21 de janeiro de 2006

Wimbledon Green. Seth (Drawn & Quarterly)


É notável como esta obra é fruto de um prazer. Seth trabalha lentamente, com um tipo de velocidade de artesão, dados os seus gostos e inclinações nostálgicas por um momento passado da banda desenhada - sobre-romantizado, como o próprio admite. Quase simultaneamente à edição do último número de Palookaville, que continua a “tempestade calma” da saga familiar Clyde Fans, e um pequeno volume de contos ilustrados (Bannock, Beans & Black Tea), escritos pelo seu pai, John Gallant, sobre as memórias da sua infância nos anos 20/30, sai Wimbledon Green – The Greatest Comic Book Collector in the World, pelo que se pode ler, directamente das páginas dos seus sketchbooks (de que algumas páginas foram publicadas em Vernacular Drawings, também na D&Q). Como se compreende facilmente pela leitura do prólogo do próprio autor, e por outras informações mais ou menos veladamente expressas nas histórias inclusas, Seth segue fórmulas narrativas de pequenas, aparentemente desconexas partes para construir um todo contínuo, tal como Chris Ware havia feito com Jimmy Corrigan ou Daniel Clowes em Ice Haven, ou ainda David Heatley nos seus comicbooks (todos eles directamente citados por Seth).
Os materiais usuais de Seth estão todos presentes. Personagens de meia-idade mas bons-vivants, e cuja paixão dedicada à banda desenhada, para além de um gozo aos verdadeiros coleccionadores, dos reais e muitas vezes patéticos (como todos os coleccionadores, cujo desejo é possuírem uma fatia de universo, serem um deus menor nesse seu mesmo universo), tanto atravessa a nostalgia por um tempo “de ouro” – que nunca existiu exactamente como se imaginara – como se aproxima à verve dos apreciadores e conoisseurs de vinhos antigos, exquísitos ou raros (deliciosa, a referência a um vinho “1928 St. Ogan”!). Wimbledon Green é um coleccionador de banda desenhada, misterioso, cujos gostos são “amplos mas elitistas por natureza” (p. 91), e cuja presença carismática ora conquista ora acirra, capaz de mobilizar pessoas a ajudá-lo a descobrir colecções completas de títulos obscuros, quase desaparecidos, ou até supostamente inexistentes (como o número um e único de The Green Ghost, uma espécie de Santo Graal dos bedéfilos norte-americanos). Escusado será dizer que todas essas referèncias são inventadas por Seth, tal como na busca pelo trabalho de Kalo em It’s a good life, if you don’t weaken, ou a famosa biblioteca de Hicksville, Nova Zelândia, divisada por Dylan Horrocks. Não será, por isso, difícil de conseguir fazer extrapolações e ligações a referentes reais, que ele também cita, ao falar de Batman e de Superman, de lojas existentes como a Beguiling, ou até surgindo ele próprio transmutado no papel do “vilão” Jonah…
Neste tipo de apocrifia, Seth está mais uma vez próximo de Ware, mas também de Sikoryak (que tem finalmente um site), se bem que em termos muito diferentes. Acho magistral a forma como ele cria todo um referencial sobre determinado título ou autor, conseguindo, graças às suas próprias experiências de autor, memórias de leitor e gostos educados, erigir todo um ambiente coeso e pertinente: veja-se, por exemplo, a “invenção” da série Fine & Dandy, atribuída a um Lester Moore. As pistas da filiação dessa série de banda desenhada cómica na “psique” da sua época é imediatamente sublinhada pela dupla Laurel & Hardy (apesar dos nomes lembrarem antes Amos & Andy), e depois segue-se um historial do título, “citações” de episódios vários, etc., com o intuito, conseguido, de nos fazer “crescer água na boca” em ler directamente essa série indicada... Hélas”, pura ficção!
Tendo o livro pranchas de formato pequeno, ainda assim Seth utiliza-as de uma forma extremamente compartimentada, com vinhetas regulares e pequenas, por vezes mesmo recorrendo à repetição da imagem do falante – síndrome “talking heads” – mas que serve perfeitamente para sublinhar a ideia de entrevista, da opinião dada dessas personagem sobre Green ou uma qualquer situação, e todas essas estratégias marcando um acelerado ritmo de leitura. É uma fórmula que não é apenas concomitante a Ware, já citado, mas também a alguma tradição europeia, que podemos encontrar deste as tiras infantis de Massimo Mattioli até vários dos primeiros álbuns de Lewis Trondheim. É esse ritmo que torna toda a diegese de um interesse inesperado. Enfim, à