5 de novembro de 2006

Tratado de Umbrografia/Black Box Stories 1. José Carlos Fernandes e Luís Henriques (Devir)


Se olharmos a banda desenhada enquanto um muito especial e particularmente feliz agenciamento entre o texto e a banda desenhada, essa ideia, por mais geral que seja, remete-nos a um determinado conjunto de “textos” e a uma certa história, a qual associamos quase de imediato a uma “evolução”. Isso levar-nos-á a uma atitude negativa a priori quando somos confrontados com exemplos que, ainda nessa perspectiva evolucionista, parecem “andar para trás”. À partida, uma mera descrição superficial deste primeiro volume das Black Box Stories remeter-nos-ia ou para um território vizinho da banda desenhada, em que as imagens estão subsumidas a um tal ponto à história textual (em sentido estrito) que as apelidaríamos de “ilustrativas” (subjugadas, subalternas) ou para um patamar histórico da banda desenhada (grande parte do século XIX, ou antes, exemplos esparsos do XX). É por essas razões que uma abertura de amplitude é necessária quando confrontados com novas experiências que se nos apresentam como desafios (daí a inclusão de livros como os de Max Tilmann, de Frank Santoro, ou ainda outras experiências de José Carlos Fernandes).
Presumo que a história dos valores de produção envolvidos neste novo projecto de José Carlos Fernandes (com a editora Devir) sejam sobejamente conhecidos. Dado o tamanho ritmo de criação diegética do artista, e profundamente associado ao seu modo metodológico de trabalho, existia toda uma série de textos (diz-se, pelas centenas) mais ou menos estruturados, menos ou mais acabados, que seriam passíveis de transfiguração pena e em banda desenhada. No entanto, apresentar-se-iam precisamente limitações na prossecução de todos esses projectos, quer por uma questão de tempo quer até pela natureza da aproximação gráfica de Fernandes, cujo estilo próprio poderia não se prestar à melhor apresentação de outras histórias da sua lavra (isto de acordo com os seus próprios desejos e curso enquanto autor). A delegação da responsabilidade gráfica noutros artistas, alguns dos quais já públicos, uns menos conhecidos que outros, outros com trabalhos famosos, outros vindos de campos diversos, fez-se das mais variadas formas, passando por convites directos, encontros felizes do acaso (workshops e cursos, por exemplo, nos quais José Carlos participou, e onde se cruzaria com Luís Henriques), ou até contactos indirectos e relativamente cobertos de mistério (já conhecido como “O Caso Vítor Hugo” nos círculos bedófilos). No momento em que as narrativas (chamemos-lhe “contos”) estão atribuídas, os artistas passam à exploração da melhor forma de as construir em imagens, e depois José Carlos Fernandes fará as alterações e retoques finais que achar necessários ao texto que é directamente apresentado. Um método que nada revela de extraordinário, mas que possui algumas características muito pragmáticas: uma certa dose de rapidez na colaboração, um respeito da parte do artista pelo “argumento” inicial mas também uma confiança do escritor na liberdade do colaborador, e uma última aproximação de seriedade para que se apresente algo digno e pensado como objecto a ser fruído por outros, os leitores.
Tratado de Umbrografia é, portanto, o primeiro volume dessa série, e apresenta 6 histórias desenhadas por Luís Henriques. Deste último não haverá muito a dizer, não por os seus livros de ilustração (A Família de Macacos, A Canção dos Piratas, por exemplo, ambos na Caminho) não possuírem qualidades notáveis em termos gráficos, mas porque no território da banda desenhada este será o seu grande cartão de apresentação (outros se seguirão, como a adaptação do Golem de Meyrinck, numa colaboração com José Feitor para a Imprensa Canalha).
Como disse na abertura do texto, mas do que uma visão classicista da banda desenhada, estamos perante um objecto complexo de encontro entre uma voz autoral, de estórias (José Carlos Fernandes) e uma outra, que prefere explorar várias vertentes e possibilidades plásticas de as expressar (Luís Henriques), em detrimento de uma compartimentação em vinhetas mínimas, a profusão de diálogos, ou a iteração típica desta arte. As duas primeiras histórias, “Tratado de Umbrografia” e “Elegia Americana” são as maiores, mas as quatro seguintes oscilam entre as 7 e as 8 pranchas. Há portanto, uma certa uniformidade em termos de extensão. Qualitativamente, há um conjunto de características que nos remetem, de facto, para um universo de referências às quais José Carlos Fernandes nos tem habituado com a sua obra e que, logo, nos remetem ao “seu” universo. Como exemplo, o cruzamento humorístico de nomes que ressoam de outros campos da cultura, informando assim a personagem que os incarnam (um Dr. Casares que estuda sombras recordar-nos-á A Invenção de Morel do argentino homónimo; Oleg Barnaul tem ecos de uma Rússia feita de contos tradicionais e menos tradicionais, mas que selam o sono gelado das suas noites: é um “nariz” de Gogol que vemos a flutuar na página 37?; um verso de Shakespeare para criar pesadelos) elabora uma complexa rede de intertextualidade enriquecedora e sempre com efeitos cómicos. Uma certa displicência e desconfiança para com as Artes Visuais contemporâneas estão presentes no tema de “Elegia Americana”, tal como se verifica noutros livros, sobretudo Obra-Prima... A descomprometida capacidade de confirmar os ridículos sociais e políticos quer à esquerda quer à direita, com uma leve associação ao mundo concreto português, está patente em “A Feira de Políticos Manuseados”.
