25 de julho de 2013

Três publicações serigrafadas. André Lemos (VVEE).


Comecemos com uma descrição física, material, objectual destes três projectos de André Lemos. Com a nota inicial que nenhum destes traços materiais é inocente na forma como um livro é fruído, sendo as pontas dos dedos, os sentidos do corpo, toda a materialidade do próprio corpo, influenciados, e assim a leitura. Todos estes livros são serigrafados, mas essa característica técnica comum acabou por ser uma circunstância feliz, e não propriamente uma insistência do autor. Tratam-se dos seguintes projectos: Woofer Takeover Jubilee, publicado em 2012 pela plataforma Cotoreich, de Grenoble, Sarilhos, que saiu pela Oficina do Cego [e à qual pertencemos, mas não trabalhámos no projecto em si] no final desse ano, e J. M. W. Turner On Dole, já de 2013, pela Re:Surgo!, de Berlin.
Woofer é uma publicação de tamanho A4, com dois cadernos de dez e oito páginas, agrafadas às capa e contracapa mas com um hiato entre os dois, de forma a criar um “buraco” na espinha, contendo o primeiro caderno um outro caderno, menor, A5, de oito páginas, e o segundo dois complementos: uma lâmina solta de fundo rosa, e uma folha de um desenho fotocopiado cheia de riscos e manchas coloridos a caneta de feltro, como se tivesse sido (e provavelmente foi) uma criança a cobri-lo. No interior da capa ainda vem presa uma fotografia encontrada pelo editor da Cotoreich, Adrien Fregosi, em feiras da ladra locais, cada uma única e irrepetida em cada exemplar. Esta publicação tem uma série de cores, mas a maior parte dos desenhos tem apenas duas cores impressas, havendo um caso com uma gradação de rosa a azul-marinho, outros com efeitos de mancha simples, outros monocromáticos, etc. Apenas reconhecemos um dos desenhos como tendo sido empregues anteriormente, num cartaz.
Turner On Dole é um minúsculo “serizine”, de quatro folhas ligeiramente maiores que o A5, dobradas e agrafadas em dois pontos, com papel creme, e com desenhos impressos a segundas cores, a saber, o castanho-escuro e o cyan.
Sarilhos é um gigantesco livro, com quase 50 cm de altura (por 35), e com 28 páginas, todas elas serigrafadas a preto-e-branco, se bem que algumas das folhas sejam azuladas. Houve uma edição limitada de 10 exemplares que ainda oferecia uma serigrafia extra, um desenho não incluído no interior. Este é talvez o mais “simples” dos três projectos, mas tem uma monumentalidade de que os outros dois nem sequer se aproximam, além de terem sido produzidos pelo próprio artista, no seio do enquadramento da Oficina. É necessário ter em conta que, para os dois projectos “exteriores”, o artista enviou os desenhos em layers, e sem quaisquer instruções/limitações quanto à sua ordem e cores, tendo tido Woofer um maior grau dessa “liberdade editorial”. O pequeno projecto de Berlim simplesmente toma decisões em termos de paginação e ordem, o de Grenoble cria combinações de desenhos por sobreposição, “passagens” radicais entre abordagens mais lineares e com muitos brancos para outras composições mais carregadas, provocando uma “leitura” de maior distúrbio, em contraste com os outros projectos.
De facto, apesar de tudo, apesar da quase caótica nomenclatura e tipologia de abordagens a que temos acesso nestes três gestos, não deixa de haver um ritmo relativamente lento, calmo da parte de André Lemos. Pelas suas características específicas (e por razões editoriais, como vimos), talvez Woofer seja o gesto mais alargado e “ruidoso” – os títulos, apesar dos jogos livres de Lemos, acabam sempre por tombar e encaixar-se num quadro de interpretação quase literal, no fundo. Existem paisagens, naturais e inabitadas, ou ocupadas de uma forma ou outra pela presença humana (ou outra), objectos sem fito claro, criaturas fantásticas e personagens humanas em acções pouco compreensíveis, quadros que colocam lado a lado o orgânico e o inorgânico, uma personagem e um objecto aparentemente sem nexo, e as conhecidas intervenções de material verbal que pode ou não querer ser lido literal, simbólica ou aleatoriamente. Sarilhos, por sua vez, apresenta-se com uma maior unidade temática-formal, concentrando-se em “retratos” de personagens – de novo, ora fantásticas por uma razão ou outra, ora colocadas em situações ininterpretáveis – a corpo inteiro ou em busto. Que galeria é esta? Que relações narrativas ou de outra índole têm umas personagens com as outras? Estes não são seguramente “family portraits”, mas tampouco são desenhos “ao calhas”… A que “sarilhos” aludem? Serão essas mesmas relações? Turner On Dole é paradoxal nos seus conteúdos: se em termos de composição e cromatismo é mais “calmo”, a verdade é que os desenhos são mais nervosos, não sendo aqueles trabalhados a grandes pinceladas de tinta-da-China, mas com mais manchas, salpicos, arrastos de tinta com uma qualquer ferramenta (panos, dedos?), e desenhos possivelmente a caneta ou lápis. Existem muitos gestos, desenhos quase abstractos, “esculturas” de formas heteróclitas.
Conforme o seu ritmo de produção de outros momentos, e pela natureza das publicações, encontramos em cada título uma espécie de colecção de desenhos. Mas “colecção” é um termo que implica três factores que encontram em contacto geométrico, uma tríade, onde um factor funda o outro. 1. Os objectos da colecção, que podem ou devem conter em si mesmos características - fáceis ou subtis de identificar pelo agente - consideradas comuns. 2. O agente da colecção, aquele que selecciona e agrega esses objectos para um espaço comum (imaginário, se for preciso), aquele que identifica as características que operam essa acção. 3. Os conceitos, o olhar, o filtro, a bitola, o princípio de comunidade que emerge dos objectos e do agente. Será o agente que os impõe aos objectos, ou os primeiros que os despertam no Segundo? Tratar-se-á talvez apenas do embate de ambos? E que grau de liberdade terão estas colecções. O livro em torno de Grosz, Family Portraits e Word Games eram mais organizados de modo simples, estes outros parecem auscultar intervalos mais alargando dessa ideia de comunidade.
Mais surpreendente, e que nos poderá fazer aproximar de uma noção mais centralizada em termos discursivos, é um auto-retrato no spread central da publicação Turner On Dole [que aqui mostramos a preto-e-branco], em que Lemos olha de lado, para trás, e uma larga mancha que não permite que se identifique objecto será. É discutível se esta é ou não a primeira vez que há um gesto autobiográfico do artista de uma forma tão clara. Estilisticamente, este desenho em particular lembra-nos Mattoti na sua melhor fase – as linhas esquálidas, finas e de grandes gestos de Estigmas – mas alcançando-se aqui uma estranha acalmia. Não se trata do desenho mais “surpreendente” em si mesmo, o mais fantástico em termos de figuração ou de imaginação, de quadro de referências, mas o seu efeito é algo emocionante. Em Woofer, apresenta-se uma frase curta, que poderia servir de (auto-)epígrafe a todos os projectos: “um gajo endoidecido e revoltado aqui ao lado, pedia esquilos & raposas para a baixa! Eu não peço tanto!”. De facto, este “não peço tanto!” é comovedor. Nas mãos e boca de um artista que tenta criar imagens de uma forma totalmente livre, desligado de quaisquer obstáculos ou espartilhos de género, de uma forma genuína e não de “lip servive” (quantos são os projectos que dizem ser “de difícil categorização” e que “quebram as barreiras” mas da mesma forma que temos rock “independente”, e caem em fórmulas generalistas e de trilhos certeiros de sucesso?), o “não pedir tanto” depois de ter conquistado tanto é desarmadora. Será este um olhar para trás nostálgico? Um balanço de uma longa carreira mais invisível para além de certos círculos, e dizemo-los de forma segura, mais atentos? Ou contemplará ele aquela mancha sem forma por ela ser símbolo do que Lemos sempre tentou auscultar e arrancar da sua sombra, sempre falhando e por isso sempre retornando a ela? Que nome terá essa mancha. Arrisquemos: o informe.
Para Georges Bataille, o termo informe é uma condição na qual as distinções entre figura e fundo, Si e Outro, se dissipam, e deixam de existir formas significantes. Por seu lado, Julia Kristeva desenvolveu uma particular noção de abjecto, também categoria do não-ser, não é sujeito nem é objecto, algo que se encontra antes da separação do sujeito da mãe e depois da morte, em que o corpo volta a ser objecto. Hal Foster, num pequeno mas decisivo ensaio, “Obscene, Abject, Traumatic”, não só expõe estas noções e as enquadra numa nova inflexão da cultura pós-moderna, como identifica, na obra e léxico do artista norte-americano Mike Kelley um terceiro termo que se encontraria entre o informe de Bataille e o abjecto de Kristeva: Lumpen, alemão para “trapo”, criando, e parafraseio, um materialismo baseado em factos psicológicos e sociais, cujo resultado é, e desta vez cito textualmente, “uma arte de coisas, sujeitos e pessoas cheias de grumos e que resistem à formação”.
André Lemos, no seu percurso, cada vez mais se centra no gesto em si, autónomo, indiferente ao seu contexto ou uso, cortado de quaisquer categorias e disciplinas, e não tanto no cumprimento do gesto com vista a um qualquer objectivo que não está nele mesmo, mas antes na conquista de um elemento categorizável: uma banda desenhada, uma ilustração, uma série passível de exposição e comercialização/circulação económica-artística. É verdade que trabalha sobretudo, pelo menos nestes três casos trazidos à colação, no interior de veículos múltiplos, edições reproduzidas e cujos objectos partilham da cultura lata do livro (do fanzine ao livro de artista, não se coadunando com nenhum desses pólos de um espectro somente financeiro). Mas essa é como que a necessária, forçosa, condição da sua própria existência e circulação. É uma necessidade de encaixamento numa situação que permita a sua criação e oferta aos espectadores preparados.
Nota: para adquirirem exemplares destes projectos, cliquem nos links das plataformas respectivas. 

