Existe uma
contínua mitificação sobre a origem dos géneros de banda desenhada no Japão,
colocando nas mãos de Tezuka a responsabilidade quase única de invenção. Em
relação à banda desenhada japonesa dirigida às mulheres, ou shoju mangá,
não bastará identificá-la como aquela que tem personagens principais femininas,
mas antes identificar outros elementos e, acima de tudo, compreender o seu
circuito social. E esse descritivo não impede, claro está!, que não possam ser
lidos e apreciados por um público masculino. Ainda assim, aceitando uma
primeira abordagem generalista e básica, se podemos ver nos títulos de Tezuka
do início dos anos 1950, acima de todos Ribon no Kishi/A Princesa e o
Cavaleiro, um novo sopro de escopo, largueza e melodrama nas histórias
envolvendo protagonistas femininas e uma atenção particular para com as emoções
internas e românticas em detrimento da acção, a divisão de produção tendo em
conta públicos masculinos e femininos já ocorria desde o início do século XX
nas primeiras revistas, exclusivas ou parcialmente de banda desenhada.
Sobretudo na década de 1950, surgem muitas aventuras dedicadas às jovens
leitoras, envolvendo reinos míticos, bailarinas ou jovens abandonadas à sua
sorte. De resto, algo de similar com o que ocorria no ocidente, sobretudo na
Europa. A questão da sua consolidação nas décadas de 1950 e 1960 prendem-se
sobretudo com os desenvolvimentos de mercados, redes de distribuição e venda, e
alterações igualmente importantes no tecido social e cultura da sociedade
japonesa da época (o surgimento da televisão, as novas exigências de uma
verdadeira indústria da banda desenhada). Aliás, é precisamente por essas
alterações culturais, nomeadamente o impacto do papel das mulheres japonesas, e
o envolvimento de uma nova geração de autoras
a trabalhar no círculo dos fanzines (dojinshi), que emergiria um
movimento, do qual Moto fez parte, o “Grupo do Ano 24” (i.e., 1949), na
companhia de outras autoras influentes como Keiko Takemiya (To Terra…) e
Riyoko Ikeda (The Rose of Versailles), discutivelmente aquelas que
compõem a tríade central do shojo moderno. Para se perceber a
importância, Moto Hagio é muitas vezes – em imitação do modelo de Tezuka? -
chamada de “a deusa da mangá feminina”. Na perspectiva de Matt Thorn, que
estudou as várias facetas deste campo criativo (e estes dois livros contêm
complementos que nos ajudam a compreendê-lo), a importância do contributo
destas autoras foi terem transformado um campo usualmente infantil e de humor
para uma plataforma de grande sofisticação narrativa e visual.
De facto,
quando se pensa em “mangá para miúdas”, é provável que surjam referências mais
imediatas àquelas obras mais infantis ou juvenis, com contornos de fantasia e
magia, e de maior divulgação ou sucesso comercial, como Sailor Moon ou Fushigi
Yugi ou os títulos do colectivo Clamp, e aí importaria regressar
àquelas desinências e particularidades mais ou menos pertinentes como josei,
radizu, etc. Todavia, fiquemo-nos por esta (paradoxalmente fraca e
prática) divisão por sexos. Recordemo-nos de que a ideia de não haver uma marca
sexual é um predicado precisamente da perspectiva de uma hegemonia masculina. A
ideia de que determinado texto é “feminino” leva-o a surgir como algo limitado,
ao passo que o não-marcado é necessariamente “universal”. Daí que a leitura de filósofas
como Butler ou Spivak contribuam para uma correcção necessária. Thorn, num dos
seus ensaios mais iluminadores e necessários no seu site, fala precisamente dessa questão, no campo da representação “étnica”
das personagens de mangá. No campo da banda desenhada, e para mais a japonesa,
é muito surpreendente que Hagio fale (na entrevista em Drunken Dream) da esmagadora maioria das histórias da Garo,
ou as gekigá, como “histórias sobre angústia jovem a partir de uma perspectiva
masculina” (pg. xviii), demonstrando que todos os textos ganham um “paladar”
particular conforme o leitor ou leitora. De alguma forma, a urgência em ter-se esta atenção particular é sublinhada pela ausência a qualquer referência à shojo mangá numa obra como aquela de divulgação de Thierry Groensteen, L'univers des mangas, uma falta de tratamento específico em Mille ans de manga, de Koyama-Richard, e pior, no volume de divulgação Manga, da Taschen, mudam-lhe o sexo (nas versões espanhola e portuguesa, pelo menos). Pelo contrário, é preciso ser-se atento para com o facto de que a emergência deste tipo de produção foi, de acordo com Sharon Kinsella, também “um reflexo da consciência do poder e centralidade crescentes das mulheres jovens na sociedade, assim como um desejo de reagir contra a representação dessas mesmas mulheres enquanto infantilizadas, despidas e subordinadas” (Adult Manga, 122).
