31 de janeiro de 2014

The Book. A Global History. Michael F. Suarez, S.J., e H. R. Woudhuysen (Oxford)

Ao considerarmos a banda desenhada como uma arte do livro, uma das disciplinas que nasce com o advento do livro, ou mesmo considerando-a uma forma autónoma do livro mas que tem nele uma inflexão fulcral, o estudo deste meio (medium) é também central numa sua apreciação global. A consideração de um volume desta envergadura, num espaço como o nosso, não é portanto indevido. (Mais) 

29 de janeiro de 2014

Narrative Structure in Comics. Making Sense of Fragments. Barbara Postema (RIT Press)

Este livro pretende centrar-se num estudo sobre as várias estratégias de construção de significado a que a banda desenhada dá uso. Se bem que o próprio título e algumas das noções da sua matéria apontem um cerne, ele acaba por ser analisado de forma mais ou menos oblíqua. A ideia de que o sentido se cria nas elipses e/ou ausências, no espaço intervinhetal, no intervalo entre imagens, não é propriamente novo, tendo sido pensado de forma fantasmal em Töpffer, dando azo à discussão de cenas inactuais em Hergé (Haddock a cair das escadas do avião), e desembocando na “arte invisível” de McCloud, já para não falar nas várias teorias de transição, ontologia da elipse, etc. Enfim, tudo aquilo que se encaixará na noção de “inferência”, a qual, como se imagina, não é apenas aplicável ou transaccionável na banda desenhada, mas pertinente em… toda e qualquer actividade humana. (Mais) 

22 de janeiro de 2014

Arts Magazine. Hors-série: Art & Bd.

Na discussão sobre o livro de Conefrey, assim como tantos outros momentos neste blog, ou de outros trabalhos tentativamente desenvolvidos por nós, auscultaram-se os pontos de contacto verdadeiros entre a banda desenhada e outros círculos da produção de arte, mormente contemporânea, para além de uma mera questão de representações mútuas ou de diálogos “de má vontade”. (Mais) 

21 de janeiro de 2014

Os labirintos da água. Diniz Conefrey (Quarto de Jade)

Se queremos ver na banda desenhada uma arte, temos de entender ser-lhe própria uma natureza dada a deslocações e descontinuidades, intervalos e quedas, titubeações e balbuciamentos, renegações mesmo daquela que poderá ser vista como a “natureza natural” dos seus mais típicos objectos, e os elos mais contumazes entre as imagens e entre as palavras, e entra aquelas e estas. Se ela é arte, então está aberta a toda a espécie de pesquisas, sobretudo aquela que lhe alarga os contornos, e não somente à “mestria” da respeitabilidade de todos os caminhos já trilhados e confinados a uma beleza que satisfaz somente os hábitos empedernidos de um qualquer território. (Mais)

14 de janeiro de 2014

Vários títulos. Oliver Jeffers (Orfeu Negro)

Quando nos referimos num conjunto de livros anteriores à forma de ensinar a melancolia às crianças, um dos autores que prevíamos ter discutido de imediato era Oliver Jeffers. A sua produção tem sido particularmente intensa e coberta de sucesso comercial e crítico, e há igualmente esta facilidade entre os leitores portugueses, por se ter encontrado uma oportunidade para o trabalho sustentado e de excelente produção da Orfeu Negro, ou Orfeu Mini, melhor dizendo, que o tem eleito como “seu” autor predilecto. (Mais)

8 de janeiro de 2014

Cabaret Vicente, no São Luiz.

Para além da nossa actividade de crítica de banda desenhada e meios contíguos, temos várias outras funções, sendo uma das quais a da escrita literária, por vezes para outros meios que não a literatura propriamente dita. Neste caso presente, temos o prazer de anunciar a ópera Cabaret Vicente, de José Eduardo Rocha (compositor, mas também encenador, produtor, cenografista, etc.; o desenho do poster é dele), sendo esta a segunda vez que com ele colaboramos (a anterior havia sido A Conquista do Oeste, apresentada em 2010 em Torres Vedras), no papel de libretista e co-letrista.