23 de julho de 2013

Crónicas de arquitectura. Pedro Burgos (Mundo Fantasma)

Mais importante do que a data da recepção de uma determinada obra – o seu rápido anúncio ou divulgação, a sua atempada publicitação – importa, a nosso ver, uma sua recepção crítica, algo que a contextualize, coloque num espaço histórico e quebre a sua imediata superfície para perscrutar os mecanismos estéticos, ou outros, que a componham.
Apenas uma leitura superficial “despachará” este projecto de Pedro Burgos, sem lhe tomar o pulso.

Este pequeno livro ou publicação é, a um só tempo, catálogo da exposição havida na Mundo Fantasma assim como compilação das crónicas de uma página que Pedro Burgos havia publicado no JA [Jornal Arquitectos], no seu ritmo trimestral entre 2009 e 2012. Além dessas 12 crónicas, há uma extra, inédita. No entanto, desde já consideraremos esta nova imagem como relativamente exterior ao projecto central, por várias razões. Não apenas por não ter sido publicada no JA, e ter sido pensada para esta publicação, servindo-lhe de coda a vários níveis. Apesar do grau de colaboração que terá havido entre o artista e a equipa editorial, de maneira a seguir os temas de cada número do jornal, e a forma como responderia aos temas então contemporâneos e “quentes”, esta crónica tem texto de Manuel
Graça Dias, na sua qualidade de director do JA. Não seria isso somente que a arrancaria da economia das restantes crónicas, mas ela acaba por se pessoalizar em torno de uma personagem de um modo que não ocorre nas restantes (mesmo tendo em conta que ela pode ser recorrente, se a identificarmos como o arquitecto de “ser populista”), sendo a “piada” mais ancorada nas circunstâncias do nosso tempo do que as restantes (se bem que muitas das crónicas tenham referências enviesadas ou directas sobre “cenas da época”), e com uma estrutura muito menos livre e fluida do que as restantes. Essa separação, porém, não será mais do que um exercício de análise, já que naturalmente será fruída na continuidade das outras.

O prefácio de Graça Dias é muito explícito nos pormenores dessa relação de trabalho, de ritmo, de resposta (corroborados pela inclusão de uma reprodução dos sketchs que caçam a ideia e estrutura em primeiríssima mão, ao lado da imagem publicada), já para não falar de outras informações sobre a vida do autor, que por vezes roçam o biografismo e o essencialismo entre as informações daí provenientes, tantas vezes repetidas. Por exemplo, Pedro Burgos é formado em arquitectura e (caso mais raro, devido ao, nas palavras do autor, “a grande gruta dos talentos perdidos”) trabalha como arquitecto, mas essa informação biográfica de pouco serviria ou servirá se não houvesse esta capacidade de transposição do seu gesto de moldação de espaços, formas, personagens em vivências legíveis nos seus cartoons, se assim os podemos chamar. Não há nada na formação académica e profissional de um arquitecto que o torne particularmente apto a esse gesto nem nada da banda desenhada que a torne melhor ecrã para temas ou formas de banda desenhada. Quando surgem casos de estudo que merecem uma atenção crítica particular – como aqueles casos que vão sendo estudados de modo sistemático por Renata Pascoal ou aqueles casos nevrálgicos como Building Stories, de Chris Ware, de que falaremos muito em breve – eles rasgam a vulgaridade desses encontros. É um arquitecto uma profissão que à partida o/a torna mais sensível à plenitude humana? Claro que não. Torná-lo-á mais propenso a um determinado grau de qualidade de conquista na fabricação da banda desenhada? Independentemente do número que se possa angariar de arquitectos na banda desenhada, esse “casamento” ou esses actos criativos são singulares, não expectáveis. Caso contrário, seria roubar ao(s) artista(s) a sua capacidade idiossincrática de conquistarem esse papel.
Além do mais, e um dos aspectos que importa sublinhar sobremaneira nestas 12 crónicas é que não há de forma alguma uma concentração nos aspectos objectuais da arquitectura, isto é, o isolamento dos edifícios ou das suas formas (trata-se de uma resposta ao acto da arquitectura bem distinto do de Blanciak), nem uma reificação quase absoluta dos estilos (à la Peeters-Schuiten). É importante notar que o autor opta por colocar como títulos de cada peça o verbo “ser” [se bem que, em rigor, esse título tenha sido dado a todo o número respectivo do JA, podendo ter partido a equipa da redacção], recordando a lição de Erich Fromm sobre a paulatina mas decisiva emergência do materialismo nas sociedades capitalistas avançadas, servindo então aqui, através do humor, da observação do quotidiano, português ou outro, de solução. Mesmo o nom de plume do autor reflecte essa tendência de vivência, e não tanto de reificação do objecto-edifício.

Podemos dizer que, em termos gerais, estas crónicas são sobre os obstáculos que o acto de arquitectura conhece. Imaginemos que nas mentes dos arquitectos o projecto é tudo, um mecanismo ideal de passagem do conceito ao objecto e sua implementação no espaço, mas que infelizmente tem de atravessar o atrito da realidade, sob a forma de clientes, orçamentos, materiais, barreiras legais, vontades de terceiros, recepção e coordenação com os vários círculos concêntricos de contextos.
Cada um deles é visitado pelas crónicas. Isto não significa que os arquitectos surjam como pessoas desinteressadas ou sacrossantas, e muitas vezes a sua soberba aparece retratada ou pelo menos relativizada de alguma forma nestas curtíssimas histórias (se é que lhes podemos incutir uma ideia de facto de narrativa, e não antes de retrato social em acção), como nos casos de “ser populista”, “ser pobre”, “ser crítico” ou mesmo “ser arquitecto” e “ser nada”. Por outro lado, tal como nas várias histórias que Burgos foi criando ao longo dos anos, de modo esparso, e pelas forças das circunstâncias dos projectos em que esteve envolvido, como as publicações que a Bedeteca de Lisboa coordenava com os transportes dessa cidade, ou o absurdamente esquecido e subapreciado À Esquina, com João Paulo Cotrim (uma dessas pequenas obras-primas que fica esquecida no meio do ruído criado por fãs mais vocais de tantas mediocridades), Burgos (de novo sublinhando o nome artístico?) dá uma atenção particular à cidade de Lisboa, incutindo-lhe uma pátina especial de observador da cidade, de colhedor de costumes, de retratista das suas facetas, à la Carlos Botelho (v. adiante). Isto é particularmente vincado na presença dos corvos antropomorfizados, na porteira tacanha para com as outras culturas que pintam Lisboa, na passagem de modelos à la Gehry que tão provincianamente quase picotaram a capital...Porém, acima talvez dos conteúdos temáticos e populados por personagens reconhecidas de forma óbvia ou simbólica, está a forma como Pedro Burgos compõe as suas pranchas, e essas soluções são uma das grandes vitórias do autor, e que o colocam num trajecto particular da nossa “cena”. Se nos permitirem o desvio, recordemos que algumas destas pranchas estiveram presentes na exposição Tinta nos Nervos, e colocadas de uma maneira pensada na sua possibilidade de diálogo. Do lado oposto da estrutura em que se integrava, portanto como que num diálogo contrastivo, ou complementar, ou gémeo, encontravam-se algumas das pranchas de Richard Câmara, outro arquitecto de formação, nomeadamente as do projecto ainda inédito Almedina (de que mostramos uma imagem) e as pranchas da exposição Estereotomias. No centro, precisamente lançando a ideia de uma hipotética raiz comum, ou modelo, ou gesto inaugural, alguns dos magistrais Ecos da Semana, de Carlos Botelho (ver imagem abaixo), pranchas fundamentais na história da banda desenhada ou ilustração ou cartoon (ou tudo isso) em Portugal. Para todos aqueles que viram, com olhos de ver, esta aproximação, entender-se-iam quase de imediato as suas afinidades. Uma construção livre de espaços e personagens numa única unidade visual, a não-estratificação dos vários episódios e/ou momentos em esquadrias rectilíneas mas a fundação de uma cartografia sinuosa de leitura, uma abordagem dinâmica dos protocolos de leitura mesmo, e uma concentração na emergência de uma espécie de objecto central, ao qual poderíamos mesmo chamar de “edifício”, isto é, uma verdadeira entidade singular, e não uma concatenação de elementos díspares e divisíveis. Um ser orgânico, um ser. 
Nota final: agradecimentos à Mundo Fantasma, pela oferta da publicação.