Não se pode pensar, portanto, no shojo, de forma alguma, como se tratando de um campo uniforme, mesmo que se eliminem as dimensões da recepção. É apenas uma forma de empregar um denominador comum para uma grande variedade, sendo esse denominador tão incompleto como eventualmente iluminador. Nas histórias de Moto Hagio, não deixam de estar presentes certos princípios ou mesmo fórmulas típicas do género. As protagonistas são ora meninas ora adolescentes, existe sempre um grau de tragédia ou de objectivo inalcançável, temas como o amor maternal inexistente ou a ideia de uma dupla são recorrentes, tudo atravessa uma certa ideia de romantismo, a beleza encontra sempre um lugar proeminente, e as emoções ganham sempre direito de representação visual através de vários efeitos: de luz, de jogos de olhar, de intrusões da memória ou visões súbitas na tessitura das percepções do presente, as linhas de divisão das vinhetas incorrem em padrões que derrubam a mais ortodoxa das esquadrias, procuram-se representações intensas de corpos inteiros ou das expressões faciais, quase sempre dirigidas (de frente ou a 3/4) para o olhar do leitor, etc. Esses elementos, ou descritores, porém, não encerram uma definição, nem são suficientes nem necessários para a inscrição do género, que é mais circunstancial e derivado de regras de mercado do que de sinais intrínsecos e obrigatórios. Uma coisa é certa, toda a sua leitura pressupõe, desde logo da parte dos leitores (leitoras somente?, não nos parece), uma entrega profunda, entusiasta, empática e possivelmente catártica, com as personagens. Não no sentido mais banal de interesse pela fortuna das personagens, mas antes uma empatia, em que busca entrosar experiências pessoais nas das personagens, encontrando-se, se não pontos em comum, pelo menos inferências suficientes nessa direcção.
Nos Estados Unidos, ou em língua inglesa, podemos quase exagerar e dizer que foi graças aos esforços de Matt Thorn que o shoju mangá teve entrada, recordando-se a antologia Four Shoujo Stories, publicada pela Viz em 1996, mas que teve o infortúnio de ser imediatamente retirada de circulação, encontrando-se porém disponível na rede de scanlations e torrents. Ainda traduziu a famosa série (que confessamos nunca ter lido) Banana Fish, de Akimi Yoshida, e A – A’, outro título de Hagio. Aliás, não é apenas através das traduções que Thorn, antropólogo cultural, tem contribuído para a divulgação deste território, mas igualmente através de um número alargado de artigos e ensaios, todos eles disponíveis no seu já citado site, altamente recomendável. De certa forma, talvez possamos dizer que a “conquista” deste espaço editorial mais perene é uma (nova) recompensa do seu trabalho.Como é costume na economia da banda desenhada do Japão, a esmagadora maioria destas histórias, inclusive Thomas, são a preto-e-branco, sendo reservados alguns jogos de uma segunda cor para os princípios de alguns capítulos do segundo projecto. A excepção encontra-se em “A Drunken Dream”, com segunda cor, rosa, e a “capa” de “Iguana Girl”, pintada em suaves aguarelas em torno de tons como amarelo limão, rosa esbatido, o fundo azul e outros apontamentos [mostramos a capa japonesa]…. No caso da edição da Fantagraphics de The Heart of Thomas, a segunda cor é o rosa, mas estamos em crer que as edições originais podem ter optado por outros esquemas, ou mesmo uma impressão a preto que deixava ver a suavidade das aguarelas. Para todos os efeitos, e tendo acesso à arte original da terceira página deste romance (no pleno sentido da palavra), podemos ver o modo como a autora procede através de aguadas, aguarelas, apontamentos específicos de cor, e colagem para criar (pelo parte