Caso os leitores do Lerbd estejam interessados em projectos de ópera contemporânea, e com uma narrativa que mesclará aspectos míticos, históricos e também de bom humor, estão convidados desde já a assistir a uma das quatro sessões a apresentar no início de Fevereiro...

5 de janeiro de 2014

Optic Nerve no. 13. Adrian Tomine (Drawn & Quarterly)

Tal como Seth, ideia já debatida, Tomine é um autor que pretende “resistir” às “necessárias” transformações do mercado, mantendo o formato serial do seu título, e para mais, com o formato do comic book, ainda que numa periodicidade que arrasta esta palavra aos seus limites. Nesse sentido, a ideia de “alternativo”, que estes e outros autores fundaram, mantém-se ainda que com contornos diferentes. Uma diferença fundamental entre Seth e Tomine, porém, para além das formais e materiais, terá a ver com a abordagem às narrativas, que no primeiro autor tende a inclinar-se mais para a alongada narrativa de desenvolvimento, serena e paulatina, com várias camadas de tempo diegético e implicações com personagens secundárias, ao passo que Tomine tem uma predilecção por narrativas curtas, concentradas numa equação diminuta de personagens, e de estrutura episódica. Até certo ponto, Tomine está mais próximo das formas contemporâneas do acto de “contar histórias”, mantendo-se todavia no interior de uma sua construção natural.

O último número de ON apresenta – e talvez seja esta uma solução para estes formatos, em que não se podem esperar episódios menores que ficariam protelados em demasia no tempo – três histórias completas, cada uma das quais desenhada e estruturada num estilo distinto, como se Tomine desejasse demonstrar ser capaz de moldar os seus instrumentos gráficos, idiossincráticos, de uma forma suficientemente alargada para transmitir modos diferentes. Isto pois as alterações desses estilos não servem como “veículos” diferenciados para transmitir uma mesma coisa (um mesmo “conteúdo”), mas que acabam por moldar aquilo que é contado. São três histórias, mas uma apenas ocupa uma página, a segunda é substancialmente mais longa e segue princípios convencionais, e a terceira é curta, e parte de uma singular perspectiva interna da narradora. E uma das mais comoventes histórias curtas que nos foi dada a ler em algum tempo.

Poderemos de facto falar de uma primeira história na primeiríssima página da revista, visível de imediato uma vez que a “capa” é apenas uma parte daquilo que se esperaria. Essa primeira página é uma banda desenhada autobiográfica, ou melhor, de revelação da própria prática de trabalho e edição do autor, uma espécie de prólogo sobre as suas condições de trabalho, em que este mostra a tensão permanente em continuar a apostar neste formato físico e quase obsoleto, quando sente a pressão de todos os azimutes para abrir um blog, um tumblr, um tweet (ele tem um site) ou mesmo comprar um Cintiq, etc. Na verdade, Tomine não é de forma alguma um tecnófobo, e tem acesso a muitas dessas plataformas, simplesmente quer manter um certo fazer separado dessa realidade tecnológica na sua prática de banda desenhada, ou pelo menos, de Optic Nerve. Muitas das suas ilustrações para a New Yorker, por exemplo, demonstram que ele compreende parte das potencialidades expressivas e até emotivas proporcionadas por esses aparatos.

“Go Owls” é uma história que junta duas personagens, uma jovem mulher e um homem mais velho (tipo Lebowski, mas com um grama excessivo de fel), cada qual a mais perdida na sua vida sem rumo normativo, e que parecem cair no erro de pensar que aliarem-se numa relação é segurança. Construída em páginas que nascem de uma grelha regular de 3 x 4, com sub-divisões onde necessário, e uma paleta reduzida de segundas cores que apenas oscilam entre cenas de interior e exterior, nocturnas e diurnas, Tomine põe em prática aquilo que ele melhor domina, que são a forma como as personagens se aproximam ou se afastam através dos diálogos, com tudo o que isso implica. Isto é, ele não apenas tece com mestria os diálogos verbais, que são elípticos o suficiente para evitar exposições desnecessárias, mas operantes na medida em que se vão encaixando em significados cada vez mais matizados, mas também a expressividade dos corpos e rostos, em minúsculas reacções, e toda a panóplia da banda desenhada: focalização, perspectiva, planos, ângulos, etc. “Go Owls” também poderá recordar algumas das comédias dos Cohen, na medida em que exige da parte dos espectadores um certo grau de cinismo em relação às personagens – e não “simpatia” ou essa elusiva “identificação” -, as quais não são nem livres de pecado nem hediondas: são apenas néscias, talvez, para caírem no que parecem ser erros recorrentes, e nós vemos os elementos do desastre a acumular-se, mas tirando prazer também dessa inevitabilidade.   

