30 de junho de 2006

Hanashippanashi, Patati Patata. Daisuké Igarashi (Sakka)


Uma das mais prementes características do absurdo, enquanto categoria ou género literário, é o pacto que se estabelece entre o universo diegético, as suas personagens e os leitores. Não se trata de um simples mergulho no que agora se chama à boca cheia de “surrealismo” que tanto pode servir para descrever trabalhos que genuinamente trabalham a co-existência de elementos díspares para criar uma nova realidade, tão bela “quanto o encontro fortuito entre uma máquina de costura e um guarda-chuva numa mesa de dissecação” (Lautréamont), como para pessoas que simplesmente têm falta de direcção do pensamento e atribuem ao “acaso” a emergência da sua arte, sem notar que esse acaso nem sempre leva a bom porto. Esse pacto leva a que existam elementos nesse universo diegético, os quais provocariam a derrocada absoluta da lógica do mundo, o nosso mundo, que são perfeitamente aceites como reais pelas personagens e, logo, por nós mesmos, os seus leitores. Se o primeiro tipo de “surrealismo” pode ser encontrado em Edward Lear, por exemplo, este tipo de absurdo a que me refiro surge no Italo Calvino das Cosmicómicas (e o presente livro tem mais que uma afinidade com esse título do italiano), em Daniil Harms, em Samuel Johnson, no nosso Mário-Henrique Leiria, e naquele escritor checo que todos citam mas poucos (re)lêem. As histórias incluídas neste primeiro volume de Hanashippanashi, do jovem artista Daisuké Igarashi, cujos trabalhos surgiram nas publicações japonesas mais atentas às tendências mundiais da banda desenhada e a novas vozes extremamente pessoais, participam precisamente dessa natureza do absurdo.
Mais, é um livro maravilhoso, ou melhor, do maravilhoso, mais uma vez entendido como categoria literária: na qual os milagres presentes são “reais” no interior do universo da história. São mais de vinte histórias, todas muito curtas, relativamente independentes (“L’announciateur de printemps” pode servir de envelope e explicação da origem das histórias, para além do capítulo-epílogo), usualmente protagonizadas por crianças deixadas sós ou vagueando em pares pelos seus próprios passos numa cidade que se esconde nas dobras da cidade (veja-se particularmente "Les Chats de Derrière") - mas se Taniguchi também as caminha para descobrir a poeticidade do mais singelo dos quotidianos, Igarashi deambula pelos mesmos caminhos para descobrir estes obakemonos – até que tropeçam, sem surpresa para elas (daí o absurdo, o maravilhoso), em criaturas ou realidades inusitadas.
A palavra “poesia” surge várias vezes para definir este livro, na sua publicidade, mas não revela aí problemas de maior, se bem que se a cinja à sua capacidade de criar imagens, mais uma vez, maravilhosas, e que nos farão inveja de viver num mundo limitado pela gravidade, a biologia, a lógica, e não num caos de possibilidades, para depois apagarmos essa inveja e aceitarmos a felicidade de podermos ver, no nosso mundo, os cantos onde esses sonhos poderão existir. Na badana do livro faz-se uma piscadela ao “universo de Hayao Miyazaki”, mas se formos mais atrás, notar-se-á que a fonte comum são todas essas criaturas que pululam pelas paisagens do imaginário tradicional, folclórico japonês, sob a sombra do crescente panteão dos kami do Shinto (essas referências são, aqui e ali, o mais directas possível).
Os traços de Igarashi são muito simples, com as figuras humanas de um leve traço mais caricatural que realista, assim como a estruturação das vinhetas, mas revelam uma personalidade vincada e que apresentam um seguro domínio da linguagem da banda desenhada e da sua aplicação. Eu diria que está num traço “nervoso” entre um Tsuge e um Koruda... porém, é profuso no uso de tramas artificiais ou a lápis ou tinta, e a encher as paisagens de pormenores e volutas e padrões (como se notará neste exemplo de splashpage espectacular que dá conta do combate entre as nuvens e o nevoeiro), ou por vezes a combinar duas linguagens formais numa mesma vinheta, para poder criar os ambientes mais ou menos complexos que deseja. Precisamente retratando a harmoniosa convivência entre extremos ou opostos que ocorre nos sonhos, no absurdo, na “semente que germina no [n]osso imaginário”, última frase do livro, que expressa o desejo do autor da relação que estas histórias estabelecerão connosco. O que ocorrerá, decerto. Posted by Picasa

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