21 de dezembro de 2007

Le petit train du côte bleue & Travesti. Edmond Baudoin (6 Pieds Sous Terre/L'Association)


Há qualquer coisa no espírito de Baudoin que lhe é obsidiante, um carácter propenso a estar emaranhado nas intricadas redes da sua memória, estranha, já que não é suficientemente (ou apenas?) nostálgica para o impedir de se reunir ao tempo presente e à continuada acção da sua vida, nem o liberta numa autonomia alheada desse total experienciado (vécu). Vive nele, a memória, como sua parte constituinte. Essa mistura entre a vida e a arte que aqui indicio não se observa por um qualquer recurso extratextual, a entrevistas, por exemplo, e muito menos a qualquer tipo de intimidade com o autor. Trata-se de uma dimensão por demais visível e estrutural de cada novo episódio da sua obra (como anteriormente o já havíamos assinalado, em que um novo livro é parte de um processo contínuo e unificado). É como se cada livro fosse uma pedra nova num muro em construção, imagem de todo o modo querida a Baudoin, único tipo de muro (ou parede, já que se trata do francês mur) que ele preza, excepção aos demais, por ser dos que o avô havia construído – e que nos remete, aos leitores de Baudoin, imediatamente a Couma Acò, onde testemunhamos o corpo dessa mesma rememoração.
Seja na forma de um diário gráfico – Le petit train du côte bleue (6 Pieds Sous Terre) – seja através de uma adaptação de um romance – Travesti (L'Association) – esse carácter não se altera, apesar de ganhar direitos de cidadania mais claramente noutro tipo de projectos, digamos, directos, onde se assume na totalidade a responsabilidade dessa construção contínua. Quase não haverá nada de novo a dizer, a não ser as circunstâncias e elementos mais externos. Todavia, o não haver nada “de novo” não se consome como uma fraqueza, mas antes se constitui como uma direcção de uma confirmação poética dessa mesma direcção. Quantos autores fazem imbricar os mesmos vocábulos, temas, figuras, traços, quantos enveredam pelos mesmos caprichos e fantasias, quantos repetem e variam num mesmo espectro e a cada uma dessas voltas, retornos, revisitações, ritornellos, se tornam mais fortes? E cada um desses “mesmos”, cada uma dessas variações apenas vêm consolidar essa mesma personalidade, esse engenho, essa força. Baudoin, quanto a mim, a esse número pertence.