O desenho de Tomine suavizou-se ao longo destes vinte anos, como não poderia deixar de ser, e estamos longe das linhas mais abstrusas e angulosas, de riscos nervosos, de 32 Stories. É como se Tomine tivesse absorvido ao longo dos anos uma aprendizagem não apenas própria, de pesquisa autónoma, como também se tivesse aproximado de territórios eles mesmos mais “suaves” em termos de género, como o do humor leve de revistas ou a banda desenhada para crianças. E isso encontra-se apurado na história seguinte.  

Esta tem apenas oito páginas (três em splash page, duas com duas vinhetas, outras duas com três e uma com quatro, portanto num total sumário de 18 vinhetas), com textos sob a forma de legendas, como se fizessem parte de uma hipotética carta. Aliás, a história começa mesmo antes da banda desenhada, numa ilustração separada, que parece reproduzir uma porção de uma página de caderno alinhado, onde se encontra texto escrito à mão em japonês. Daí que o hipotético título, “Translated, from the Japanese”, possa ao mesmo tempo ser visto como um instrumento epitextual, que construiria a ficção de que se trataria de um artefacto real transformado por Tomine. Pouco importa que essa distinção, através do termo proposto por Genette, seja artificial e abstracto: a sua assinalação analítica ajuda a compreender a estratégia de construção de significado. Essa abordagem (seja ela fictícia mas aceite pelo leitor, seja verdadeira, é indiferente) serve o propósito de sublinhar o impacto emocional a que o texto leva.

Esse texto parece ser uma carta escrita por uma mulher, japonesa, ao seu filho, que será agora um adulto, mas referindo-se a um momento da sua infância, precisamente o dia em que a mãe o trouxe do Japão para a Califórnia, onde se encontraria com o pai. Este último parece ser um norte-americano, e que teria uma outra família, após um possível divórcio com a japonesa Nada disto é claro, pois a carta é escrita com a típica urgência e intimidade que qualquer carta é escrita, e que dispensará informações contextualizantes, uma vez que as pessoas envolvidas nessa aliança epistolar estão desde logo “por dentro” do contexto. Somos nós, leitores externos, senão mesmo voyeurs, que temos de preencher todas as enormes lacunas dessa comunicação.  Uma das informações mais elusivas, por exemplo, é não compreendermos totalmente (ou falamos aqui na primeira pessoa somente, talvez?) se a ausência da mãe é simplesmente física, ou se significa a sua morte, o que pode trazer um outro tipo de gravidade ao que conta ao filho.

As imagens, porém, apesar de corresponderem de uma forma quase directa aos eventos da narrativa, formam uma camada subtilmente “desviada” e melancólica. Se a narrativa, na sua exposição de acções, fala de uma viagem desde o Japão por avião até à Califórnia, as imagens parecem representar de facto paisagens urbanas no Japão, o terminal do aeroporto, o interior do avião, o terminal na Califórnia, as ruas que levam ao diner e ao motel provisório. A primeira e última vinheta também funcionam como uma espécie de mini-narrativa interior, opondo uma paisagem da cidade de Tóquio à de São Francisco: as torres, respectivas, Sky Tree e Sutro são claríssimos sinais disso, mas existem outras oposições em jogo, desde a de cena diurna versus cena nocturna, movimento versus estase, neve versus tempo limpo, proximidade versus distância, mas igualmente jogando-se com elementos comuns. O arco que se pretende criar entre uma e outra dará a ideia de trânsito permanente, ou transitoriedade, o que não deixa de ser um tema premente da pequena narrativa.

