Apenas uma leitura superficial “despachará” este projecto de Pedro Burgos, sem lhe tomar o pulso.
Este pequeno livro ou publicação é, a um só tempo, catálogo da exposição havida na
Mundo Fantasma assim como compilação das crónicas de uma página que Pedro
Burgos havia publicado no JA [Jornal Arquitectos], no seu ritmo
trimestral entre 2009 e 2012. Além dessas 12 crónicas, há uma extra, inédita.
No entanto, desde já consideraremos esta nova imagem como relativamente
exterior ao projecto central, por várias razões. Não apenas por não ter sido
publicada no JA, e ter sido pensada
para esta publicação, servindo-lhe de coda a vários níveis. Apesar do grau de
colaboração que terá havido entre o artista e a equipa editorial, de maneira a
seguir os temas de cada número do jornal, e a forma como responderia aos temas
então contemporâneos e “quentes”, esta crónica tem texto de Manuel
Graça Dias,
na sua qualidade de director do JA.
Não seria isso somente que a arrancaria da economia das restantes crónicas, mas
ela acaba por se pessoalizar em torno de uma personagem de um modo que não
ocorre nas restantes (mesmo tendo em conta que ela pode ser recorrente, se a
identificarmos como o arquitecto de “ser populista”), sendo a “piada” mais
ancorada nas circunstâncias do nosso tempo do que as restantes (se bem que
muitas das crónicas tenham referências enviesadas ou directas sobre “cenas da
época”), e com uma estrutura muito menos livre e fluida do que as restantes.
Essa separação, porém, não será mais do que um exercício de análise, já que
naturalmente será fruída na continuidade das outras.
O prefácio de Graça Dias é muito explícito nos pormenores dessa relação de trabalho, de ritmo, de resposta (corroborados pela inclusão de uma reprodução dos sketchs que caçam a ideia e estrutura em primeiríssima mão, ao lado da imagem publicada), já para não falar de outras informações sobre a vida do autor, que por vezes roçam o biografismo e o essencialismo entre as informações daí provenientes, tantas vezes repetidas. Por exemplo, Pedro Burgos é formado em arquitectura e (caso mais raro, devido ao, nas palavras do autor, “a grande gruta dos talentos perdidos”) trabalha como arquitecto, mas essa informação biográfica de pouco serviria ou servirá se não houvesse esta capacidade de transposição do seu gesto de moldação de espaços, formas, personagens em vivências legíveis nos seus cartoons, se assim os podemos chamar. Não há nada na formação académica e profissional de um arquitecto que o torne particularmente apto a esse gesto nem nada da banda desenhada que a torne melhor ecrã para temas ou formas de banda desenhada. Quando surgem casos de estudo que merecem uma atenção crítica particular – como aqueles casos que vão sendo estudados de modo sistemático por Renata Pascoal ou aqueles casos nevrálgicos como Building Stories, de Chris Ware, de que falaremos muito em breve – eles rasgam a vulgaridade desses encontros. É um arquitecto uma profissão que à partida o/a torna mais sensível à plenitude humana? Claro que não. Torná-lo-á mais propenso a um determinado grau de qualidade de conquista na fabricação da banda desenhada? Independentemente do número que se possa angariar de arquitectos na banda desenhada, esse “casamento” ou esses actos criativos são singulares, não expectáveis. Caso contrário, seria roubar ao(s) artista(s) a sua capacidade idiossincrática de conquistarem esse papel.
Além do mais, e um dos aspectos que importa sublinhar sobremaneira nestas 12 crónicas é que não há de forma alguma uma concentração nos aspectos objectuais da arquitectura, isto é, o isolamento dos edifícios ou das suas formas (trata-se de uma resposta ao acto da arquitectura bem distinto do de Blanciak), nem uma reificação quase absoluta dos estilos (à la Peeters-Schuiten). É importante notar que o autor opta por colocar como títulos de cada peça o verbo “ser” [se bem que, em rigor, esse título tenha sido dado a todo o número respectivo do JA, podendo ter partido a equipa da redacção], recordando a lição de Erich Fromm sobre a paulatina mas decisiva emergência do materialismo nas sociedades capitalistas avançadas, servindo então aqui, através do humor, da observação do quotidiano, português ou outro, de solução. Mesmo o nom de plume do autor reflecte essa tendência de vivência, e não tanto de reificação do objecto-edifício.