21 de julho de 2013

La mémoire du corps. Kim Hanjo (Atrabile)


Este livro reúne um número de contos curtos de um dos autores afectos ao projecto da Sai Comics, plataforma editorial de que já falámos a propósito da sua revista homónima (este material publicou-se aí em primeiro lugar). Estas 7 histórias (mais epílogo) apresentam-se como unidades autónomas, mas ao mesmo tempo têm linhas vermelhas que as atravessam e as tornam num conjunto coeso e ligado. Duas páginas, ou um spread, antes do início das histórias propriamente ditas apresentam uma espécie de árvore genealógica ou de relações entre as personagens todas que entram nelas, mas sem que sejam coincidentes no seu interior. Isto é, uma personagem entra numa história, ao passo que a sua irmã entra noutra, e uma ex-namorada numa terceira, mas nunca ou raramente ambas numa única história. Além disso, apesar destas personagens serem todas dispostas visualmente, até mesmo numa estrutura que mima Polaroids, nem sempre têm o seu nome indicado, demonstrando desde logo uma hierarquia actancial em cada unidade narrativa. Cria-se assim uma rede fantasmática de relações, como se importasse mais a neblina que os agrega num mesmo contexto do que uma certeira inscrição familiar, já que grande parte dos temas explorados têm mesmo a ver com conflitos familiares e amorosos, por vezes insanáveis, por vezes apenas superficialmente resolvidos.
Em nenhum momento o autor, mesmo no prefácio, dá indicações destes relatos se tratarem de autobiografias, ou sequer de se basearem em experiências directamente conhecidas. No entanto, o seu grau de quotidiano poderão aproximá-los desse género, ou pelo menos de um campo suficientemente alargado, da banda desenhada contemporânea a que usualmente se dá o nome de “slice of life”. Há em muitos dos momentos destas histórias, aqueles que criam o baixo contínuo social do contexto em que elas decorrem, uma atenção particular para com as especificidades culturais, as banalidades típicas, um quotidiano inalienável daquele país.
A sociedade sul-coreana, tal como a portuguesa, vive num complexo sistema de hierarquizações sociais. A idade, as profissões, a educação, o nível económico, o estilo de vida, pautam tanto as vidas dos cidadãos daquele país como as do nosso. A diferença talvez seja o facto - mas tudo isto é corroborado por indicadores sociais e estatísticos - de que o tipo de discussões e frentes que se fazem em relação a essa hierarquias seja menos imediata na Coreia do Sul, não num sentido fatal, de se aceitar um destino inalterável, mas a de uma certa aceitação das “regras” predeterminadas. Isso implica que as formas várias de resistência sejam extremamente subtis, e Kim explora precisamente algumas dessas formas, por vezes assumindo o aspecto de “desistências”. Isto é, se uma personagem parece desistir de uma carreira, ou abandona a família, ou não liga a uma certa ideia de sucesso profissional e económico, essa será uma forma enviesada de demonstrar um escape das pressões tremendas a que todo o seu entorno obriga. Uma vez que aquela também é vista muitas vezes como uma sociedade “colectivista”, no sentido em que se criam relações fortíssimas entre membros de um mesmo grupo particular (a família, uma companhia, etc.) que os passa a definir, e em que cada um deles assume uma responsabilidade por todos, é natural que surjam igualmente sentimentos moralizantes entre esses membros. O paternalismo ou um seguimento filial (“cego”) entre patrão e empregado, professor e alunos, etc., é muito normalizado. Aí, de novo, vemos emergirem nestas histórias momentos em que essas relações são postas em causa, o que são garante de uma crise bem mais profunda e duradoura do que entre nós. De uma forma simples (e simplista), digamos que ter uma discussão mesmo aos berros com os pais, entre nós, é algo de usual e pouco surpreendente, e que as mais das vezes o tempo sara. As quebras que vemos sucederem nestas histórias, como à filha do pastor, a maneira como o futuro marido de Lee Sooyeon a infantiliza e maltrata (e esta “desvia” o tratamento), a relação terminada de Lee Hyunbok com a mulher sem nome, são perenes e definitivas (e definidoras).
Uma das personagens, Lee Jinseok (e que poderíamos imaginar ser um mais directo avatar das experiências do autor, sua sombra e duplo), surge em duas histórias: “L’antenne” e “Le rêve”, sendo as mais introspectivas de todas, uma vez que quase dispensam da interacção com outras personagens e se concentram nas percepções interiores do protagonista. A primeira poderá, numa breve sinopse, soar cómica, mas não o é: no interior do seu escritório, onde procede a trabalhos rotineiros administrativos, Jinseok discorre sobre o que ouve, sente, cheira, e imagina, cada vez que os seus colegas, sobretudo as mulheres, vão à pequena casa de banho que se encontra imediatamente atrás dele, ou as ginásticas a que ele mesmo se entrega quando a usa para impedir uma má imagem de si aos que vierem a seguir. Cómico, parece. No entanto, o que se estende é uma espécie de devaneio paranóico sobre a auto-percepção, a auto-estima ou -comiseração, e o valor que se coloca na ideia que os outros terão de nós, ou sobre as fronteiras débeis de como essas mesmas ideias se formam. Já “Le rêve”, como o título indica, encerra-se num só sonho em que Jinseok pensa ser um soldado numa guerra sem quartel. As imagens, todavia, não “traduzem” a ideia coerente que se terá formado na sua mente, mas de vinheta a vinheta atravessam variadíssimas representações oriundas de pinturas, murais, esculturas, frisos, pergaminhos iluminados, desenhos, fotografias, cerâmicas, gravuras e estampas, quer gregas e romanas, europeias medievais, quer japonesas, indianas, persas, africanas, e, claro, coreanas.  Deveremos ler cada frase, tão precisa na sua descrição, atendendo ao preciso objecto que se vê naquela vinheta? É a cabeça cortada de Jinseok, no sonho, idêntica à do busto romano, o ídolo africano, aquela macerada de uma pintura ou gravura? Porque escolhe relatar o entendimento do preciso momento em que a sua cabeça é cortada com um pormenor da famosa fotografia do inspector de polícia sul-vietnamita a executar com uma bala na cabeça um suspeito Viet Cong? Poderá entender-se esta história como uma espécie de alegoria sobre a guerra, à la The Bead Game, de Patel? Apesar de parecerem exercícios de inquirição ontológica dos meandros da humanidade contemporânea, Kim Hanjo trabalha numa abordagem sóbria, com uma figuração competente, sem grandes rasgos de espectacularidade. O modo como trabalha tramas e sombras densas, alternando com rostos por vezes incompletos, ou enquadramentos de grandes pormenores dos rostos (uma mão sobre a mesa, o esgar de um lábio, uma orelha atenta, um rosto descentrado), assim como cenas que focam nos espaços ou cantos dos espaços onde as personagens se movem (contribuindo para as chamadas transições de “aspecto a aspecto” de McCloud), levam a um ambiente de lentidão e de muita concentração sobre os diálogos e gestos entre as personagens. Ozu em papel.
Kim utiliza composições também elas sóbrias, regulares ou semi-regulares, muitas vezes com legendas partindo de uma voz sem corpo, ou do narrador no momento em que se distancia dos acontecimentos, providenciando uma gravitas marcante em todas as histórias. Por vezes, as vozes são de alguém totalmente desirmanado do corpo, como no caso do velho Lee Hyunbuk no momento da sua morte (na história que dá nome ao livro), ou do seu filho Jinseok enquanto sonha, ou quando este, ao beber umas cervejas com Ko Soo-kyung, passa a expor a biografia “oculta” dela, que atravessa não apenas a sua história pessoal mas também aquela colectiva da Coreia do Sul, nos conturbados anos 1970, pelo meio das demonstrações de estudantes, a repressão do regime, uma maior compreensão da máquina política e económica do mundo… É como se se comentasse que a “memória do corpo” apenas se assume quando dele se desliga, mesmo que momentaneamente, para se consciencializar do seu corpo, do seu contexto, do sem poder de ancoramento. De acordo com António Damásio, o Si pertence e diz respeito, a toda a linha, ao corpo, o que torna redundante falar-se de um Si ou de um Eu incorporado [embodied], pois não haverá outro. Por isso é significativo que o autor explore tão bem o modo como a voz se pode desincorporar dele nas suas bandas desenhadas, através do contraste das legendas de narração e imagens “desviadas”, para depois reequilibrar essa direcção com a atenção particular que presta a pormenores: esta personagem enrolando os cabelos com o dedo, aquela outra entregando-se aos prazeres do voyeurismo, ou elas todas comendo, bebendo, fumando, fazendo amor, masturbando-se…
A memória do corpo fica presa a cada um desses gestos e eles são centrais na apreciação dos momentos que os enquadram. Nascem deles, então, os simples mas tocantes relatos deste livro.

