Tal como havia proposto num post anterior, também aqui seguirei a mesma estratégia: a de eleger uma palavra que em si mesma encerra a chave (ou uma das) de interpretação e crítica da obra em questão. E a palavra a utilizar em relação ao trabalho de Gurewitch é intertextualidade. Esta palavra provém especificamente da teoria da literatura, tendo passado por vários graus de complexidade, de Bakhtin a Bloom, e podemos reduzir a sua noção aqui para dela relevar apenas o que nos será útil, circunstancialmente. Trata-se de uma ideia, clara na intuição, mas mais complexa de tornar objectiva (isto é, passível de atravessar objectos tangíveis, mesmo que estes tenham o nome de “textos”, “discursos”, “obras”, não o deixam de ser, compostos por elementos atómicos analisáveis), de que nada existe que não esteja em resposta a algo anterior. Isto é, cada novo texto surge necessariamente num contexto determinado o qual, não é redundância, o determina por sua vez, obrigando-o a estabelecer um diálogo com esse contexto, que interaja com os elementos que a circundam e fundamentam, e que pode dar o nome de tradição ou de originalidade, família ou corte, influência ou autonomia. Não existe nunca um grau absoluto de autonomia, de ab ovo, ou incorrer-se-ia num perigo de alienação tal que tornaria esse texto ilegível (algumas obras do que se chama “outsider art” roça essa ilegibilidade, mas se suscita interesse e provoca a emergência de leitores seus é porque essas leituras se lançam àqueles elementos que são resgatáveis a essa inscrição no mundo e não o seu carácter de separação).
Posto isto, há todavia vários graus desse equilíbrio entre autonomia e dívida (a obra de Bloom A Angústia da Influência parece-me um bom ponto de partida para esse estudo). A maioria dos autores deseja – revelando serem mais ou menos iludidos – ser “original”, “diferente”, “único”, mas se bem que exista uma natureza única a cada ser humano, independentemente das suas qualidades ou desvirtudes, somos mais parecidos com muitos outros do que aquilo que desejaríamos ser. Até incorreria no perigo de uma boutade, afirmando que quanto mais esforço consciente um artista faz para se destacar dos outros – as mais das vezes por via de pirotecnias ou exercícios de grande espectacularidade ou domínio técnico mas que são apenas contornos dourados em torno de um pífio e vazio dizer – menos escapa à gravidade do “mesmo”. Mas há outros autores, não necessariamente os “melhores”, os “mais interessantes”, ou outros qualificativos, mas simplesmente autores outros, que preferem mergulhar na mais clara das dívidas, nas mais taxativa das citações, para criarem aí, nesse espaço de diálogo óbvio, o seu próprio cunho. Nicholas Gurewitch é um desses autores. The Perry Bible Fellowship surge agora em livro, mas a sua vida iniciou-se, e ainda decorre, no seu próprio site. Faz parte desta nova tendência de autores solitários, sem editora, a criarem trabalho (que pode ser mais ou menos consistente, mais ou menos inovador, mais ou menos digno de atenção) e a distribuírem-no de graça através de novos sistemas informáticos “à porta” (rss feeds). Mccloud havia falado nesta possibilidade em Reinventing Comics e isto demonstra que tinha uma certa razão, ou que ela se vai formando. É uma colecção de tiras de banda desenhada, de um humor cáustico e até mórbido mas sem jamais cair em obscenidades directas ou pequenos horrores (que não são necessariamente mal-vindos, já que se podem com eles estabelecer qualidades, como nos casos de vários trabalhos da Ferraille Illustré e da Argh!). A leitura destas tiras obriga-nos ao mesmo tempo de revisitar as referências de que partem; mais, sem essas referências de raiz, algumas das estruturas diegéticas não são inteligíveis, muito provavelmente. Sigamos três tiras, esperando assim estabelecer três das estratégias de Gurewitch.
Se o leitor não estiver familiarizado com as tokusatsu, isto é, as séries de televisão japonesas de acção, especialmente aquelas que envolvem normalmente grupos de heróis (Power Rangers, Super Sentai, Beetle Fighters, etc.) que separadamente controlam robots os quais se poderão agregar num robot-herói ainda maior, esta tira não faz sentido (“não tem piada”). A primeira vinheta, entenderá o leitor familiarizado, é toda uma só equipa, unida, provavelmente no interior da pistola. Depois percebemos que não, afinal o Skorpex estava numa dessas sub-vinhetas. Houve uma disrupção interna nas regras do que era mais expectável no Tokusatsu (e suas versões em mangá).
Se acompanharem desde a primeira à última tira, aperceber-se-ão não só de um desenvolvimento da linha própria de Gurewitch, como da sua crescente capacidade em mimar a linha de outros autores assim como de tornar o seu próprio estilo despojado de certa forma, mas para conseguir atingir maiores efeitos de expressão. Estas crianças, apesar dos elementos formais dos rostos não poderem ser mais simples (correndo-se o risco de não parecerem mais rostos, ainda que talvez se pudesse apagar a boca), são passíveis de um largo espectro de expressividade, graças às pequenas mudanças que o autor opera nesses mesmos poucos elementos. Neste sentido, remete-nos, de novo e como sempre, ao ensaio de Töpffer sobre estas mesmas questões. Muitas das tiras com as crianças do estilo “pessoal” de Gurewitch colocam-nas em situações de torturas indizíveis (e nesta nota, é muito próximo de Max Cannon). Suffer the children. Excelente.
Algumas das tiras de Gurewitch são citações directas de autores e obras famosas da literatura (ou outras artes) infantis. No caso presente, trata-se de uma homenagem sarcástica a Shel Silverstein e o seu livro ilustrado http://lerbd.blogspot.com/2005/12/red-meat-gold-max-cannon-st-martins.html. Toda a moral de abnegação e dádiva que Silverstein estabeleceu nesta (e noutras) obra é aqui derrubado em quatro vinhetas. Mas o diálogo que se estabelece é bem mais profundo, não se esgotando no humor negro. Aliás, é através de muitos destes jogos humorísticos aparentemente superficiais que Gurewitch coloca questões em torno do racismo, das políticas de um capitalismo férreo, da educação estupidificante em curso, da hipocrisia religiosa, e até mesmo da existência, evolução e ontologia humanas. Outros autores visitados são Edward Gorey, Roald Dahl, Hank Ketcham, Robert Crumb, já para não falar de toda uma série de estilos de ilustração infantil, e de um rol de referências a séries de televisão, jogos de computador, obras de literatura de ficção científica, de fantasia ou outra, e até ícones e símbolos da publicidade.
Nota: agradecimentos a Nuno Franco, pela referência.
12 de dezembro de 2007
The Perry Bible Fellowship. Nicholas Gurewitch (Dark Horse)
Publicada por Pedro Moura à(s) 12:51 da tarde
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2 comentários:
The Junky's Christmas
Sem deixar de dar atenção ao Dark Horse.
Obrigado. O filme é fixe. Os teus blogs também.
Pedro
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