Se podemos falar de algum propósito generalizado de Optic Nerve, ou até mesmo do autor, é a de que ele procura uma adequação o mais acentuada possível para atingir a legibilidade narrativa da sua produção. Isto é, ainda que não haja ausência de uma pesquisa atenta e cuidada no que diz respeito ao grafismo, composição, cor, etc., há um maior investimento na construção diegética, da personalidade que emerge através dos diálogos e acções, na forma quase realista, à la Cassavetes, que o autor investiga as relações humanas, e sobretudo todos aqueles pormenores de “falha de carácter” que trazem o sal à nossa existência. Mesmo que quase tudo desemboque em romances falhados, desilusões e separações. E tudo concorre para isso: o design calmo da revista, a composição tranquila, o desenho de representatividade nítida, a forma pausada como o texto é apresentado física e ritmicamente na página, etc. No caso de “Translated, from the Japanese”, na verdade, as imagens das vinhetas parecem mais próximas de um tipo de ilustração informativa ou publicitária do que de uma banda desenhada mais convencional e dinâmica. A perspectiva delas parece partir do olhar da mulher protagonista, ainda que a inscrição do corpo dela seja feita de um modo subtil, nunca demasiado visível (apenas vemos as suas mãos uma vez). Mas em vez de tornar essa estratégia numa desculpa para se lançar numa exploração dramática, ou mesmo melodramática (de modos diferentes Will Eisner, Bob Powell e Marco Mendes usaram esta técnica de perspectiva), Tomine emprega-a de modo a levar a dois fins, um psicológico e outro estético. Em relação ao primeiro, e aliado às palavras da mulher, que implicam uma separação do pai da criança, talvez mesmo um abandono da sua vida no Japão e depois da própria criança, emerge aqui uma ideia de não-confrontação, de “baixar o olhar”, digamos assim, mas que não terá a ver com passividade ou fraqueza, já que as palavras reflectem a combatividade e frontalidade assertiva da mulher. Será, de facto, uma estratégia no seu sentido bélico. Em termos estéticos, as imagens quase anulam o efeito “pessoal” ou “expressivo” das imagens. Jamais vemos rostos de frente ou pelo menos com pormenores suficientes para lhes retirar expressividade e emoção. Todos os corpos se deslocam como se lhes bastasse estarem ali para representarem iconicamente o que é necessário representar. Poderíamos quase imaginá-las como parte de um brochura da Muji, por exemplo (citamos a marca pois vemos um seu pequeno caderno na diegese). Nesse sentido, ela vem aliar-se a toda uma série de experiências que associam o seu estilo “industrial” à banda desenhada, desde aquela página única criada por F. Mouly na Raw a Get Your War On, de David Rees. No entanto aqui a “beleza” é assegurada pelo sentido apurado de equilíbrio e distribuição dos objectos na imagem, a cor subsumida mas legível, etc.


Apesar de se dizer usualmente que as imagens publicitárias são mais comunicação do que expressão (ou arte, que nada tem a ver com esses modelos comunicativos), na verdade parece que a aliança entre este estilo streamlined e a “ausência” de rostos poderá então estar a implicar uma espécie de negação de comunicabilidade, de expressividade, de emoção e até mesmo da possibilidade de encontro (e, portanto, menos ainda de “identificação”). Além disso, todas as paisagens apontam a uma ideia de estar tudo em trânsito, nenhuma delas indicativas de um espaço onde as personagens se fixariam de algum modo (um lar). É como se estivéssemos perante um cronótopo disfuncional, que prometesse encontro mas o negasse de imediato. Se o acesso aos rostos das personagens nos permite criar inferências sobre os seus estados emotivos, levando a uma reacção da nossa parte (e aqui pouco importa se o desenho dos artistas são minimalistas ou fotorealistas, estilizados ou expressivos, uma vez que há sempre uma expressão, cf. R. Töpffer-Gombrich), neste caso apenas temos acesso aos estados mentais da protagonista e das outras personagens com que ela se relaciona através das suas palavras. Há, então, em relação aos outros uma distância ainda maior, um grau adicional. Em suma, esta história não dá conta apenas de uma “tradução do japonês”, mas de vários encadeamentos de linhas de significado que se vão afastando, ainda que o nó que formem providencie ele mesmo um significado, que lemos. “Translated, from the Japanese” é, por estas razões, uma das melhores histórias que Tomine alguma vez nos ofertou.