18 de julho de 2013

Anos Dourados. Marco Mendes (Mundo Fantasma)

Serve o presente post para indicar aos mais distraídos, que não acompanhem as notícias de outras plataformas (melhores em anúncios e divulgação), que se encontra em circulação o livro-catálogo dos desenhos à vista de Marco Mendes, alguns dos quais publicados no seu blog, Diário Rasgado, e que estiveram em exposição em Coimbra recentemente.
Este livro tem um design de Virgínia Valente, que inclusive redesenhou/reescreveu à mão um texto da nossa lavra, incutindo-lhe uma qualidade visual dinâmica e significante. Os nossos agradecimentos ao Marco pelo convite e a toda a equipa pelo trabalho.
Uma vez que o nosso texto vai até ao osso deste particular corpus do artista, não faremos aqui qualquer análise, mas ficam aqui apenas dois trechos.
"Estes desenhos parecem ser perceptíveis, inteligíveis. Mas uma obra de arte tem um segredo, ou melhor, ela tem a chave para dizer algo que até ali era indizível, pois só ela, dizendo-o, a torna dizível (nada disto tem a ver com uma assunção logocêntrica destes desenhos, sendo tão-somente o meu próprio esforço em traduzir aquilo que vejo).
Os desenhos de Marco Mendes retratam pessoas, a esmagadora maioria deles. Todos nós concordaremos com muitos dos elementos identificáveis nestes desenhos: um sofá, pessoas, o canto de um televisor, um cabo eléctrico atravessando o chão, objectos em torno. Onde está, todavia, o detalhe, aquilo que Mieke Bal disse ser «a contradição que rasga o trabalho, o elemento monstruoso que revela as falhas e as disparidades e que, por provocar assombro, oferece possibilidades infindas para a [sua] compreensão»?
Está no tempo e no olhar."
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"Uma das características do trabalho de Marco Mendes é a visibilidade da sua tarefa, a materialidade do processo, negando a ilusão da representação transparente. Se compreendêssemos aqueles rabiscos que fazemos num papel, meio-distraídos, ao telefone ou numa sala de aula, como num dos pólos de um espectro, e a lenta e aturada construção de uma banda desenhada no outro, estes desenhos encontrar-se-iam numa suspensão quase a meio, e onde ambas as forças deixam os seus traços, por um lado no aparente virtuosismo naturalista das figuras, por outro na qualidade de inacabado que as rodeia como um fumo. Mas essas marcas visíveis de inícios interrompidos, as rasuras, repassagens do lápis, os breves traços a caneta ou marcador, como primeiro passo ou apenas negação da brancura do papel, os balões de fala abortados, os rostos riscados, os apontamentos textuais e aqueles outros cobertos de riscos censórios, as marcas de água do papel que emergem da frottage, e até mesmo a assinatura e a data - mas repare-se como parece que todas essas linhas frenéticas incutem um qualquer movimento aos objectos circundantes, ancorando ainda mais os corpos na sua distensão inerte - não apenas aumentam o grau de materialidade dos desenhos como são signo háptico do autor, os pequenos gestos de aproximação, arautos da captura óptica."

16 de julho de 2013

Zines da Morta, sob o signo do sexo.


Uma vez que o evento Feira Laica terminou como tal, a Feira Morta herdou alguns dos seus elementos. Deixo à discussão de pessoas com maiores conhecimentos qual a transformação profunda, se bem que imaginemos que a Morta teve uma dimensão musical mais desenvolta, e que em termos comerciais – para os vendedores de publicações, zines, múltiplos, etc. – a situação não tenha melhorado. Não obstante essas limitações de organização e de público, aqueles que publicam edições independentes, sobretudo fanzines de ilustração e banda desenhada, ainda vêem este pequeno certame como um local ideal para fazer lançamentos. Passamos à discussão de algumas publicações lá encontradas, algumas das quais novas, outras que já estavam disponíveis anteriormente, outras a que não tínhamos tido acesso, etc. Avisa-se, claro, que existiam muitas outras publicações, mas não se puderam adquirir todas. Curiosamente, muitas delas versam de uma forma ou outra questões sexuais.