Mas há também um grande grau de novidade. Ou de diferença, e que não passa necessariamente pelo desenho de um outro. Ou melhor, é precisamente a possibilidade da colaboração (invertida, já que Fernandes já havia colaborado com os argumentistas José Miguel Lameiras e João Ramalho Santos) com outro artista que lhe permite abrir novas modulações da sua própria voz autoral e atingir novos territórios diegéticos.
Poderei estar enganado, mas parece-me ver aqui um retorno a uma maior soturnidade, que Fernandes explorara aquando dos trabalhos por fanzines. Os últimos títulos, sobretudo os de maior sucesso, eram todos resguardados pelo signo do humor, como já aqui disse. Não é que a morte, por exemplo, não estivesse presente, mas ela surgiria sempre num programa de ridicularidade da personagem envolvida, ou do absurdo da situação. Neste livro presente, ela assume os seus contornos mais dolorosos e violentos. “Homens sem sombra” é uma expressão conhecida para se falar de “homens sem alma”, e que tomaram forma literária, diferentemente, quer pelas mãos de Hofmannstahl (para Strauss) quer pelas de Andersen. O primeiro conto não tem aqui o mesmo peso humano do que A Mulher Sem Sombra, convenhamos, desdobra-se antes pela sua presença praticamente universal (re-inventada, como não poderia deixar de ser), também explorada por outros autores de banda desenhada (David B., sobretudo), sublinhando assim a universalidade exacta da condição humana em terminar. Abruptamente, tal como o conto. Mas a morte assume outros papéis, em “Elegia” enquanto fonte de matéria-prima, em “Zuma, o Tatuador” enquanto ou fruto de sacrifício ou fruto da vingança (mas sempre “fruto”, pois saboreado plenamente).
A prestação de Luís Henriques não se elabora somente num cumprimento competente, nem sequer numa “adaptação” a capacidades existentes de cada uma das narrativas. Como será claro para qualquer leitor, há uma preocupação em procurar os materiais mais exactos para a construção da história, que passa pelos métodos de planificação (mais compartimentada em “Elegia”, onde seguimos a multiplicidade de perspectivas sobre um caminho incerto de uma só personagem, do que em “O Avanço do Deserto”, cuja linha é bem mais inexorável e progresso certeiro), pela escolha de uma escala de cores (uma grande flutuação, necessariamente arreigada à progressão diegética em “Tratado”, leitosa e plasticinal em “A substância de que são feitos os sonhos”, incorporando essa mesma substância ao papel, vermelhos para “Zuma” derramar sobre as finas linhas negras que tatuara, parda para a areia que avança na última história, onde apenas se soltam linhas serpeantes como que sacudidas pelos fortes ventos), pela relação com o texto impresso (ganhando contornos de maior cidadania em “A Feira”, esmagando-nos na sua violência e caoticidade gráfica publicitária, bem-comportada/bem-compartimentada nas outras histórias), pelas focalizações (mais invasiva e à flor da pele de “Zuma”, naturalmente, mais gerais no “Deserto”, mais expositivas na “Feira”), quer ainda, óbvio, pela figuração das personagens, dos objectos e dos espaços. Essa multiplicidade de Henriques mima a escrita de Fernandes, no sentido em que também existe aqui uma ampla e feliz capacidade de recolector (reconheço um cartaz que esteve nas paredes de Lisboa durante muito tempo, uma repetição de desenho análoga a uma obra de arte, uma posição que me remete a outras referências...) para a elaboração de uma obra unificada (no seio de cada uma das “estórias”).
Em suma, não há súmula nenhuma, mas antes um encontro exponencial e exarcebador de duas presenças autorais, que ganham novos e mais fortes contornos por estarem num mesmo espaço de crescimento e expressão. No caso destes dois autores não há apenas a possibilidade de se expressarem um pelo outro, mas antes um aproveitamento cabal da faculdade que a colaboração permite em ganhar novos domínios de expressão e um novo domínio na expressão escolhida. Contos simples, sem dúvida, descomprometidos, também, e que vacilam entre um humor leve e aplicável ao nosso mais premente e imediato quotidiano (“Elegia”, “Feira”) e outras que falam a forças mais obscuras da presença do homem no mundo (“Elegia”, noutra perspectiva, “Zuma”) e deste no homem (“Substância”, “Avanço”), e ainda outra, que parece fazer convergir todos esses elementos (“Tratado”). Posted by Picasa

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