d)as suas pranchas. Estas construções visuais e plásticas não são somente decorativas, se bem que uma certa perspectiva funcionalista (de que por vezes não somos capazes nós mesmos de nos libertar) possa levar a essa ideia. Thomas, por exemplo, neste volume, tem todas as partes – os episódios que originalmente terão sido publicados semana após semana na revista Shojo Comics – iniciadas com uma ilustração, quase um pin-up, com as várias personagens principais (Juli, Oskar, Erich. Thomas) em construções que não remetem para o universo diegético directo, mas antes para a mitologia antiga, com pequenos bacos ou espadachins gregos, representações cristãs de anjos, cenas mágicas ou fantasiosas, posições românticas, levando à ideia de que estamos perante criaturas andróginas, delicadas, angélicas, etéreas, reforçando a ideia que se encontra no centro da shoju mangá, que voltaremos a debater adiante. Além disso, são muitas as composições que tiram partido da ideia de duplo e de espelho, recordando mesmo os ícones ou arcanos das cartas, tema não apenas repetente na obra de Hagio como profundamente central em Thomas.Os enquadramentos genéricos podem encontrar-se para além da fantasia, e Moto parece ter predilecção pela ficção científica (“A Drunken Dream”, tal como “They Were Eleven” que havia surgido na antologia citada, são, para todos os efeitos, histórias cujos fundos são fc). Esses enquadramentos variados fazem mostrar como as estruturas de cenários, acontecimentos e elementos, formulaicos ou não, podem variar enquanto pasto para a exploração central da autora, que são as relações entre as personagens. Com efeito, o motor das histórias é usualmente interior. A introspecção, as memórias, as emoções, e não os conflitos, obstáculos ou acções externas que mais comummente dirigem a mangá mais convencional, “de rapazes”. Quanto existe uma rede complexa de personagens em conflito, como é o caso das várias irmãs ou filhas e mães, ou a constelação alargada de The Heart of Thomas, são conflitos emocionais, e não propriamente de fitos materiais ou de potência. E os contextos confinam sempre os dramas a uma esfera mais ou menos doméstica, interior, e se bem que, em A Drunken Dream, haja exemplos que desfaçam essa ideia, quer por se estender a uma aventura, para todos os efeitos, cósmica, quer por se construir – e eis o grande contributo da autora com as suas colegas para toda a banda desenhada em geral, no seu país – através dos elementos do Bildungsroman a diegese das suas obras maiores. É o caso de Thomas com o seu colégio interno.
As estruturas narrativas têm elementos comuns, igualmente. Por exemplo, é usual que existam passagens que desarrumam a organização temporal, ou a condensam, apesar de em termos visuais-estruturais vermos cenas lineares. Uma frase que é pronunciada, depois de bem consideradas as coisas, é entendida como tendo sido pronunciada depois da cena imediatamente anterior mas antes da imagem que vemos, levando assim a que haja, por um lado, uma progressão linear, e por outro uma brevíssima analepse em relação ao momento presente. Nada disso coloca em crise a leitura, mas torna mais endentadas as reacções e impactos emocionais, e adensa a influência dessas emoções sobre o ambiente. De resto, devemos ter sempre em atenção que, na obra de Hagio em geral, a ideia da narrativa encontra-se menos para a sua fabricação, para a centralidade de uma trama, de uma intriga, empolgante ou não, do que um fundo para que possa criar as suas complexas redes de ambientes emocionais, que induzem a sensações mais do que a um decisivo posicionamento dos leitores. Talvez se pudesse empregar o adjectivo “poético” neste caso, em toda a sua carga de evocação.