Lovebirds (The Human Ornament). Astromanta (Clube do Inferno). Comecemos pelas publicações do Círculo do Inferno, a que já havíamos feito menção, por ser uma plataforma informal de um punhado de artistas que criam fanzines a solo ou em colaboração entre si, mas que parecem criar um quadro de alguma consequência nessa mesma organização (tumblr). Depois de um zine exclusivamente dedicado a um riff sobre temas e figuras de uma certa mangá, em colaboração com Hetamoé, o autor vira-se para uma breve história “desviante”. Astromanta explora aqui uma certa virulência do sexo, em torno de relações homossexuais BDSM. A representação das personagens – uma personagem obesa e peluda, aparentemente pobre, a caminhar sobre paisagens urbanas desoladas, a utilizar transportes públicos, e o “homem-ornamento” jamais revelando o seu rosto sobre a máscara SM, e uma terceira mais “despachada” – cria um ambiente social algo negativo, o que poderá iluminar uma perspectiva desequilibrada sobre este universo. Não é clara a intriga, assim como não é clara a hipotética resolução. Sentimos que a personagem obesa se sente triste, ou culpada do acto, e que o “homem-ornamento” parece ser indiferente ao que lhe sucede ou à sina dos seus companheiros ou clientes ou usadores, preocupado talvez apenas com a sua satisfação comercial e divulgação mediática. Porém, tendo apenas 25 imagens (uma vinheta por página), estamos em crer que essa ambivalência é propositada na economia do pequeno livro, querendo antes criar um ambiente irresoluto e aberto. A atenção para com a forma (menor que A6, cantos exteriores arrendondados, papel de gramagem superior e rosa) é significativa, e dá um toque de romanticismo ou intimidade totalmente ausente na intriga, aumentando a ideia de comentário enviesado. Os desenhos recordam de alguma forma Pepe del rey, mas sem a mesma desenvoltura ou intensidade; há antes uma suficiente conquista do que se quer representar, mas sempre deixando uma película de low fi muito atinente ao objecto todo. 
Onahole. Hetamóe (Clube do Inferno). Este zine é mais clássico no seu formato de fotocópias A4 dobradas e agrafadas (na imagem inicial, no canto inferior esquerdo) e, no mesmo registo cru e gestual que o projecto anterior: imagens feitas a linhas espontâneas, tintagem com caneta, criação de texturas básicas com sujidades (corrector branco, grafite, tinta, toner?), com figuras parciais apenas revelando as partes do corpo necessárias à intriga minimal, e com uma composição simples mas evocativa (nalguns aspectos, recorda a abordagem de Aidan Koch, mas sem a mesma calmia poética, antes procurando um incómodo, nervoso trilho), cria desde logo um campo de referência de estilo mangá para mergulhar imediatamente na sua matéria. “Onahole” é o nome que se dá a um produto em silicone que serve para a masturbação masculina, uma espécie de vagina (ou ânus, ou outras versões mais complexas) e é o mote da publicação. Esta história oscila entre texto manuscrito em letras imensas ou dactilografado, acreditando que mima uma alteração na forma como uma mesma voz se dirige à hipotética protagonista ou então alterando as vozes dos participantes. E as imagens mostram flores, um cavalo numa floresta, um pénis intumescido, uma jovem rapariga com ar de adolescente mangá perdida e, numa cena, aparentemente em dor (possivelmente de uma penetração forçada ou dolorosa). Ainda mais dúbio que Lovebirds, também esta pequena narrativa cria uma ideia de alguma violência sexual, ainda que não seja decisiva qualquer leitura. Até certo ponto, o que se cria aqui é um espaço de indeterminação mas cujos elementos são suficientes para que se forme uma ideia dessa mesma violência sexual, e tentamos imaginar quem é o perpetrador e quem a vítima (se bem que pelos pesos sociais, não seja difícil adivinhar). Recorda um pouco a animação Lechapeau de Michèle Cournoyer, mas em que as transformações entre os objectos heteróclitos são apenas decifradas por intermédio do enigma criado na sequencialização das imagens, e a noção é mais indefinida. Se explorarmos a ideia de que estes objectos, os onahole, são apenas uma reificação absoluta e espectacular do corpo feminino, a violência está na sua própria existência e fabricação. Porém, a associação a flores e a repetição da palavra “growing” talvez queira apontar uma outra direcção: a da celebração da descoberta, sendo este um dos seus possíveis caminhos.
Radiation 1. Mao (Clube do Inferno) A associação deste fanzine à ideia de sexo talvez seja mais dúbia e frágil. No entanto, arriscamo-nos a encontrar nos interesses do autor, provindos da publicação anterior, aspectos de uma biologia alienígena de onde flui a compreensão de que o sexo é, para além de uma excelente forma de reprodução que leva à diferenciação dos espécimes, divertido. Até que ponto estará Mao aqui sob o signo de um projecto como Bleu, de Trondheim? Também esse outro projecto parecia explorar a ideia de uma banda desenhada abstracta com criaturas minimalmente construídas (manchas de cor, no caso do autor francês). Esta banda desenhada não apresenta qualquer cenário ou elementos ancoradores, mas o tipo de composição “retórico” e judicioso incute um decidido desígnio de significado: a partir de uma estrutura rectilínea (biopolímeros?, aminoácidos?, que sabemos nós?) surge uma célula (?), que se multiplica e diferencia, até se formar numa espécie de organismo, que parece absorver outro idêntico para se transformar, para daí vermos uma dança entre formas ou criaturas diferentes num sistema ecológico abstruso. As formas diferenciadas nascem de uma hipotética radiação, de uma mutação causada externamente, ou dos encontros (que imaginamos sexuais) entre si? Estaremos de facto a testemunhar funções biológicas, desde a alimentação a simbioses e parasitismos a reprodução, morte e algum tipo e organização social? Ou simplesmente um delírio de formas de linhas sobre papel? A numeração deste zine faz-nos imaginar uma continuação que nos poderá ajudar a decidir, mas não há dúvida de que se faz aqui uma celebração do vivo, terminando numa apoteose de formas orgânicas, organizadas numa sinfonia visual.
9:2:5. André Pereira (Clube do Inferno) O último zine deste colectivo informal não toca no mesmo tema. Bem pelo contrário, foca numa realidade muito comezinha dos nossos dias e lugares. Um primeiro factor que interessa salientar é o facto de que todas as páginas, de capa a capa, apresenta uma grelha regular esquadrinhada de 4 por 4 vinhetas rectangulares, com algumas excepções onde uma série de vinhetas se funde numa maior (quase sempre horizontal). Além disso, mesmo durante a diegese central, o autor não as preenche a todas, criando uma velocidade arrítmica, e causando transições problemáticas mas cheias de significado - para além de pausa, criam um espaço de reflexão e distanciamento entre as “partes”. Pelo contrário, porém, o autor não se coíbe de fazer variar a distância entre a perspectiva e as personagens, usando desde focalizações distantes e panorâmicas a dramáticas aproximações. Podemos dizer que 9:2:5 é uma obra autobiográfica, se bem que esta informação exige alguma informação extratextual e quase biografista. Talvez o único dado relativamente público seja o de que André Pereira se encontra a trabalhar (desenho) num dos livros que compõe a grande saga de Super Pig, a personagem de Mário Freitas, editada pela Kingpin, e essa produção seja matéria no fanzine. A partir daí, poderemos acreditar no “efeito de realidade” sobre as outras informações aqui exploradas. No entanto, o autor não parte de um registo naturalista: à la Warren Craghead, por exemplo, ele cria espaços apenas usando pormenores deles, sendo suficientes para criar a ideia de amplitude, distância ente objectos ou relacionamento deles com os protagonistas; não se coíbe de empregar efeitos fantásticos ou “típicos” da banda desenhada de humor para dar conta de comportamentos banais humanos, desde perscrutar uma bancada cheia de livros a jogar no computador (League of Legends, pelo aspecto da coisa e o linguajar à volta), mas acima de tudo utiliza estratégias de repetição do posicionamento dos corpos e das focalizações para dar conta de um aborrecimento tremendo. Podemos dizer que não se passa nada em 9:2:5 mas essa é mesmo a importância crítica do zine, é que, por um lado, por mais que nos esforcemos – e esse esforço pode parecer quase invisível e “slacker”, mas a ironia é que as pontas daquele que existe estão lá de facto - não se passa nada, e, por outro, no não se passar nada poderá passar-se alguma coisa digna de observação e, claro está, e eis a prova, de transformação em matéria de banda desenhada.
Basket666 e Italian Chocolate. Daniela Viçoso (auto-edição). Estes dois fanzines são antes dois doujinshis, isto é, “fanzines” em japonês, uma vez que participam da cultura à escala global mangá. Uma vez que já tecemos considerações breves e superficiais sobre o papel da mangá fora do Japão, e o peso que tem na economia dos contextos nacionais e o valor que assume junto ao seu público imediato, tudo questões analisadas por sociólogos ou outros investigadores, lancemo-nos directamente à leitura das duas publicações. De acordo com as informações acessíveis (blog, tumblr da artista, e outro), estas parecem ser as primeiras publicações de Daniela Viçoso, sendo a primeira uma colaboração com Catarina João [ver secção dos comentários]. No seguimento do que dissemos a propósito de TheHeart of Thomas, estes dois zines, que têm histórias completas no seu interior, inscrevem-se ambos naquele género sobre amores entre rapazes, se bem que Basket666 não implique directamente um relacionamento entre Ega e Baltazar e o segundo revela uma abordagem pornográfica, explícita, mas totalmente integrada na relação entre os protagonistas, e não de uma forma titilante e gratuita. Basket666 está em português e é cómico, sobre dois rapazes que desejam inscrever-se num torneio de basquetebol escolar, mas não têm equipa e se vêem forçados a recorrer a ajudas sobrenaturais, fazendo-os tombar numa situação bicuda. Podemos imaginar que a história continuará, mas ao mesmo tempo também há razões para crer que é uma história singular entre personagens que poderão regressar noutro contexto, tendo em conta a forma como elas são desenvolvidas e apresentadas em vários desenhos no tumblr referido. O segundo zine tem como título completo italian chocolate/pizza & marshmallow/windy nights e é em inglês e é mais sério, e romântico. Seguimos aqui a história de dois japoneses, um aparentemente treinador de futebol, o outro jogador. Estas informações diegéticas nunca são claras nem directamente expostas, tal como a backstory, apesar de existirem sempre referências a um contexto maior, aumentando assim a sensação de que se tratará de um universo desenvolvido e ao qual apenas temos um acesso parcial mas, mais uma vez, se nos permite imaginar que voltaremos a ele em gestos posteriores. Seguimos aqui uma tarde em que os dois se reúnem, e caem nos braços um do outro. O foco é totalmente a dança emocional entre as duas personagens, o seu encontro e a forma como continuam a construir a relação, no pleno coração do género yaoi. Se não estivermos em erro ao identificar Daniela Viçoso como a artista de ambos os títulos, seguem-se estratégias similares. Uma composição sóbria e retórica, com algumas estruturas montadas em linhas diagonais e vinhetas concentrando-se em gestos, sobretudo íntimos, de toques e olhares. A artista é cultora de uma figuração plástica, estilizada, um equilíbrio entre o arredondado e o anatómico, respeitando o espectro do shoujo mangá, mas em alguns aspectos mais próximo do ratio do shonen [de novo, ver secção de comentários]. No entanto, emprega um traço mais fluido e nervoso, que garante um charme particular às suas figuras, uma maleabilidade que lhe permite ora empregar técnicas de distorção e simplificação para efeito cómico, como uma maior modelação para expressar emoções. A autora é particularmente feliz na representação de gestos, posições e interacções físicas entre as personagens, fruto de uma compreensão da anatomia dinâmica para o desenho narrativo. Apesar das várias formas como criticámos a mangá feita em Portugal, que as mais das vezes se entregam a meros exercícios de imitação e derivações desinspiradas, encontramos aqui, apesar de se inscrever cabalmente nessas categorias, matéria seguramente a seguir de autoras capazes de evocar verdadeiras personalidades e relações que soam a vivas.
Nota final: ainda adquirimos um livrito de Amanda Baeza da colecção mini kuš! (mostramos a capa na imagem inicial), mas falaremos dele numa ocasião futuro, e de modo mais desenvolto.

