Primo. Uma busca rápida e tipicamente enciclopédica fará notar que os dois grandes temas recorrentes de Pascin, nom de plume do romeno Julius Mordecaï Pincas, pintor da Escola de Paris, cidadão do mundo, ilustrador do Simplicissimus (“a melhor publicação ilustrada de todos os tempos”, de acordo com o mini-site da Coconino World), foram os cartoons (pequena e simples plataforma de traços breves onde cabem o riso, o sarcasmo, a escolha pelo detalhe mais importante, o gesto que tudo diz em pouco) e as mulheres (que, como diz a canção, è mobile...). E esses parecem ser os dois únicos elementos que Sfar propõe utilizar no seu Pascin.
Secondo. Existe um género (sobretudo literário, mas que todos os leitores de banda desenhada contemporânea reconhecerão ser utilizado em larga medida numa certa produção norte-americana, sobretudo, mas também francesa) relativamente recente a que se dá o nome de autoficção, termo cunhado por Serge Dubrovsky como sendo, não autobiografia, mas “ficção, a partir de eventos e feitos estritamente reais. Ou mesmo, se o quisermos, autoficção, passando da linguagem de uma aventura à aventura de uma linguagem em liberdade, fora da sabedoria e da sintaxe do romance, seja este tradicional ou novo”. Discussões à parte, que levam ao estilhaçamento desse suposto género em sub-divisões, mais ou menos precisas, mais ou menos discutíveis, aceitemos, com Arnaud Genon, que se trata de “práticas literárias da invenção e da fabulação do Si”. O que nos permite colocar sobre essa bandeira desde Yourcenar a Edgar A. Poe, de Borges até mesmo Dante. E na bd? Debbie Dreschler, David B., Baudoin, Killofer, Seth, Kochalka (mas não Joe Matt, Chester Brown, Jeffrey Brown, Marjane Satrapi, pois não ocorre o “desvio” ou a “aventura da linguagem em liberdade” – ponto discutível). Que tem isto a ver com o Pascin de Sfar, se a personagem principal é o pintor das primeiras décadas do século XX, e não o próprio Sfar, condição sine qua non para que se tratasse desse “género”? A questão é que esta não é a história de Pascin, mas do próprio Sfar-enquanto-Pascin.
Joann Sfar é um autor extremamente se não impressionantemente profícuo, e que se tem dedicado aos mais diversos tipo des de produção, sejam estes infantis (Sardine de l’Espace, Petit Vampire), juvenis (Socrate, Grand Vampire, Le Petit Monde du Golem, Donjon), ou mais adultos (Le Minuscule Mosquetaire, Le Chat du Rabbin, os seus Carnets dos instrumentos), passando ainda pela ilustração e comentário de clássicos (O Banquete de Platão e o Cândido de Voltaire, até agora), e ainda a criação de novos géneros como L’Homme-Arbre – cunhado como “High-fantasy hassídica”... Os títulos e os projectos sucedem-se, e é sobejamente conhecida a sua incapacidade em parar de desenhar. Tal como Baudoin, também Sfar pensa pelo desenho (veja-se Ukelele e alguns dos diálogos de Pascin que discutem esses mesmos problemas e possibilidades). Sfar estudou filosofia e não há nenhum título em que ela não surja, de formas ora menos ora mais veladas, mas sempre buscando-se uma explicação pertinente e necessária à história em questão. Pascin não é excepção.
