Quando nos referimos num conjunto de livros anteriores à forma de ensinar a melancolia às crianças, um dos autores que prevíamos ter discutido de imediato era Oliver Jeffers. A sua produção tem sido particularmente intensa e coberta de sucesso comercial e crítico, e há igualmente esta facilidade entre os leitores portugueses, por se ter encontrado uma oportunidade para o trabalho sustentado e de excelente produção da Orfeu Negro, ou Orfeu Mini, melhor dizendo, que o tem eleito como “seu” autor predilecto. (Mais)
Os livros não têm sido publicados entre nós pela sua ordem cronológica original, mas esse não é um factor importante, se bem que se possa encontrar nessa mesma ordenação uma crescente procura por uma sofisticação cada vez maior, quer no que diz respeito às estruturas narrativas empregues quer às técnicas de elaboração das imagens, não sendo uma independente da outra.
Os livros Perdido e achado e Sobe e desce constituem um pequeno conjunto, uma vez que tratam das mesmas personagens, um menino e um pinguim. O primeiro livro estabelece não apenas as personagens, mas a relação entre ambos, que nasce de um pequeno mal-entendido e uma boa intenção do menino, para desembocar numa amizade e um elo difícil de destrinçar. Esse laço é o mesmo que unirá o rapaz com o alce (em Este alce é meu), ou a menina com o seu avô (de O coração e a garrafa), laços que não se desfazem seja pelo que for, e que têm tanto a ver com a força do hábito (se visto de uma forma displicente) como da absoluta naturalidade do se estar junto (se visto de um ponto de vista mais positivo).
Mesmo esses primeiros livros, mais primários na sua exploração narrativa, criam um ambiente que não é coberto de imediato por um tom alegre, jocoso, de brincadeira, mas antes pelo contrário é pautado por silêncios, desconfortos e uma espécie de inquirição interior construída por ambas as personagens, pelas relações entre eles. O autor irlandês não tem medo de confrontar os seus hipotéticos jovens leitores, que tanto podem ser “iniciados” como “ouvintes” do texto escrito, com um vocabulário mais elaborado (transformado sempre de forma simples e bela por Rui Lopes), situações complexas e emotivamente paradoxais, e estruturas imagéticas que merecem aqui e ali uma maior ponderação. No entanto, não se poderá considerar essa mesma confrontação como algo de negativo, mas bem pelo contrário como contribuições à educação cada vez mais aberta dos leitores.
Existe uma espécie de mal-entendido genérico de que as crianças devem ter tudo adaptado, exagerado através de processos caricaturais, ou que o mundo deve ser de alguma forma transformado à sua escala (o princípio vitoriano) ou a formas simplificadas (o princípio de design de mercado), e é possível que boa parte dessas decisões tenham a ver com uma cada vez maior responsabilidade, nas editoras, da parte dos especialistas de marketing em detrimento dos editores propriamente ditos, as pessoas formadas em literatura e artes. Por essa razão é que falámos, a propósito dos livros da Pato Lógico, de uma outra… lógica a operar nestas editoras menores mas mais conscientes da lição cultural que os livros constituem. Dependendo das crianças, dos pais, do ambiente social que habitam, elas terão maior ou menor acesso a um grau de diversidade do mundo, e isso vai contribuindo à “biblioteca” que terão acessível dos elementos que utilizarão tanto para decifrar os textos que encontram como para a criação dos seus próprios discursos. E aqui incluímos não apenas o texto no seu sentido verbal, mas igualmente visual. Ora os livros de autores como Jeffers são doses concentradas dessa abertura, ao contrário de projectos mais comerciais que utilizam ora personagens advindas de esferas transmediáticas (filmes de animação, séries de televisão) ora abordagens mais primárias, em que há um fito explicitamente pedagógico e informacional, e que escorrega em platitudes insuportáveis e bastas vezes normativas (“Vamos aprender a atravessar a estrada”, “Vamos reciclar”). Nessa óptica, seria necessário ensinar as criancinhas a não comer livros, que os órgãos não se podem guardar em garrafas, ou a explicar que na génese das estrelas-do-mar não se encontram resquícios de estrelas cadentes. Seja como for, os significados não existem de modo estático, não se encontram num estado imutável e singular; bem pelo contrário, eles são alvos de interpretações e usos contextuais diferentes. Todavia, estamos em crer que existem livros que estimulam precisamente essa potencialidade de diferença e ambiguidade, como os livros de Jeffers, em claro contraste com outros que pretendem “instalar” desde logo estruturas específicas e formuladas de sociabilização.