Algumas histórias são mais simples e apresentam arcos melodramáticos e patéticos (no pleno sentido da palavra), que não pretendem ou não alcançam um nível especular da realidade, mas antes uma emotividade exacerbada e distorcida, apenas com o intuito desse mesmo choque. Mas há outras que se ambientam numa maior ambiguidade que as tornam mais memoráveis, como é o caso de “Hanshin: Half-God”, sobre, pelo menos na superfície, duas irmãs siamesas que de tão diversas entre si se acabam por confundir na sua existência fantasmática e dupla. “Na superfície”, dizemos, pois a sua leitura, mesmo que básica, impedirá uma tal segurança nessa decisão, já que a ambiguidade que Hagio propõe não se encontra somente na interacção emocional entre as irmãs ou estas e as restantes pessoas da família alargada, mas atinge mesmo o cerne do fundo existencial das protagonistas. O que emerge em “Hanshin” é antes uma indescernibilidade entre duas faces - uma irmã, Yudi, inteligente, brilhante mas feia, e Yuci, quase o protótipo da belíssima princesa “oca” - que tanto poderão ser vistas como os proverbiais lados opostos de uma moeda como imagens especulares e complementares de uma só ideia. Podemos entender esta brevíssima história (tem apenas 15 páginas) como uma profunda exploração sobre os papéis usualmente reservados e dicotomizados às mulheres na banda desenhada japonesa e, por extensão, na sua (e outras) sociedade: bela e burra ou inteligente e feia, como se os factores da beleza física, espartilhada ou não por princípios externos, e a inteligência, também ela pautada por bitolas preestabelecidas, pudessem servir de ponto de comparação directo e, logo, fossem “conteúdos” exclusivos e incompatíveis num mesmo “continente”. Mas “Hashin” vai ainda mais longe, uma vez que pode ser lido ainda como uma percepção que emerge no interior de uma (mesma?) pessoa por nascer de modelos contra os quais toda e qualquer mulher é comparada desde cedo, como se fossem caminhos exclusivos a escolher. A ideia de alma dupla, ou a de uma alma interna que se tem de manter para sobreviver noutro ponto, são parte da matéria explorada. Se bem que em termos temáticos se pudesse ainda aproximar “Hanshin” de outras histórias no interior da antologia, nomeadamente no que diz respeito ao amor inexistente da parte das mães (que na entrevista Thorn se arrisca a explorar biograficamente, e Hagio quase confessa sê-lo), esta é a história menos melodramática mas a mais chocante, já que o gesto “homicida”, “suicida” ou “de misericórdia” (conforme a opção de perspectiva dos leitores, que também as pode assumir a todas paradoxalmente) parte do interior do si-mesmo - de Yudi, e não de factores externos (há uma doença, é verdade, mas essa é a desculpa ex machina para permitir esse mesmo gesto).As outras histórias são diversas. Apesar de trágico a vários níveis, “Marié, Ten Years Later” segue antes uma personagem masculina, e o mesmo poderá ser dito de “Autumn Journey”. “The Willow Tree” é uma curtíssima história quase experimental (lê-la contra uma história e duas páginas, “La Orilla”, de Federico del Barrio, seria desde logo muito produtivo), extremamente comovedora, e na sua simplicidade belíssima. Existem ainda factores de humor, de ficção científica e/ou fantástico, de fantasia, um pouco por cada um dos pequenos relatos. Em termos visuais, uma vez que o volume de A Drunken Dream está organizado cronologicamente, com histórias desde 1977 a 2008, é natural que encontremos tantas linhas de continuidade como de transformações internas, notórios não apenas nas explorações a nível da figuração nas primeiras histórias, como se a autora estivesse à procura da sua voz própria ainda, como a nível da composição, que se vai arriscando cada vez mais, como em termos de escopo e de matéria cultural das narrativas (referências a elementos culturais nacionais e internacionais, quadros sociais cada vez mais complexos, backstories paulatinamente mais densas das protagonistas, etc.), e até mesmo “tamanho” das histórias. Encontramos nesse volume talvez uma aprendizagem e um trabalho no interior de géneros estabelecidos, pequenos gestos diferenciadores, até desembocarmos na obra maior The Heart of Thomas, com mais de 450 páginas.