12 de julho de 2013

A Drunken Dream and Other Stories e The Heart of Thomas. Moto Hagio (Fantagraphics)

De acordo com várias notícias, estes dois volumes farão parte de uma suposta colecção de banda desenhada japonesa da Fantagraphics, sob a responsabilidade de Matt Thorn (enquanto editor da colecção, tradutor, etc.). De facto, o primeiro volume, antológico, de histórias curtas de Moto Hagio, A Drunken Dream and Other Stories, abriu essa mesma colecção, e o novo volume The Heart of Thomas é um claro desejo de continuidade e coesão. Dado o trabalho de Thorn, e o outro volume da “linha”, Wandering Son, de Shimura Takako, esta colecção pretende, a um só tempo, complementar e expandir a oferta já existente de traduções nos Estados Unidos, garantidas por plataformas tão diversas como a Viz Media ou a Vertical Inc. – que publicam muitos dos títulos de maior sucesso comercial – e a Drawn & Quarterly – que tem publicado muitas obras fundamentais da gekigá. Mais, a Fantagraphics, através do seu The Comics Journal, editara em 2005 um número especial com um dossier dedicado a esta produção (no. 269). Estamos aqui a falar menos de banda desenhada de acção, infanto-juvenil, sobretudo para um público masculino, e passível de um modo claro a adaptações a séries de animação de grande difusão (se bem que tenham adaptações, de animação, cinematográficas, teatrais e novelísticas), e mais de títulos de alguma sofisticação social, abertos à exploração das emoções e experiências humanas mundanas mas profundas, a variedade da sexualidade, e perspectivas femininas. Numa palavra, o complexo mundo da shoju mangá.
Existe uma contínua mitificação sobre a origem dos géneros de banda desenhada no Japão, colocando nas mãos de Tezuka a responsabilidade quase única de invenção. Em relação à banda desenhada japonesa dirigida às mulheres, ou shoju mangá, não bastará identificá-la como aquela que tem personagens principais femininas, mas antes identificar outros elementos e, acima de tudo, compreender o seu circuito social. E esse descritivo não impede, claro está!, que não possam ser lidos e apreciados por um público masculino. Ainda assim, aceitando uma primeira abordagem generalista e básica, se podemos ver nos títulos de Tezuka do início dos anos 1950, acima de todos Ribon no Kishi/A Princesa e o Cavaleiro, um novo sopro de escopo, largueza e melodrama nas histórias envolvendo protagonistas femininas e uma atenção particular para com as emoções internas e românticas em detrimento da acção, a divisão de produção tendo em conta públicos masculinos e femininos já ocorria desde o início do século XX nas primeiras revistas, exclusivas ou parcialmente de banda desenhada. Sobretudo na década de 1950, surgem muitas aventuras dedicadas às jovens leitoras, envolvendo reinos míticos, bailarinas ou jovens abandonadas à sua sorte. De resto, algo de similar com o que ocorria no ocidente, sobretudo na Europa. A questão da sua consolidação nas décadas de 1950 e 1960 prendem-se sobretudo com os desenvolvimentos de mercados, redes de distribuição e venda, e alterações igualmente importantes no tecido social e cultura da sociedade japonesa da época (o surgimento da televisão, as novas exigências de uma verdadeira indústria da banda desenhada). Aliás, é precisamente por essas alterações culturais, nomeadamente o impacto do papel das mulheres japonesas, e o envolvimento de uma nova geração de autoras a trabalhar no círculo dos fanzines (dojinshi), que emergiria um movimento, do qual Moto fez parte, o “Grupo do Ano 24” (i.e., 1949), na companhia de outras autoras influentes como Keiko Takemiya (To Terra…) e Riyoko Ikeda (The Rose of Versailles), discutivelmente aquelas que compõem a tríade central do shojo moderno. Para se perceber a importância, Moto Hagio é muitas vezes – em imitação do modelo de Tezuka? - chamada de “a deusa da mangá feminina”. Na perspectiva de Matt Thorn, que estudou as várias facetas deste campo criativo (e estes dois livros contêm complementos que nos ajudam a compreendê-lo), a importância do contributo destas autoras foi terem transformado um campo usualmente infantil e de humor para uma plataforma de grande sofisticação narrativa e visual.
De facto, quando se pensa em “mangá para miúdas”, é provável que surjam referências mais imediatas àquelas obras mais infantis ou juvenis, com contornos de fantasia e magia, e de maior divulgação ou sucesso comercial, como Sailor Moon ou Fushigi Yugi ou os títulos do colectivo Clamp, e aí importaria regressar àquelas desinências e particularidades mais ou menos pertinentes como josei, radizu, etc. Todavia, fiquemo-nos por esta (paradoxalmente fraca e prática) divisão por sexos. Recordemo-nos de que a ideia de não haver uma marca sexual é um predicado precisamente da perspectiva de uma hegemonia masculina. A ideia de que determinado texto é “feminino” leva-o a surgir como algo limitado, ao passo que o não-marcado é necessariamente “universal”. Daí que a leitura de filósofas como Butler ou Spivak contribuam para uma correcção necessária. Thorn, num dos seus ensaios mais iluminadores e necessários no seu site, fala precisamente dessa questão, no campo da representação “étnica” das personagens de mangá. No campo da banda desenhada, e para mais a japonesa, é muito surpreendente que Hagio fale (na entrevista em Drunken Dream) da esmagadora maioria das histórias da Garo, ou as gekigá, como “histórias sobre angústia jovem a partir de uma perspectiva masculina” (pg. xviii), demonstrando que todos os textos ganham um “paladar” particular conforme o leitor ou leitora.
De alguma forma, a urgência em ter-se esta atenção particular é sublinhada pela ausência a qualquer referência à shojo mangá numa obra como aquela de divulgação de Thierry Groensteen, L'univers des mangasuma falta de tratamento específico em Mille ans de manga, de Koyama-Richard, e pior, no volume de divulgação Manga, da Taschen, mudam-lhe o sexo (nas versões espanhola e portuguesa, pelo menos). Pelo contrário, é preciso ser-se atento para com o facto de que a emergência deste tipo de produção foi, de acordo com Sharon Kinsella, também “um reflexo da consciência do poder e centralidade crescentes das mulheres jovens na sociedade, assim como um desejo de reagir contra a representação dessas mesmas mulheres enquanto infantilizadas, despidas e subordinadas” (Adult Manga, 122). 
Não se pode pensar, portanto, no shojo, de forma alguma, como se tratando de um campo uniforme, mesmo que se eliminem as dimensões da recepção. É apenas uma forma de empregar um denominador comum para uma grande variedade, sendo esse denominador tão incompleto como eventualmente iluminador. Nas histórias de Moto Hagio, não deixam de estar presentes certos princípios ou mesmo fórmulas típicas do género. As protagonistas são ora meninas ora adolescentes, existe sempre um grau de tragédia ou de objectivo inalcançável, temas como o amor maternal inexistente ou a ideia de uma dupla são recorrentes, tudo atravessa uma certa ideia de romantismo, a beleza encontra sempre um lugar proeminente, e as emoções ganham sempre direito de representação visual através de vários efeitos: de luz, de jogos de olhar, de intrusões da memória ou visões súbitas na tessitura das percepções do presente, as linhas de divisão das vinhetas incorrem em padrões que derrubam a mais ortodoxa das esquadrias, procuram-se representações intensas de corpos inteiros ou das expressões faciais, quase sempre dirigidas (de frente ou a 3/4) para o olhar do leitor, etc. Esses elementos, ou descritores, porém, não encerram uma definição, nem são suficientes nem necessários para a inscrição do género, que é mais circunstancial e derivado de regras de mercado do que de sinais intrínsecos e obrigatórios. Uma coisa é certa, toda a sua leitura pressupõe, desde logo da parte dos leitores (leitoras somente?, não nos parece), uma entrega profunda, entusiasta, empática e possivelmente catártica, com as personagens. Não no sentido mais banal de interesse pela fortuna das personagens, mas antes uma empatia, em que busca entrosar experiências pessoais nas das personagens, encontrando-se, se não pontos em comum, pelo menos inferências suficientes nessa direcção.
Nos Estados Unidos, ou em língua inglesa, podemos quase exagerar e dizer que foi graças aos esforços de Matt Thorn que o shoju mangá teve entrada, recordando-se a antologia Four Shoujo Stories, publicada pela Viz em 1996, mas que teve o infortúnio de ser imediatamente retirada de circulação, encontrando-se porém disponível na rede de scanlations e torrents. Ainda traduziu a famosa série (que confessamos nunca ter lido) Banana Fish, de Akimi Yoshida, e A – A’, outro título de Hagio. Aliás, não é apenas através das traduções que Thorn, antropólogo cultural, tem contribuído para a divulgação deste território, mas igualmente através de um número alargado de artigos e ensaios, todos eles disponíveis no seu já citado site, altamente recomendável. De certa forma, talvez possamos dizer que a “conquista” deste espaço editorial mais perene é uma (nova) recompensa do seu trabalho.