partida, julgar-se-ia que a história sobre a vida de uma personagem destas, e uma busca de vários coleccionadores pelo Green Ghost (um “fantasma” que jamais se reincarna, ou por outra palavra preferida dos narratologistas, um “McGuffin”), não poderia ser estruturada de um forma empolgante, mas Seth consegue-o, não fosse ele um leitor atento de Carl Barks, por exemplo (as peripécias em torno desse comicbook lembram as aventuras de um Tio Patinhas opondo-se a um Patacôncio ou um Porcolino, e, mais, também recorda a atitude de Patinhas perante os seus “tesouros”, não me mera acumulação e arrogância materialista, mas profundo prazer humano em saborear o prémio de uma busca ou de um valor humano que subjaz esse objecto). A estruturação em pequenos episódios, sub-plots, pequenas diferenças em torno de um mesmo tom, talvez moral, nostálgico, “limpo”, directo – tão próximo a uma vida de “backyard childhood” que compõe toda a filosofia de um Schulz (a quem Seth tem feito uma homenagem pelo arranjo gráfico da colecção dos Peanuts) – não o impede de explorar vários géneros que se aglomeram em torno de Green: desde a aventura ao undeground, do policial ao jornalístico, até mesmo pelo absurdo e o experimental (como na estória das páginas 104-105). [Nuno Franco alertou-me para uma entrevista em que Seth afirma nunca ter sido um leitor atento nem interessado na obra de Barks, preferindo antes a de John Stanley - o autor mais associado à Little Lulu - o que poderia anular as minhas palavras em relação à aproximação dos dois autores. Porém, não deixando de ser uma questão premente e que separa o discurso estético do biográfico-positivista, talvez o facto de Seth não ter sido um leitor directo e real de Barks não invalide o facto de se ter verificado um "trânsito de forças" entre os dois, quer se entendam essas forças como fluindo entre variados continentes, estabelecendo redes complexas de influência, tal como entendidas por Harold Bloom, quer se as vejam como formas múltiplas que se desdobram e vão reconquistando novos empregos e significados ao longo do tempo, mas fora dele, como os "sintomas sobreviventes" de Aby Warburg. Nada disto deve ser entendido como fantasmagorias facilmente derrotadas pelos cépticos, trata-se de uma aturada visão ampla e livre para além do positivismo histórico e dos saberes disciplinares, empregando métodos de trabalho e uma faculdade de entendimento que bebe de muitas fontes... Seth não foi capaz de ultrapassar o écrã - compreensivelmente irritante - das personagens Disney(C) para atingir o ouro de Barks, não obstante o seu gosto por Floyd Gottfredson. Todavia, ambos conceitos de forças permitirão dizer que Seth fez levantar esse écrã da melhor forma, que foi deixar-se habitar por uma força idêntica à de Barks, e que se revela não só nessas aparentes fórmulas de aventura (a saga, "the quest") como também no valor humano que elas acabam por revelar. Dito isto, agradeço a N. Franco.]
As cores, diminuídas a um mínimo, ora cinzentos, ora verdes, ora ocres, com um belo e denso trabalho de aguadas e sombras, apenas sublinha esse ambiente contínuo e as esperadas excepções, como a abertura das malas da colecção de W. R. Webb, que se tornam mais significativas. Os tons são típicos desta patina de nostalgia que Seth tem vido a desenvolver nas suas histórias, que procuram retomar esse “tempo falso” de um passado dourado. Ele mesmo diz que há grandes diferenças entre a sua arte e a de Ware (especialmente de Rusty Brown, mas também de Corrigan). Mas vejo-os como caminhos diferentes em direcção a um horizonte comum. Através de recursos mínimos, e bem diversos – Ware é mais conciso, sintético, geométrico, Seth mais fluido, de uma serenidade contemplativa -, querem ser o mais expressivos possível na sua comunicação desse olhar, necessariamente, solitário, e não desprovido de dor nos seus casos particulares, para o passado, para poderem então enfrentar de um modo mais protegido os dias de todos os dias...
Uma última palavra sobre o próprio objecto, cuja capa com dourados, cantos redondos, e figuras em relevo, fazem deste livro um belíssimo “objecto para meter na estante”, como diz Mário Moura, mas que tornam o acto de leitura – um acto físico em muitos sentidos e por todos os sentidos – também um acto sensual (se não o fosse, não os “levaríamos para a cama”). Posted by Picasa

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