Se tomarmos em conta o “progresso” de Jeffers, o que é possível quase totalmente pelos livros traduzidos para português, verificar-se-á como o autor começou com um desenho extremamente simplificado, e de aguarelas muito delicadas, quase minimais, tirando o máximo partido dos comportamentos livres da tinta sobre os papéis texturados, um número controlado de pinceladas, e a inscrição das personagens ora em largas expansões de branco ou cores únicas em diferentes matizes, equilibradas por cenas mais compostas, de cenários mais complexos e pormenorizados. No entanto, vejam-se as guardas de Coração para ver outro registo do autor (afinal, ele é também pintor), conscientes da tradição inglesa (eduardiana), de que ele sai, mais pelo absurdo de Lear do que pela expressividade de um Ardizzone. São os casos dos livros do pinguim e de Estrela. Já os seguintes ganham maior sofisticação quer no delineamento dos corpos das personagens quer nos pormenores gráficos que ocupam as páginas, chegando-se mesmo a camadas multi-materiais, sendo o caso d’O incrível rapaz que comia livros o mais óbvio. No entanto, existem elementos recorrentes, como as páginas-unidades sem texto, que trazem uma pausa para a acção, sublinhando o seu impacto (com excepção de Incrível, reservada a uma conclusão), a delimitação nalguns pontos da mancha visual em estruturas próximas da banda desenhada, ora para marcar uma sequencialidade rápida ora uma tipologia de acções irmanáveis mas distintas, o tirar partido da dupla página para criar ambientes alargados que relativizam a posição e dimensão das personagens em relação ao mundo, frases quebradas que incitam ao virar da página ou a uma ligação entre cenas separadas por páginas. Jeffers tanto concentra a acção em momentos curtos, como no caso de Sobe e desce, como os estende ao longo de uma vida em Coração e garrafa, e tanto pode envolver um percurso longo em termos espaciais (Perdido e achado, Este alce é meu) como criar apenas uma constelação polarizada num ponto (Como apanhar uma estrela). Tal como ocorre na esmagadora maioria dos livros infantis ilustrados, o texto parte sempre de um narrador incorpóreo e externo, que se associará quer à voz de quem lê em voz alta quer à formação da “voz da consciência” nos novos leitores. Além disso, o relativo isolamento das personagens em relação às suas famílias, ou as fortes ligações com um outro membro em particular (seja um avô, um pinguim ou um alce), criam uma diversidade suficientemente alargada na produção de Jeffers para o fechar numa nota só.
Em quase todos os projectos, mas sobretudo nos mais recentes, Jeffers emprega um bom número de materiais na construção das suas imagens. Trata-se de ilustração, sem dúvida, mesmo quando usa instrumentos mais típicos da pintura (acrílico, óleo, tela). Porém, palavras como colagem, mixed media, apropriação, materialidade, contraste, respiração, serão tão bem empregues na sua obra quanto o seriam de contextos das artes visuais mais tradicionais e culturalmente assentes. Esse uso não é de forma alguma constante ou formulaico, mas bem pelo contrário adequado a cada projecto em particular. Se Perdido e achado e Sobe e desce são os livros mais “convencionais” na sua materialidade, a diversidade interna a O incrível rapaz que comia livros é consentânea com a sua matéria narrativa (até à intervenção diegética no suporte na dentada no livro, lançando-o para o território dos livros-objecto, como O livro inclinado de Newell, que a mesma editora traduziu), e O coração e a garrafa ou Este alce é meu bebe das experiências de descoberta, da curiosidade pelo mundo das suas personagens respectivas.
O incrível rapaz que comia livros é talvez o livro que mais trabalho de análise mereceria em termos de diversidade de ferramentas gráficas usadas, o que é muito transparente. Por exemplo, uma das características no uso da tipografia ou caligrafia variadas, como neste caso, é que essa diferenciação assumirá (ou poderá assumir) um significado interpretável. Questões como o tamanho, a saliência, a cor, o sombreado, a posição, a legibilidade, a ornamentação própria, mas também as suas específicas marcas materiais de inscrição (o que é que se usou para escrever) e suporte (sobre o que se escreveu) poderão ter um qualquer papel na forma como serão lidas. Não apenas no seu sentido verbal, como é natural, mas no modo como esse mesmo sentido se expressará naquele contexto específico. Isso poderá levar, por exemplo, a reforços do sentido verbal, como a espectacularidade das letras “circenses” do titular Incrível, ou a pequenos contrastes, como a cursiva “a página toda” no texto central do narrador, usualmente dactilografado de maneira ligeiramente irregular. O teórico Theo van Leeuwen tenta mesmo criar uma tipologia semiótica baseada na curvatura, na inclinação e orientação, na conectividade e regularidade, etc. dos tipos de letras empregues num qualquer projecto, mas o propósito de Jeffers, num livro como este, não estará tanto numa pesquisa de “transmissão” de conteúdos, uma vez que não estamos perante um projecto de tipografia propriamente dito, ou de um discurso que procura coordenar todos os seus elementos gráficos num propósito comunicacional ou publicitário, mas antes na criação de um território expressivo e de distância irónica perante o mundo dos livros, que pretende representar, comentar mas ao mesmo tempo fomentar junto aos seus próprios leitores. Apesar de se revestir de um sentido largamente irónico, mais do que satírico ou cómico, O incrível rapaz que comia livros não deixa de ter um propósito pedagógico de incentivar à leitura, e aos seus resultados.