Como é costume na economia da banda desenhada do Japão, a esmagadora maioria destas histórias, inclusive Thomas, são a preto-e-branco, sendo reservados alguns jogos de uma segunda cor para os princípios de alguns capítulos do segundo projecto. A excepção encontra-se em “A Drunken Dream”, com segunda cor, rosa, e a “capa” de “Iguana Girl”, pintada em suaves aguarelas em torno de tons como amarelo limão, rosa esbatido, o fundo azul e outros apontamentos [mostramos a capa japonesa]…. No caso da edição da Fantagraphics de The Heart of Thomas, a segunda cor é o rosa, mas estamos em crer que as edições originais podem ter optado por outros esquemas, ou mesmo uma impressão a preto que deixava ver a suavidade das aguarelas. Para todos os efeitos, e tendo acesso à arte original da terceira página deste romance (no pleno sentido da palavra), podemos ver o modo como a autora procede através de aguadas, aguarelas, apontamentos específicos de cor, e colagem para criar (pelo parte d)as suas pranchas. Estas construções visuais e plásticas não são somente decorativas, se bem que uma certa perspectiva funcionalista (de que por vezes não somos capazes nós mesmos de nos libertar) possa levar a essa ideia. Thomas, por exemplo, neste volume, tem todas as partes – os episódios que originalmente terão sido publicados semana após semana na revista Shojo Comics – iniciadas com uma ilustração, quase um pin-up, com as várias personagens principais (Juli, Oskar, Erich. Thomas) em construções que não remetem para o universo diegético directo, mas antes para a mitologia antiga, com pequenos bacos ou espadachins gregos, representações cristãs de anjos, cenas mágicas ou fantasiosas, posições românticas, levando à ideia de que estamos perante criaturas andróginas, delicadas, angélicas, etéreas, reforçando a ideia que se encontra no centro da shoju mangá, que voltaremos a debater adiante. Além disso, são muitas as composições que tiram partido da ideia de duplo e de espelho, recordando mesmo os ícones ou arcanos das cartas, tema não apenas repetente na obra de Hagio como profundamente central em Thomas.Os enquadramentos genéricos podem encontrar-se para além da fantasia, e Moto parece ter predilecção pela ficção científica (“A Drunken Dream”, tal como “They Were Eleven” que havia surgido na antologia citada, são, para todos os efeitos, histórias cujos fundos são fc). Esses enquadramentos variados fazem mostrar como as estruturas de cenários, acontecimentos e elementos, formulaicos ou não, podem variar enquanto pasto para a exploração central da autora, que são as relações entre as personagens. Com efeito, o motor das histórias é usualmente interior. A introspecção, as memórias, as emoções, e não os conflitos, obstáculos ou acções externas que mais comummente dirigem a mangá mais convencional, “de rapazes”. Quanto existe uma rede complexa de personagens em conflito, como é o caso das várias irmãs ou filhas e mães, ou a constelação alargada de The Heart of Thomas, são conflitos emocionais, e não propriamente de fitos materiais ou de potência. E os contextos confinam sempre os dramas a uma esfera mais ou menos doméstica, interior, e se bem que, em A Drunken Dream, haja exemplos que desfaçam essa ideia, quer por se estender a uma aventura, para todos os efeitos, cósmica, quer por se construir – e eis o grande contributo da autora com as suas colegas para toda a banda desenhada em geral, no seu país – através dos elementos do Bildungsroman a diegese das suas obras maiores. É o caso de Thomas com o seu colégio interno.
As estruturas narrativas têm elementos comuns, igualmente. Por exemplo, é usual que existam passagens que desarrumam a organização temporal, ou a condensam, apesar de em termos visuais-estruturais vermos cenas lineares. Uma frase que é pronunciada, depois de bem consideradas as coisas, é entendida como tendo sido pronunciada depois da cena imediatamente anterior mas antes da imagem que vemos, levando assim a que haja, por um lado, uma progressão linear, e por outro uma brevíssima analepse em relação ao momento presente. Nada disso coloca em crise a leitura, mas torna mais endentadas as reacções e impactos emocionais, e adensa a influência dessas emoções sobre o ambiente. De resto, devemos ter sempre em atenção que, na obra de Hagio em geral, a ideia da narrativa encontra-se menos para a sua fabricação, para a centralidade de uma trama, de uma intriga, empolgante ou não, do que um fundo para que possa criar as suas complexas redes de ambientes emocionais, que induzem a sensações mais do que a um decisivo posicionamento dos leitores. Talvez se pudesse empregar o adjectivo “poético” neste caso, em toda a sua carga de evocação.
Algumas histórias são mais simples e apresentam arcos melodramáticos e patéticos (no pleno sentido da palavra), que não pretendem ou não alcançam um nível especular da realidade, mas antes uma emotividade exacerbada e distorcida, apenas com o intuito desse mesmo choque. Mas há outras que se ambientam numa maior ambiguidade que as tornam mais memoráveis, como é o caso de “Hanshin: Half-God”, sobre, pelo menos na superfície, duas irmãs siamesas que de tão diversas entre si se acabam por confundir na sua existência fantasmática e dupla. “Na superfície”, dizemos, pois a sua leitura, mesmo que básica, impedirá uma tal segurança nessa decisão, já que a ambiguidade que Hagio propõe não se encontra somente na interacção emocional entre as irmãs ou estas e as restantes pessoas da família alargada, mas atinge mesmo o cerne do fundo existencial das protagonistas. O que emerge em “Hanshin” é antes uma indescernibilidade entre duas faces - uma irmã, Yudi, inteligente, brilhante mas feia, e Yuci, quase o protótipo da belíssima princesa “oca” - que tanto poderão ser vistas como os proverbiais lados opostos de uma moeda como imagens especulares e complementares de uma só ideia. Podemos entender esta brevíssima história (tem apenas 15 páginas) como uma profunda exploração sobre os papéis usualmente reservados e dicotomizados às mulheres na banda desenhada japonesa e, por extensão, na sua (e outras) sociedade: bela e burra ou inteligente e feia, como se os factores da beleza física, espartilhada ou não por princípios externos, e a inteligência, também ela pautada por bitolas preestabelecidas, pudessem servir de ponto de comparação directo e, logo, fossem “conteúdos” exclusivos e incompatíveis num mesmo “continente”. Mas “Hashin” vai ainda mais longe, uma vez que pode ser lido ainda como uma percepção que emerge no interior de uma (mesma?) pessoa por nascer de modelos contra os quais toda e qualquer mulher é comparada desde cedo, como se fossem caminhos exclusivos a escolher. A ideia de alma dupla, ou a de uma alma interna que se tem de manter para sobreviver noutro ponto, são parte da matéria explorada. Se bem que em termos temáticos se pudesse ainda aproximar “Hanshin” de outras histórias no interior da antologia, nomeadamente no que diz respeito ao amor inexistente da parte das mães (que na entrevista Thorn se arrisca a explorar biograficamente, e Hagio quase confessa sê-lo), esta é a história menos melodramática mas a mais chocante, já que o gesto “homicida”, “suicida” ou “de misericórdia” (conforme a opção de perspectiva dos leitores, que também as pode assumir a todas paradoxalmente) parte do interior do si-mesmo - de Yudi, e não de factores externos (há uma doença, é verdade, mas essa é a desculpa ex machina para permitir esse mesmo gesto).As outras histórias são diversas. Apesar de trágico a vários níveis, “Marié, Ten Years Later” segue antes uma personagem masculina, e o mesmo poderá ser dito de “Autumn Journey”. “The Willow Tree” é uma curtíssima história quase experimental (lê-la contra uma história e duas páginas, “La Orilla”, de Federico del Barrio, seria desde logo muito produtivo), extremamente comovedora, e na sua simplicidade belíssima. Existem ainda factores de humor, de ficção científica e/ou fantástico, de fantasia, um pouco por cada um dos pequenos relatos. Em termos visuais, uma vez que o volume de A Drunken Dream está organizado cronologicamente, com histórias desde 1977 a 2008, é natural que encontremos tantas linhas de continuidade como de transformações internas, notórios não apenas nas explorações a nível da figuração nas primeiras histórias, como se a autora estivesse à procura da sua voz própria ainda, como a nível da composição, que se vai arriscando cada vez mais, como em termos de escopo e de matéria cultural das narrativas (referências a elementos culturais nacionais e internacionais, quadros sociais cada vez mais complexos, backstories paulatinamente mais densas das protagonistas, etc.), e até mesmo “tamanho” das histórias. Encontramos nesse volume talvez uma aprendizagem e um trabalho no interior de géneros estabelecidos, pequenos gestos diferenciadores, até desembocarmos na obra maior The Heart of Thomas, com mais de 450 páginas.
