25 de dezembro de 2007

Powr Mastrs. C.F. (Picturebox Inc.)


Uma das formas como poderemos ver o movimento das artes – se se quiser delimitar e coarctar o seu poder poder-se-á falar da sua “evolução” ou “avanço” – é a de ela provocar um efeito de metamorfose interno à sua digestão, englobando uma coisa que teria sido conhecida até uma data precisa por um nome e, assim, como e com uma determinada qualidade, natureza, escopo, alterando-lhe não os seus elementos constitutivos, mas o modo como se vê essa qualidade, natureza e escopo. Isto é, “o mesmo” é-nos dado a ver “como sempre” mas como se este “mesmo” fosse “novo” (Goethe: “Não existe passado, para o qual tenhamos de olhar para trás, só existe em eterno novo, que se conforma a partir dos elementos, em expansão, do passado...”). É por isso que os discursos em torno da originalidade são um pouco cansados em si mesmos, pois apenas desvelam um interesse, muito rudimentar, pouco desenvolto (por outras palavras, que ainda não deu voltas suficientes sobre si mesmo, como o pensamento o deve fazer para se deslindar e se reflectir), sobre os domínios mais espectaculares, superficiais, técnicos que as artes podem produzir. O que Walter Benjamin chamou de “teor material”, por antinomia e correspondência dialéctica ao “teor da verdade”, e que já havia aqui empregue. Assim, aqueles que desfolharem rápida e distraidamente Powr Mastrs, de C.F., dirão eventualmente estarmos perante uma obra “pouco original”, até “má”, por entre a vazão de obras bem mais espectaculares e publicitadas naqueles meios de comunicação e divulgação que mais nos presenteiam com novidades-que-são-mesmidades que qualquer outra coisa.
O “mesmo” a que me refiro, que se torna “novo” na obra de Christopher Forgues (aprendemos a desdobrar o nome de C.F. - assim surge em muitas das publicações estado-unidenses, sobretudo a Kramer’s Ergot - na Glomp) são os elementos que se encontram naquilo que se chama, por vezes com mais propriedade que outras, de “art brut” ou “outsider art” (não necessariamente sinónimos). Uma figuração elementar, uma certa linearidade narrativa em termos de causalidade e objectivos, mas graus diferenciados de complexidade em termos de referências ao mundo real, à organização lógica dos elementos, às linhas de fuga e de direcção dos temas internos, um preenchimento quase obsessivo pela pictorialidade das superfícies de inscrição, são alguns desses elementos ou traços comuns. Todas essas características – apenas formais – surgem baralhadas e reapresentadas e refiguradas na obra de C.F. (e de outros dos seus companheiros), ainda que num contexto de bem mais forte socialização, em que os artistas envolvidos têm consciência do diálogo que estabelecem com essa tradição “lateral” do discurso das arte, e com os variadíssimos agentes das esferas das artes, mais ou menos alargadas (da escola aos amigos até às galerias e editoras).
Por alguns elementos presentes em Powr Mastrs, arriscaria a aproximar C.F. directamente a Henry Darger, e à famosa opus magnum deste (The Story of the Vivian Girls, in What is known as the Realms of the Unreal, of the Glandeco-Angelinnian War Storm, Caused by the Child Slave Rebellion), ainda hoje inédita na sua completude, mas cujos trechos já surgiram em várias publicações, inclusive a Raw de Art Spiegelman (2ª série). Para aumentar essa convicção, por outra área, repare-se num dos títulos do projecto (individual) musical (tal como outros artistas de Fort Thunder, também C.F. se vê envolvido sobretudo da onda do noise), deste artista, Kites: Royal Paint with the Metallic Gardner from the United States Helped into an Open Field by Women and Children.


