mais negra e terrível. Isto poderá parecer em demasia uma entrega a ideias sobejamente difundidas, desde os versos finais do Fausto (“O feminino eterno/Atrai-nos para si”, na tradução de Agostinho D’Ornellas) ou a teorias mais vagas que apenas desejam sublinhar o estado do mundo. Mas é a observação cuidada que leva a estas afirmações: por exemplo, mesmo as mais delicodoces páginas na antologia, as de Moki, que aparentemente mostram um sonho passado numa terra onírica e deliciosa, ostenta a mortalidade quer das criaturas quer da destruição que elas acarretam. Natalie Huth, com "The Serpent’s Egg" (relembrando o filme de Bergman; e aqui com uma das imagens), é mais clara, com a sua série de desenhos e poema que parece explorar a permanência da serpente como parte integrante da vida dos humanos (a sua presença enquanto símbolo da maternidade, da gravidez, na união pouco alquímica do casal...). “Estávamos mortos. Era um sonho”, começa o poema assinado por Eva: é deste ponto de equilíbrio misterioso que as imagens conseguem dar conta. Laureline Michon apresenta uma série de gravuras, na qual se conta “O aventuroso périplo de Eurídice, filha de Eva, ao longo do rio Estige-Amor”. De novo, uma revisitação de princípios paradoxais, e num emprego dos materiais visuais reminiscentes de Frédéric Coché (Hortus Sanitatis). Imagens alegóricas parecem ser também o território do trabalho de Carolin Löbbert e Almuth Ertl. Maria Luisa Witte apresenta uma pequena sequência em torno de um muro urbano e degradado, cujo título, “Der ummauerte, der umwallte” (i.e., algo como “O emuralhado, o emparedado”; aqui apenas um fragmento de uma imagem), nos obriga a procurar em todos os seus pormenores, grafitti, frases curtas, brechas, e nas plantas que despontam por sob o cimento, os vestígios do que reside no seu passado, uma vez que o que encerra, o que está do outro lado, é impossível de alcançar (como variação do Paraíso Perdido, talvez).
É da atenta observação das características específicas de cada um destes trabalhos, mas associadas num subsequente afastamento e procura do que as torna em comunidade possível, que emerge uma intuição de um movimento coeso e unido desta criação feminina, multímoda, variada, até mesmo passageira, mas cujo rasto de uma angústia estranhamente familiar é bem real.
Nota: agradecimentos a Teresa Câmara Pestana, por me ter colocado nas mãos esta publicação.