Le petit train du côte bleue é um companheiro de La mort du peintre, vivendo da proximidade, mesmo que momentânea, do autor com uma pequena zona a sul de Marselha. Registo de desenhos e esboços retirados da vivência imediata do espaço, pequenos troços de acontecimentos que o rodeavam mas a que era alheio, curtas dissertações em torno das questões sociais, económicas e políticas desses locais (relevando preocupações relativamente banais, com as quais concordaremos sem esforço, mas por isso mesmo resvalando por vezes num certo facilitismo desse mesmo discurso). Temas recorrentes, são muitos, desde o (esse cansado) chavão de que uma mulher o é por todas as demais, e que amarmos todas as mulheres é como que um respeitar maior da mulher enquanto força dinâmica da natureza... na verdade, atropelando a possibilidade de entender que encerrada numa mulher poderá estar uma personalidade que deve ser conquistada na sua exactidão, e que nessa conquista não há lugar para vacilar por outras margens, Baudoin acaba por ser derrotado na sua condição de “sedutor” (aliás, em Travesti, o autor faz representar todas as cidades do mundo por mulheres, e esse “Eterno Feminino” pode-se tornar algo sem temperança, incomodamente chão, uma mera mania, mas acima de tudo uma cegueira). Técnicas recorrentes, são muitas, inclusive a da integração de desenhos feitos “ao vivo” ou referências fotográficas alteradas pelo desenho dos breves contornos nas páginas apresentadas como finais, não o sendo jamais, mas em contínuo.
Travesti é uma adaptação livre de um romance do escritor romeno Mircea Cartarescu, cujo título da tradução francesa é Lulu, mas Baudoin faz reverter ao original. O romance, sub-entende-se, é como que uma espécie de Bildungsroman, que segue um avatar de Mircea na sua juventude e abertura ao mundo. Para ser mais preciso, recontam-se os dias passados numa colónia de férias (em Budila), o que implica uma anti-socialização com os demais rapazes, uma breve enfatuação com uma rapariga, a descoberta da(s) sexualidade(s) (um conflito e descoberta mais interior que em relação ao outro, não obstante os “encontros”), um mergulhar nas dobras do corpo aberto, uma via ígnea para os pesadelos, a emergência das imagens do trauma, as memórias mais perigosas... E se disse tratar-se de um avatar de Mircea Cartarescu, é para precisar não ser uma autobiografia, mesmo que episódica: este jovem Mircea, de nome Victor, sonha em tornar-se um escritor famoso, tornado famoso após a sua morte, projecta no futuro a sua própria morte pela escrita, e é nesse momento final que se recorda da juventude, numa assunção de uma analepse proléptica tão poderosa que se desregula da linearidade mais esperada dos romances.
Todavia, estas equações tornam-se ainda mais intricadas, graças ao grau de liberdade que Baudoin exerce nesta adaptação. Não se trata de uma ordenada transposição dos elementos encontrados no romance, reduzidos a objectos utilizáveis e remisturáveis e reapresentáveis, mas de uma abertura do espaço do romance, através da entrada do próprio Baudoin como personagem interna em busca da estruturação dessa mesma adaptação. Como se poderia já esperar – uma confirmação que nada tem a ver com a desilusão de um “já sabia” mas como se se tratasse de um reencontrar de um amigo de longa data e o prazer de dizer “estás na mesma” – ocorre uma convergência das várias linhas que Baudoin foi criando nas suas obras. Mais, é expresso pela boca de uma das personagens “reais”, revelando o programa... Que se seja explícito: Baudoin representa-se a ele mesmo na rota de (en train de) visitar Bucareste e Budila para obter informações e referências que o ajudem à adaptação, encontra-se com outras pessoas, inclusive o próprio Mircea Cartarescu, para melhor entender a obra, discorre sobre a sua relação pessoal com as cidades, as mulheres, a literatura em geral, o seu trabalho, as crises de trabalho (representando-se sentado em frente do estirador a tentar avançar). E esta “realidade” e a “ficção” do romance Travesti entrelaçam-se. Voltemos à personagem; que lhe diz (a Baudoin-enquanto-personagem)? “...é simples. Colocas o Mircea na cena a observar o seu fantasma Victor, um escritor que olha o seu fantasma adolescente, que fita Mircea num espelho. E tu, tu espias todos estes fantasmas, mais os teus”.

Que os fantasmas se entrelaçam não é apenas uma interpretação por sobre a superfície dos eventos narrativos: encontra-se na representação activa: das cenas mais belas e poéticas, como o casal de jovens deitados sobre a erva, de dedos entrelaçados, sob o signo de John Donne (imagem acima), às cenas mais grotescas, como a procissão de máscaras e monstros e travestis que culminam no festival, onde serpentes e olhares se entrelaçam num vórtice perigoso (imagem abaixo). Os ruidosos medos de Victor/Mircea encontram-se com o homem de cabeça aberta de Le Premier Voyage, as suas projecções num passado que jamais existiu cruzam-se através do ícone do menino de dedo na boca de tantos livros de Baudoin, as paisagens que se abrem em brancos por traçar coincidem. Algumas das características dos exercícios mais felizes anteriores de ilustração de Baudoin – dos romances de Ben Jalloun, de Le Clezio – ou de outros encontros literários – com Sauvaigo, Brun-Cosme, mas também Tanguy Dohollau – , ainda transversais, encontram-se aqui numa aproximação directa, entregue, ao seu longo e contínuo projecto, aos seus “fantasmas”.

Ao dar-se a ele mesmo corpo interno à adaptação, e ao fazê-la cruzar com a voz do romancista (o Mircea tangível, dialogante), surgem-nos duas vozes fantasmáticas projectadas no interior do romance original, agora mera ponte de partida [o que foi gralha, corrigiu-se em algo mais acertado do que a língua permitia] e do encontro de ambos os autores. O que surge, enfim, são os ambientes ominosos, estranhos (estrangeiros em todos os sentidos), perigosos. É uma ruptura preferida à construção de espaços de integração, sem dúvida. Mas é como que uma desintegração no seio da qual, sempre, surge vida nova.

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