Como apanhar uma estrela é, a um só tempo, um livro que poderíamos descrever como sendo sobre a insistência quase obsessiva de um objectivo como das pequenas ilusões que criamos para as satisfazer, de certa forma contrariando aquele longo título de Stig Dagerman (A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer). Quer dizer, as crianças têm o pleno direito de, enquanto crianças, viverem tanto com os pés bem assentes na terra como a criarem quaisquer fantasias que desejem e projectem sobre o tecido do real. Elas não confundem um com o outro, na verdade, e um ajuda a suportar o outro, ou a ancorá-los. A fantasia torna a realidade mais aceitável, e a realidade torna a fantasia mais poderosa.
O coração e a garrafa é a história mais melancólica, emotivamente pesada e dolorosa, de todas as que Jeffers apresentou. Se algum tipo de policiamento poderá considerar que colocar nas mãos ou no caminho das crianças uma história sobre uma perda e um fechamento emocional da protagonista é mal-vindo, por outro essas mesmas situações não são alheias à existência humana, e a compreensão da finitude humana virá mais tarde ou mais cedo. O importante não é, parece-nos, evitar o seu conhecimento, mas integrá-lo no prazer em degustá-la, à medida que se a experiencia. O único senão em relação a este livro em particular é a solução do pesar da protagonista, já em adulta, ser-lhe algo externa, como que criando a ideia de uma obrigatoriedade em descobrir algo que não em nós mesmos. Porém, numa narrativa que explora uma simbologia tão própria e potente, talvez esse encontro possa encontrar várias interpretações inteligentes da parte dos seus leitores (quer os pais que as contarem e adaptarem às suas circunstâncias específicas, como deve ocorrer na leitura de todos os livros, quer das crianças elas-mesmas). Redescobrir a infância não é apenas possível através da transformação do adulto em pai, mas é seguramente um dos caminhos mais comuns, e poder-se-ia imaginar que a leitura conjunta deste livro (os pais que o lêem com os filhos) teria um efeito duplo sobre esses mesmos leitores.
Se há outro ponto que parece unir as personagens destes livros publicados em Portugal são as predisposições dos protagonistas em querer saber sempre algo mais, para além das aparências, das ideias feitas ou das primeiras impressões que possam ter. Nenhuma destas crianças-personagens têm um entusiasmo pela aprendizagem fácil e ilusória, mas tampouco se fecham à entrada de um novo elemento nas suas vidas. Em vez de tecer um conto moral, que procura uma “lição para a vida” através de mecanismos falsos (como, por exemplo, a insistência de que o “diferente” deve ser aceite através de uma “acção incrível” da parte de quem difere…), todas elas simplesmente mergulham de imediato nos factos que a rodeiam, na colecção de factos que constitui o mundo. Destas formas subtis e sofisticadas e diversas, Oliver Jeffers parece afinal seguir de facto uma frase de Dagerman, do livro citado: a de que “porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas [as palavras] num livro e ofereço-o ao mundo”. Não podemos ver nos livros de Jeffers, então, uma forma de mostrar que a vida não é, de todo, absurda?
Nota final: agradecimentos à editora, pela oferta de alguns dos livros.
14 de janeiro de 2014
Vários títulos. Oliver Jeffers (Orfeu Negro)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:47 da manhã
Etiquetas: Ilustração, Infantil
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2 comentários:
Esse seu post me fez procurar obras de Jeffers, que adorei. Obrigada pela dica e pela ótima resenha :)
De nada, Camila. Se esse papel é cumprido por este espaço, só posso ficar contente. E aconselho de facto a preencher as prateleiras com os livros de Jeffers...
Pedro Moura
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