Uma das técnicas mais famosas de desenho a lápis é a criação de texturas e da ilusão de volume através de tramas de linhas paralelas e de linhas cruzadas, mais ou menos próximas, o que carrega ou aligeira o efeito desejado. Visualmente, esse é o território do trabalho de Tom Gauld, ilustrador e autor de banda desenhada inglês, com muitos trabalhos curtos espalhados por várias antologias (Project: Telstar, Ganzfeld, Kramer’s Ergot) e com um amplo trabalho comercial (incluindo a capa da edição inglesa de O Homem Duplicado, de Saramago). Ele desenha as personagens, os espaços e os objectos, com linhas seguras e mais espessas nos seus contornos, preenchendo-os (ou não) com essas várias linhas. No entanto, parece-me ter uma técnica muito particular, que consiste em desenhar pequenas linhas desirmanadas ou interrompidas, que faz emergir uma visualidade muito especial, mas distinta e clara, como se verá de imediato na primeira vinheta deste livro.
Gauld é também conhecido por se inscrever naquela tradição de um desenho simples, quase infográfico, a que se desejarem se dá o nome de minimalismo, não obstante o já aqui dito sobre esse(s) termo(s).
Quase toda a sua obra de banda desenhada visa a representação de situações muito simples, mas caricatas pela sua absoluta “normalidade”. Por exemplo, Gauld criou uma série dedicada à vida diária de grandes vultos da Literatura, mas presenteia-nos com episódios domésticos, em que resolvem fazer uma pausa da escrita ou são interrompidos por alguém. Nas suas histórias de robots ou astronautas, as preocupações centrais dessas personagens é viver mais um dia, não se aborrecerem, garantirem alguma maneira de passar o tempo. Guardians of the Kingdom não é diferente. Apresentam-se episódios curtos, não mais de quatro pranchas, por vezes, uma, intituladas simplesmente por um marcador temporal. Que testemunhamos? Algures numa fronteira entre dois países, ergue-se uma imensa muralha, pontuada por pequenas fortificações. Nem de um lado nem de outro se vêem sinais da presença humana. Pela muralha passeiam-se os dois colegas guardas. Kafka é sempre apontado como a grande referência de um absurdo que gera situações as quais emergiram já não se sabe bem porquê mas se respeitam por uma inércia, a qual sobrevive pelo temor que “quebrar as regras” induz a todos, também sem se ter muito em mente que tipo de sanções existiriam; outra das suas características, menos imediatas, é o humor: Tom Gauld parece herdar a verve cómica desse tipo de absurdo, em que dois guardas nada têm para fazer, nem nada para proteger, nem nada que recear pela simples razão de não se passar nada. É hilariante quando numa das rondas, ambos deixam de saber de que lado da muralha se encontra o “seu” reino, ou quando “brincam” um com o outro, fingindo serem dois soldados cruzando-se... Num dos três “very small comics”, há um, Invasion, que mostra uma espécie de perspectiva invertida, a do invasor, mas ainda assim sob o mesmo tom.
As coisas passam-se deste modo...porque sim. Gauld, com o seu estilo calmo, pouco aparatoso, e com uma muito especial atenção para o detalhe quando o detalhe se torna central à acção (mas apresentando ainda soluções diversas dentro desses “limites”), faz um retrato fiel não só do ramerrão destes, como de todos os “guardas” deste mundo.
6 de fevereiro de 2006
Guardians of the Kingdom. Tom Gauld (Cabanon Press)
Publicada por Pedro Moura à(s) 2:18 da tarde
Etiquetas: Reino Unido
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