Podemos dizer que, em termos gerais, estas crónicas são sobre os obstáculos que o acto de arquitectura conhece. Imaginemos que nas mentes dos arquitectos o projecto é tudo, um mecanismo ideal de passagem do conceito ao objecto e sua implementação no espaço, mas que infelizmente tem de atravessar o atrito da realidade, sob a forma de clientes, orçamentos, materiais, barreiras legais, vontades de terceiros, recepção e coordenação com os vários círculos concêntricos de contextos.
Cada um deles é visitado pelas crónicas. Isto não significa que os arquitectos surjam como pessoas desinteressadas ou sacrossantas, e muitas vezes a sua soberba aparece retratada ou pelo menos relativizada de alguma forma nestas curtíssimas histórias (se é que lhes podemos incutir uma ideia de facto de narrativa, e não antes de retrato social em acção), como nos casos de “ser populista”, “ser pobre”, “ser crítico” ou mesmo “ser arquitecto” e “ser nada”. Por outro lado, tal como nas várias histórias que Burgos foi criando ao longo dos anos, de modo esparso, e pelas forças das circunstâncias dos projectos em que esteve envolvido, como as publicações que a Bedeteca de Lisboa coordenava com os transportes dessa cidade, ou o absurdamente esquecido e subapreciado À Esquina, com João Paulo Cotrim (uma dessas pequenas obras-primas que fica esquecida no meio do ruído criado por fãs mais vocais de tantas mediocridades), Burgos (de novo sublinhando o nome artístico?) dá uma atenção particular à cidade de Lisboa, incutindo-lhe uma pátina especial de observador da cidade, de colhedor de costumes, de retratista das suas facetas, à la Carlos Botelho (v. adiante). Isto é particularmente vincado na presença dos corvos antropomorfizados, na porteira tacanha para com as outras culturas que pintam Lisboa, na passagem de modelos à la Gehry que tão provincianamente quase picotaram a capital...Porém, acima talvez dos conteúdos temáticos e populados por personagens reconhecidas de forma óbvia ou simbólica, está a forma como Pedro Burgos compõe as suas pranchas, e essas soluções são uma das grandes vitórias do autor, e que o colocam num trajecto particular da nossa “cena”. Se nos permitirem o desvio, recordemos que algumas destas pranchas estiveram presentes na exposição Tinta nos Nervos, e colocadas de uma maneira pensada na sua possibilidade de diálogo. Do lado oposto da estrutura em que se integrava, portanto como que num diálogo contrastivo, ou complementar, ou gémeo, encontravam-se algumas das pranchas de Richard Câmara, outro arquitecto de formação, nomeadamente as do projecto ainda inédito Almedina (de que mostramos uma imagem) e as pranchas da exposição Estereotomias. No centro, precisamente lançando a ideia de uma hipotética raiz comum, ou modelo, ou gesto inaugural, alguns dos magistrais Ecos da Semana, de Carlos Botelho (ver imagem abaixo), pranchas fundamentais na história da banda desenhada ou ilustração ou cartoon (ou tudo isso) em Portugal. Para todos aqueles que viram, com olhos de ver, esta aproximação, entender-se-iam quase de imediato as suas afinidades. Uma construção livre de espaços e personagens numa única unidade visual, a não-estratificação dos vários episódios e/ou momentos em esquadrias rectilíneas mas a fundação de uma cartografia sinuosa de leitura, uma abordagem dinâmica dos protocolos de leitura mesmo, e uma concentração na emergência de uma espécie de objecto central, ao qual poderíamos mesmo chamar de “edifício”, isto é, uma verdadeira entidade singular, e não uma concatenação de elementos díspares e divisíveis. Um ser orgânico, um ser.
Nota final: agradecimentos à Mundo Fantasma, pela oferta da publicação.
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