Toma no shinzou foi publicado em episódios em 1974, e, em conjunto com outros títulos, tornar-se-ia numa das referências basilares para todo o shoju mangá vindouro (leia-se a introdução de Thorn para dados e passos concretos). Teve uma edição em três tankonbon, e, mais tarde, num só volume luxuoso, assim como o seu “universo” seria revistado numa curta história ilustrada, cujo título é “By the lake” (disponível nos circuitos das scanlations), e uma novela, e foi ainda adaptado a vários meios, o que demonstra a sua resiliência ao tempo, e a importância do seu papel. Nas específicas subdivisões dos géneros da mangá, esta obra inscrever-se-á no que se chama shonen ai, literalmente “amor de rapazes”. Supostamente a expressão foi cunhada por uma das colegas de Moto, Takemiya Keiko, com a sua obra Kaze to ki no uta, ou A canção do vento e das árvores, de 1976. De uma forma sucinta, trata-se de uma criação textual no qual se explora a paixão e romance entre dois homens, mas que terá menos a ver com a homossexualidade propriamente dita, inclusive como ela é vivida no Japão, do que uma estrutura que desvia a tensão sexual que existiria num casal heterossexual para uma dimensão mais romântica, de obstáculos quase intransponíveis que exacerbam as paixões. É importante notar que sociologicamente este subgénero é sobretudo criado por mulheres para leitoras, e a sua importância e uso cultural já foi discutida muitas vezes por investigadores e académicos, não sendo Thorn o único (p. ex., veja-se o artigo de Kristy L. Valenti no TCJ 269 citado). De acordo com Toshihiko Sagawa, editor da June, revista especializa neste campo (citado em Dreamland Japan, de F. L. Schodt), este emprego é idealizado, simbólico, permitindo que se explorem as relações entre personagens subtraindo aquelas características femininas que são vistas como negativas pelas próprias japonesas, e abrindo às acções mais “livres” dos homens naquela sociedade. De forma clara, Sagawa afirma: “à primeira vista, estas personagens são homens homossexuais, mas na realidade são uma manifestação das mulheres; são como jovens mulheres vestidas de personagens”. Lendo a entrevista de Hagio, sobre as razões pelas quais resolveu alterar a ideia original de um grupo de raparigas para um de rapazes (de acordo com o seu modelo cinematográfico, Les amitiés particulières de Delannoy), apercebemo-nos do nível e valia dessa opção de, digamos, deslocalização do sexo.
Todos estamos familiarizados com a expressão “triângulo amoroso”. Compreendemos mesmo que corresponderá, por vezes, a relações reais e a estruturas de relações reais. The Heart of Thomas apresenta não um triângulo mas um complexo diagrama, porque móvel e fantasmático, amoroso. Hagio repete a ideia de triângulo nas suas histórias curtas em A Drunken Dream (sobretudo com irmãs, imagens especulares, e mães), mas as figuras em Thomas desdobram-se: temos o jovem suicida Thomas, que para todos os efeitos parece ter-se lançado no vazio num gesto romântico (à Werther, precisamente) por amor a Juli; Juli, o “prefeito” do colégio de Schlotterbach, austero e aparentemente frio, indiferente aos galanteios de todos, mas que herda uma dor com a morte de Thomas (e tem mais história de sofrimentos); Oskar, o seu companheiro de quarto, e ao mesmo tempo espécie de amante sempre em promessa, um arrebatador e apaixonado jovem, desejado por uns, mas sem objecto de amor ele mesmo; Erich, o recém-chegado, sósia de Thomas, a que todos obrigam “mimar”, mas sendo o seu interesse somente negar essa semelhança e querer regressar à sua mãe, Marie, seu ídolo amoroso; Ante, antigo companheiro de Thomas, jogador no “xadrez amoroso”, e que apesar se ser o eternamente afastado, tem o seu papel e peso; e depois todos os outros estudantes do colégio, que mostram variados graus de desejo pelas pessoas de Thomas, Juli, Oskar e Erich. A existência de um centro de gravidade desloca-se sistematicamente entre Juli e Erich, mas estão a lançar-se linhas a todo o momento quer para os passados ou interiores de todas essas personagens, vislumbram-se as relações “externas” para além do pequeno diagrama, permite-se escutar opiniões de terceiros (professores e familiares) para que se expanda a intriga... E cada novo passo, essa mesma intriga re-equilibra-se, desequilibra-se e volta a equilibrar todas estas peças. Estamos perante um complexo novelo narrativo, em que as relações amorosas são o centro, estamos perante um verdadeiro romance. Ainda que na linguagem afecta à mangá exista mesmo a expressão “polígono amoroso”, parece-nos que ela aponta para efeitos cómicos, ao passo que neste caso estamos face a uma estrutura complexa, séria e profunda.
