25 de dezembro de 2007

El Suicidio del Amor. Daisuke Ichiba (Los Papeles Pintados)


No final deste pequeno volume existem algumas informações circunstanciais que nos ajudam a entendê-lo como um objecto desses que surgem fulgurante e momentaneamente, para depois desaparecerem e talvez serem votados ao esquecimento. Esta editora espanhola, Los Papeles Pintados, parece ter apenas editado este mesmo volume, e este volume foi criado de propósito para esta edição. Pelo que se pode entender, Daisuke Ichiba deu início à sua tarefa artística no espaço das duas últimas décadas, auto-editando pequenas publicações e amealhando uma reputação mais internacional através de exposições pela Europa (sobretudo França e Espanha). Chegou, porém, a participar em projectos da Dernier Cri e na antologia Bête Noire. El Suicidio del Amor é uma colecção de desenhos, mais ou menos organizados de acordo com temáticas ou especificidades representacionais que o torna uno, apresentado sob a forma de livro, mas que poderia servir como volume companheiro, senão mesmo catálogo, de uma sua exposição (de certo modo, idêntico a experiências de Amanda Vähämäki ou Marco Mendes).
De acordo com os princípios da organização dos géneros na mangá, é muito fácil de identificar o nicho no qual Ichiba trabalha, aquele conhecido pelo nome de ero-guro, fazendo convergir o grotesco, o horrendo, o obsceno, com o erotismo, para não dizer a pornografia, mas na qual a sexualidade acaba por ganhar uma dimensão muito mais atroz que sensual, não dessa violência inédita e impermanente que suscita mais dúvidas de entendimento e decisão como acontece na pintura de Francis Bacon, nem do asco que nos averta o olhar como a obra de Fredox, mas um furor do encontro brutal entre a morte e o sexo que abre espaço a uma repugnância quase imediata pela clareza com que as imagens são apresentadas, a clareza que é própria da maioria da criação imagética da mangá. Nesse género, talvez se possa indicar o nome de Suehiro Maruo como sendo o mais famoso, todavia aquele que é também pautado por uma maior estruturação linear em termos de narrativa, i.e., de significados limitados numa estória, em um sentido (propriamente dito), uma interpretação balizada. Um pouco mais além, ainda se poderiam citar os nomes de Hiroshi Nakamura ou de Toshio Saeki, enquanto cultores de um estilo que os leva a publicar colecções de desenhos que se unem por princípios plásticos, os quais, ainda que possam criar a ideia fantasmática de uma história, ou de um tema, são sempre laterais a essa entrega normativa. Retornam ao princípio organizativo de livros que nos parece ter sido fundado, no Japão, pelos artistas das ukiyo-e, mormente Hokusai. Aprofundam-se num limiar, não num centro.
As imagens de Ichiba rondam um território mais ou menos expectável deste género, a saber, a erotização de estudantes de colégio (menores), a presença de homens que podem ou não estar no lugar do autor (projecção, reflexo, receio?), desvios e transformações dos corpos que oscilam muito perto dos yokai (que mencionei sobretudo aquando de um livro de Shigeru Mizuki)... Aliás, quase se obriga aqui a uma incessante busca por sentidos psicologizantes, mas torna-se óbvio, ou deveria tornar-se óbvio, que essa busca não pode jamais ter um fim. É como se o movimento inicial da primeira associação levasse a um ímpeto contra o qual não pudesse existir qualquer obstáculo ou inércia que o diminuísse.
Apenas a título de exemplo, tentemos alguns, até banais, recorrentes e evidentes. Uma das imagens que aqui se repetem é as das raparigas, ou uma mesma rapariga (o que aumenta o grau de coesão narrativa que é possível), com um dos olhos tapados como se tivesse passado há pouco tempo por uma cirurgia qualquer (coisa bastante regular no Japão, que se vê repetidas vezes pelas ruas das cidades). É a partir dessa ideia em torno de cirurgia sobre os olhos que podemos encontrar algumas direcções, desde as de cirurgia estética (abrir os olhos ao modo dos ocidentais, deixar entrar mais luz, transformação do corpo conforme as normas instituídas pelas fantasias veiculadas em meios como a banda desenhada) às de perigosidade para o artista (cegueira, invasão ao corpo, interrupção da tarefa), passando ainda por outras mais exactas, como a excisão, anda que momentânea, da visão de profundidade: tudo termina por se plasmar nas duas dimensões dos desenhos no papel através dos quais ganhamos acesso a esta imaginação (não no seu sentido banal, diga-se, mas sim enquanto “criação de imagens”).


Outras imagens são as substituições, visíveis, aglomeradas num mesmo plano, de olhos, vaginas, bocas. A ideia da vagina dentata é patente, com todos os medos ou obsessões que ela suporta. Todas as ideias de transmissibilidade e comutação tornam-se assim possíveis: a visão é uma outra natureza de sexo, o sexo é uma forma de nutrição ou consumpção, todas essas tipologias de relacionamento (sexual, visual, alimentar) impedem um outro, mais socializado. Existem também animais escondidos e sexos expostos, num outro jogo especular relativamente fácil de detectar (a imagem que aqui mostro concatena todas estas linhas interpretativas, de uma forma muito clara e visível), mas com variações, igualmente, onde a emergência do lugar do sexo ou dos animais de dentro para fora dos corpos (humanos) de algumas das personagens ocupa lugar central. É como se aquilo que socialmente mais ocultássemos fosse súbita e brutalmente revelado à luz do dia, perante o olhar de todos, mas de tanto se revelar – uma atitude moralizante diria que vivemos hoje em tempos licenciosos, revelantes [não, não é gralha] demais – se tornasse inócuo, inoperativo. Num sentido etimológico, incivil, isto é, “sem lar”, pois para existir um lar é preciso estabelecer fronteiras mínimas, físicas, morais, existenciais. No mundo da animalidade, do regresso ao corpo-apenas, um corpo, mais que desorganizado, não-organizado, não pode existir qualquer cidade.
Para reforçar esta leitura, recordemos uma frase de Tertuliano: “eiusdem libidinis est videri et videre”, cuja tradução literal e selvagem poderá ser “é tão libidinoso ser visto quanto ver”. A aliança entre o olhar e o contacto, sexual, era directa no entendimento cristão iconoclasta (a anti-imagética da religião mais imagética), mas a interpretação é genuína: o olhar é já toque (o que nos remete, uma vez mais, à ideia de Lucrécio que havíamos empregue aquando da discussão do último livro de Tilmann, em cujo livro as personagens “fornicadoras” têm direito a órgãos genitais mas não a olhos nem olhares).
Entregarmo-nos à mortandade dessa dimensão do ser humano é apenas uma outra forma de enunciar o que o título, de uma forma mais poética, desviante mas também mais elíptica, indica como o suicídio do amor.
Nota: agradecimentos a Richard Câmara por ter, mais uma vez, servido de correio. É sempre uma ajuda preciosa que me permite ir conhecendo mais e mais.

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