É curioso que as primeiras palavras ditas intradiegeticamente, e por uma das modelos/amantes do pintor, seja o seu nome verdadeiro. É como se surgisse para ser apagado de imediato, duplamente. Primeiro pelo pseudónimo pelo qual é mais conhecido, “Pascin”, e depois por esta não se tratar da personagem real e histórica, vivendo numa biografia estudada, mas se transfigurar numa personagem fictícia que revela mais do próprio Joann Sfar do que da época supostamente retratada. Este Pascin vive obcecado com o desenho, preferindo-o mesmo à pintura – que nos dizem as enciclopédias ter feito. Este Pascin vive obcecado, à vez, com cada uma das mulheres com quem vive e que vive – apesar dos dados biográficos apontarem para uma vida mais regrada e pautada por viagens, não obstante os obrigatórios excessos dos anos vinte, das cenas de Paris, Nova Iorque, e o final suicida do pintor. Este Pascin, o que habita entre as páginas criadas por Sfar, é um avatar de um diálogo possível entre o próprio autor e a sua obra. Através destas peronagens, dos espaços que percorrem, dos episódios superficialmente desconexos e variados que se sucedem, do convite às palavras dos outros (Sandrina Jardel), servem um só propósito que é a criação de um tipo muito particular de diário gráfico. A ideia de diário com Pascin é reforçada pelo facto de Sfar recorrer a toda uma série de registos gráficos, quer em termos materiais – carvão, aguarelas, lápis, tinta, china, outros? – quer em termos de expressão – ora mais livres, quase próximo de um esquisso de estudo inicial, ou apontamentos a utilizar e estruturar mais tarde, ora mais “arredondados”, em que surge uma preocupação em finalizar a figuração, ora deixando as figuras flutuar numa página quase branca, ora preenchendo-a ao máximo com objectos, pessoas, ambientes, sons, aromas, dobras nas quais se esconde um mundo. Essa flutuação revela-se na própria estrutura diegética, com episódios mais longos, pausados, em que as personagens se ficam durante um extenso momento para criarem um laço indelével com Pascin, com desvios curtos que esboçam fugazmente o contexto histórico-real, com descrições que fazem emergir toda a importância interior do espaço em que Pascin e os seus se movem, com pinceladas generalíssimas para os fazer simplesmente passar como corpos visuais. Por vezes surgem personagens que jamais se cruzam com Pascin, como o misterioso austríaco e a sua “mulher silenciosa” (Será o conde de Saint-Germain?), mas que servem no entanto para aprofundar a rede de relações da personagem, colocá-lo num determinado universo diegético próprio de Sfar (que estabelece um “universo ficcional” que atravessa os seus vários títulos e bebe muito do esoterismo de várias culturas, sobretudo o judaico como não poderia deixar de ser...).
É uma fonte de surpresas o facto de que, apesar da sua estrutura fragmentada não se aparentar em nada com, por exemplo, Wimbledon Green ou com Ice Haven, pois não se trata de focar em “pontos específicos” de uma “trama maior”, mas sim linhas diferentes de uma mesma rede que se mantém invisível no fim, ainda assim Sfar nos apresenta uma magnífica e refrescante obra de banda desenhada. Não é, de facto, um livro que possa agradar a todos, pois a sua leitura é difícil e desagregada, e, mais uma vez, como um “passeio nos bosques da ficção”, passeio que se preza mais a nos perdermos e sentarmos à sombra das árvores que vamos encontrando do que preocupados com a saída dele. Mas parece-me tratar-se de uma das obras mais, “acabadas” parece-me uma palavra tendenciosa, talvez “conseguidas” sirva... É uma espécie de confessio, de apresentação de um programa, de uma vontade de Sfar, o que representa para ele a existência através do desenho, desvio de um discurso demasiado racional, e que pode revelar âmagos bem diversos do que nos permite a inteligência. Não é que seja “superior” a qualquer arte, pois apesar de Sfar-Pascin utilizar o seu humor para desprezar o trabalho dos seus companheiros e confessar que “tenho a minha pena, a minha tinta, algumas cores e isso basta-me”, o facto é que Sfar-autor dá a palavra aos outros para expressarem as suas perspectivas (veja-se o diálogo entre Antanas e Chaïm Soutine no seu “combate de machos”). No entanto, tudo isso é-nos transmitido... através dos seus próprios desenhos!
Enfim, Pascin revela-se como uma personagem que expressa os seus sentimentos e ideias através do desenho, reservando todo o resto da sua expressão para relações imediatas, chãs, por vezes violentas, com todo o mundo que o rodeia. Do que exala um cheiro o mais humano, vivo possível...
Nota 1. Há um livro companheiro, Java Blues, que se presume uma colecção de aguarelas, coloridas, de uma vertente basta e graficamente erótica, numa continuação de um dos interesses mais marcados do Pascin de Sfar. Nota 2: a capa aqui colocada corresponde à edição recente e integral. Apenas tendo lido os seis volumes da colecção Mimolette, desconheço se existirá material inédito ou rearranjos nesta nova edição. Agradecem-se comentários e informações a esse (ou outro) respeito.
30 de janeiro de 2006
Pascin. Joann Sfar (L'Association)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:44 da manhã
Etiquetas: França-Bélgica
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