Toma no shinzou foi publicado em episódios em 1974, e, em conjunto com outros títulos, tornar-se-ia numa das referências basilares para todo o shoju mangá vindouro (leia-se a introdução de Thorn para dados e passos concretos). Teve uma edição em três tankonbon, e, mais tarde, num só volume luxuoso, assim como o seu “universo” seria revistado numa curta história ilustrada, cujo título é “By the lake” (disponível nos circuitos das scanlations), e uma novela, e foi ainda adaptado a vários meios, o que demonstra a sua resiliência ao tempo, e a importância do seu papel. Nas específicas subdivisões dos géneros da mangá, esta obra inscrever-se-á no que se chama shonen ai, literalmente “amor de rapazes”. Supostamente a expressão foi cunhada por uma das colegas de Moto, Takemiya Keiko, com a sua obra Kaze to ki no uta, ou A canção do vento e das árvores, de 1976. De uma forma sucinta, trata-se de uma criação textual no qual se explora a paixão e romance entre dois homens, mas que terá menos a ver com a homossexualidade propriamente dita, inclusive como ela é vivida no Japão, do que uma estrutura que desvia a tensão sexual que existiria num casal heterossexual para uma dimensão mais romântica, de obstáculos quase intransponíveis que exacerbam as paixões. É importante notar que sociologicamente este subgénero é sobretudo criado por mulheres para leitoras, e a sua importância e uso cultural já foi discutida muitas vezes por investigadores e académicos, não sendo Thorn o único (p. ex., veja-se o artigo de Kristy L. Valenti no TCJ 269 citado). De acordo com Toshihiko Sagawa, editor da June, revista especializa neste campo (citado em Dreamland Japan, de F. L. Schodt), este emprego é idealizado, simbólico, permitindo que se explorem as relações entre personagens subtraindo aquelas características femininas que são vistas como negativas pelas próprias japonesas, e abrindo às acções mais “livres” dos homens naquela sociedade. De forma clara, Sagawa afirma: “à primeira vista, estas personagens são homens homossexuais, mas na realidade são uma manifestação das mulheres; são como jovens mulheres vestidas de personagens”. Lendo a entrevista de Hagio, sobre as razões pelas quais resolveu alterar a ideia original de um grupo de raparigas para um de rapazes (de acordo com o seu modelo cinematográfico, Les amitiés particulières de Delannoy), apercebemo-nos do nível e valia dessa opção de, digamos, deslocalização do sexo.
Todos estamos familiarizados com a expressão “triângulo amoroso”. Compreendemos mesmo que corresponderá, por vezes, a relações reais e a estruturas de relações reais. The Heart of Thomas apresenta não um triângulo mas um complexo diagrama, porque móvel e fantasmático, amoroso. Hagio repete a ideia de triângulo nas suas histórias curtas em A Drunken Dream (sobretudo com irmãs, imagens especulares, e mães), mas as figuras em Thomas desdobram-se: temos o jovem suicida Thomas, que para todos os efeitos parece ter-se lançado no vazio num gesto romântico (à Werther, precisamente) por amor a Juli; Juli, o “prefeito” do colégio de Schlotterbach, austero e aparentemente frio, indiferente aos galanteios de todos, mas que herda uma dor com a morte de Thomas (e tem mais história de sofrimentos); Oskar, o seu companheiro de quarto, e ao mesmo tempo espécie de amante sempre em promessa, um arrebatador e apaixonado jovem, desejado por uns, mas sem objecto de amor ele mesmo; Erich, o recém-chegado, sósia de Thomas, a que todos obrigam “mimar”, mas sendo o seu interesse somente negar essa semelhança e querer regressar à sua mãe, Marie, seu ídolo amoroso; Ante, antigo companheiro de Thomas, jogador no “xadrez amoroso”, e que apesar se ser o eternamente afastado, tem o seu papel e peso; e depois todos os outros estudantes do colégio, que mostram variados graus de desejo pelas pessoas de Thomas, Juli, Oskar e Erich. A existência de um centro de gravidade desloca-se sistematicamente entre Juli e Erich, mas estão a lançar-se linhas a todo o momento quer para os passados ou interiores de todas essas personagens, vislumbram-se as relações “externas” para além do pequeno diagrama, permite-se escutar opiniões de terceiros (professores e familiares) para que se expanda a intriga... E cada novo passo, essa mesma intriga re-equilibra-se, desequilibra-se e volta a equilibrar todas estas peças. Estamos perante um complexo novelo narrativo, em que as relações amorosas são o centro, estamos perante um verdadeiro romance. Ainda que na linguagem afecta à mangá exista mesmo a expressão “polígono amoroso”, parece-nos que ela aponta para efeitos cómicos, ao passo que neste caso estamos face a uma estrutura complexa, séria e profunda.
Será importante notar que Thomas não é uma oba pós-moderna, mas bem pelo contrário se encontra num momento de passagem da forma como se tratam e exploram as personagens. Se bem que todos os protagonistas apresentam brechas nas suas pessoas pelas introspecções que fazem dos seus seres e emoções – Juli repetindo a ideia de “ter perdido as asas de anjo”, Erich que aposta tudo no seu amor por Marie, Thomas na sua existência fantasmática, etc. -, elas ainda assim apresentam-se como seres compostos e coerentes neles mesmos, e estão em crer que as relações que procuram uns com os outros os farão retornar a um estado completo e prístino. Se esse fito é ou não conseguido, pouco importa, pois mesmo na economia da narrativa o que se alcança não é o questionamento ontológico do si mas antes uma tragédia, que deve ser entendida na sua segurança de género: triste, desgraçada, é certo, mas coesa. 
Aquela qualidade etérea a que aventámos acima, quando falámos das “lâminas” que ilustram o início dos capítulos está presente em toda a narrativa, mas há momentos em que ela é exacerbada. Recordemo-nos de resto que grande parte da obra de Hagio, pelo menos no início, se dirigia a um público bastante jovem, e a sofisticação emocional não encontra o mesmo nível noutros termos, e muito menos em aspectos básicos, de realismo ou de choque. É contraditório ou estranho ao nosso olhar que uma história que envolve menores em enleios amorosos não possa ser visto como controverso, mas recordemo-nos de que estamos mais perante uma criação simbólica do que uma representação que se pretende verídica de amores ilícitos, ilegais. Não se trata de uma obra pedófila, ainda que os devaneios judiciais poderiam argumentar tal coisa. Falemos apenas de duas circunstâncias em que o etéreo é sublinhado. A primeira é relativa a Marie, a mãe de Erich: esta surge sempre nas memórias de Erich, e nunca no “presente diegético”, e em contraste com outras personagens nas mesmas circunstâncias, mesmo quando temos acesso às suas falas, estas nunca são apresentadas em balões de fala, mas antes noutro tipo de construções, colocando a voz dela numa espécie de fundo desprendido ou difundido em todo o ambiente. Isto aumenta a sua caracterização angélica, o que permite explorar o amor quase carnal de Erich pela mãe (mais uma vez, esta paixão do jovem menino pela sua mãe poderá parecer aos olhos incautos como um caso de desejo incestuoso, mas o que se pretende sublinhar é a entrega impessoal, quase pré-especular, de Erich). A segunda tem a ver com o enquadramento temporal da história. A primeira metade da obra passa-se quase exclusivamente entre as quatro paredes do colégio, Schlotterbach. Considerando os trajes, os laços dos homens, os objectos e os acontecimentos, poder-se-ia imaginar um intervalo temporal bastante alargado mas que se congelaria num século XIX tardio. A referência a Hermann Hesse já permite uma mais específica contextualização, mas quando Erich foge do colégio e obriga Juli a ir atrás dele, temos pela primeira vez um vislumbre a um mundo maior, e vamo-nos apercebendo que estaremos numa Alemanha (então) contemporânea, pela década de 1970 – pelos cabelos compridos dos jovens, os trajes dos homens, os carros, alguns equipamentos, outros pormenores. Mas essa “contemporaneidade” ou “efeito do real” apenas vem fortalecer a ideia de que o ambiente de Schlotterbach está de certa forma suspenso em relação à progressão da história. Mesmo os breves comentários da avó de Juli, que fazem despertar brevemente a sombra do racismo (e, por extensão, da história então recente e ainda por discutir abertamente, da Alemanha da 2ª Grande Guerra), são apenas uma incisão repentina, mas que não incute peso “histórico” sobre toda a intriga de amores interrompidos e trocados. De certa forma, poderíamos mesmo afirmar que todos estes policiamentos e territorializações absolutas – “pedofilia”, “incesto”, e até mesmo “homossexualidade” (livremo-nos de querermos criar seja que paridades forem, judiciais ou ontológicas, entre estas realidades!) – são filtros de aparências, inscrições sociais falsas (aos olhos daqueles que estão “fora” das regras de leitura do shonen ai), que impedem de fruir das desterritorializações que, no fundo, aqui operam.
Eis um signo possível de leitura da obra de Hagio: a deslocalização e desterritorialização que ela faz sobre as emoções, os afectos, os elos amorosos, de forma a torná-los, de novo, fulgentes, num veículo anódino apenas na aparência.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os livros.