Uma das características dessas artes, tomadas como um todo, é a noção estética de horror vacui, o “horror ao vazio”, que leva os artistas “brut” a preencher ao máximo a superfície de inscrição com elementos o mais mínimos possíveis, não havendo qualquer espaço em que não haja espaço de símbolo ou de ícone. Mas como já havia indicado neste espaço, essa noção pode ser entendida de um modo positivo, com Gombrich, alterando-lhe o nome para amor infiniti, e lendo-a como uma complicação ou aproximação plasmática entre a superfície e a inscrição, que se vai multiplicando e reproduzindo num movimento em direcção ao infinito (veja-se The Sense of Order). Curiosamente, o seu oposto será o minimalismo de um Donald Judd, que se quer quase como asséptico, como sem qualquer centímetro onde possa brotar o orgânico (e imprevisível) que pertence à vida. Curioso, digo, porque neste livro de C.F. há espaços – diegéticos – que são contíguos mas contrários na sua natureza. Por exemplo, e é daí que retiro o exemplo da imagem, o cientista Mosfet Warlock vive e trabalha num espaço interior que se apresenta em meia dúzia de linhas, rectilíneas, paralelas e perpendiculares, sem sombras, desprovidas de ornamentos, e onde as acções e os objectos dessas acções surgem esquematicamente, estruturando pranchas que recordam o trabalho de design que discutimos em torno de Yuichi Yokoyama. Todavia, de quando em vez apetece-lhe “espairecer” (na história, fala-se de um limite: "Sempre que Mosfet ia o mais longe que podia no laboratório, saía e ia pensar") no exterior, um jardim profusamente floreado, cheio, preenchido, quase mágico com a presença variegada de plantas fantásticas, cada uma com o seu oculto uso. Essa pequena dicotomia é aplicada ou desenvolvida na própria diegese, na qual este cientista-mago é capaz de aprisionar a sua sombra/espírito para criar uma maquinaria ainda sem nome ou a de desenvolver pequenas sementes maquínicas que, depois de plantadas, desenvolverão uma espécie de vida autónoma. Ou seja, as diferenças intransponíveis – pois não existem graus entre elas, mas naturezas diversas em absoluto – entre a vida e o maquinal, entre o que se desenvolve num interior e o que nasce para um exterior, entre um mínimo e um exponencial, encontram-se aqui unidas por uma porta, um túnel, uma caverna, uma passagem. E há muitas passagens a unir espaços em Powr Mastrs.
Se bem que narrativamente não haja elos de ligação quaisquer entre esta obra e outras, já de um ponto de vista artístico, no que diz respeito ao seu pulsar mais profundo, mas ainda também nas suas vertentes de família próxima, de produção, de vivência, poder-se-á unir Powr Mastrs aos livros de Brinkman (Teratoid Heights) e de Chippendale (Ninja, Maggots), assim como à produção gráfica e de banda desenhada de todo o colectivo Fort Thunder (pelos quais já passámos, para além dos artistas citados, com Brian Jones e outros). Brinkman, Chippendale, Jones e Forgues são todos cultores de uma aproximação quase caseira ou artesanal em relação ao trabalho da banda desenhada, onde inserem toda uma série de características das fontes artísticas em que se inscrevem ou citam (incorporação de erros, apropriação de imagens, referências à “outsider art”, como vimos, uma aposta numa aparentemente simples e até simplista construção de nós narrativos de causa-efeito) mas ao mesmo tempo com uma patente simpatia para com uma tradição de banda desenhada mais mainstream do que alternativa: com as ideias de personagens fantásticas e criaturas maravilhosas, a presença de toda a espécie de milagres e fantasias, referências a um imaginário ou intertextualidades de relativamente fácil identificação, a ideia de aventura, a criação de verdadeiros “mundos” de escapismo à realidade que nos circunda...
E é ainda na antologia citada, a Glomp, que surge um dos episódios incluídos em Powr Mastrs (“Inplexe-Knowecrypt” na Glomp, nomeado “The Sinking” no livro), o que leva a acreditar, pela inclusão do número 1 na capa e a incompletude das promessas narrativas no interior do livro, de se tratar de uma saga maior. Algumas das personagens já haviam aparecido noutras publicações (a Kramer’s Ergot 6 tem o Tarkey, por exemplo), o que reforça todas estas ideias de saga maior, de um grau elevado de complexidade e intercruzamento que se poderá vir a expressar em várias formas, de um projecto a longo prazo que iremos acompanhando.
Nada de novo, por assim dizer, mas quão novo por dentro...

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