Será importante notar que Thomas não é uma oba pós-moderna, mas bem pelo contrário se encontra num momento de passagem da forma como se tratam e exploram as personagens. Se bem que todos os protagonistas apresentam brechas nas suas pessoas pelas introspecções que fazem dos seus seres e emoções – Juli repetindo a ideia de “ter perdido as asas de anjo”, Erich que aposta tudo no seu amor por Marie, Thomas na sua existência fantasmática, etc. -, elas ainda assim apresentam-se como seres compostos e coerentes neles mesmos, e estão em crer que as relações que procuram uns com os outros os farão retornar a um estado completo e prístino. Se esse fito é ou não conseguido, pouco importa, pois mesmo na economia da narrativa o que se alcança não é o questionamento ontológico do si mas antes uma tragédia, que deve ser entendida na sua segurança de género: triste, desgraçada, é certo, mas coesa.
Aquela qualidade etérea a que aventámos acima, quando falámos das “lâminas” que ilustram o início dos capítulos está presente em toda a narrativa, mas há momentos em que ela é exacerbada. Recordemo-nos de resto que grande parte da obra de Hagio, pelo menos no início, se dirigia a um público bastante jovem, e a sofisticação emocional não encontra o mesmo nível noutros termos, e muito menos em aspectos básicos, de realismo ou de choque. É contraditório ou estranho ao nosso olhar que uma história que envolve menores em enleios amorosos não possa ser visto como controverso, mas recordemo-nos de que estamos mais perante uma criação simbólica do que uma representação que se pretende verídica de amores ilícitos, ilegais. Não se trata de uma obra pedófila, ainda que os devaneios judiciais poderiam argumentar tal coisa. Falemos apenas de duas circunstâncias em que o etéreo é sublinhado. A primeira é relativa a Marie, a mãe de Erich: esta surge sempre nas memórias de Erich, e nunca no “presente diegético”, e em contraste com outras personagens nas mesmas circunstâncias, mesmo quando temos acesso às suas falas, estas nunca são apresentadas em balões de fala, mas antes noutro tipo de construções, colocando a voz dela numa espécie de fundo desprendido ou difundido em todo o ambiente. Isto aumenta a sua caracterização angélica, o que permite explorar o amor quase carnal de Erich pela mãe (mais uma vez, esta paixão do jovem menino pela sua mãe poderá parecer aos olhos incautos como um caso de desejo incestuoso, mas o que se pretende sublinhar é a entrega impessoal, quase pré-especular, de Erich). A segunda tem a ver com o enquadramento temporal da história. A primeira metade da obra passa-se quase exclusivamente entre as quatro paredes do colégio, Schlotterbach. Considerando os trajes, os laços dos homens, os objectos e os acontecimentos, poder-se-ia imaginar um intervalo temporal bastante alargado mas que se congelaria num século XIX tardio. A referência a Hermann Hesse já permite uma mais específica contextualização, mas quando Erich foge do colégio e obriga Juli a ir atrás dele, temos pela primeira vez um vislumbre a um mundo maior, e vamo-nos apercebendo que estaremos numa Alemanha (então) contemporânea, pela década de 1970 – pelos cabelos compridos dos jovens, os trajes dos homens, os carros, alguns equipamentos, outros pormenores. Mas essa “contemporaneidade” ou “efeito do real” apenas vem fortalecer a ideia de que o ambiente de Schlotterbach está de certa forma suspenso em relação à progressão da história. Mesmo os breves comentários da avó de Juli, que fazem despertar brevemente a sombra do racismo (e, por extensão, da história então recente e ainda por discutir abertamente, da Alemanha da 2ª Grande Guerra), são apenas uma incisão repentina, mas que não incute peso “histórico” sobre toda a intriga de amores interrompidos e trocados. De certa forma, poderíamos mesmo afirmar que todos estes policiamentos e territorializações absolutas – “pedofilia”, “incesto”, e até mesmo “homossexualidade” (livremo-nos de querermos criar seja que paridades forem, judiciais ou ontológicas, entre estas realidades!) – são filtros de aparências, inscrições sociais falsas (aos olhos daqueles que estão “fora” das regras de leitura do shonen ai), que impedem de fruir das desterritorializações que, no fundo, aqui operam.
Eis um signo possível de leitura da obra de Hagio: a deslocalização e desterritorialização que ela faz sobre as emoções, os afectos, os elos amorosos, de forma a torná-los, de novo, fulgentes, num veículo anódino apenas na aparência.
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de ambos os livros.
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