O que significa ser-se “amador”, em termos de criação de banda desenhada, em Portugal? Esta palavra pode revestir-se de três acepções, logo à partida. Duas são óbvias, a de “não-profissional” e a de “amante de determinada prática”. A primeira acepção, penso que não nos será difícil descobri-lo, obrigar-nos-á a dizer que quase todos os autores de banda desenhada em Portugal são amadores, já que raros são os que fazem desse seu métier a sua fonte principal (e jamais única) de rendimentos. O segundo significado, serão os próprios autores a querer empregá-la, já que não existirão artistas a exercer neste campo da criação e da expressividade que não partilhem de uma inclinação, um gosto, uma coincidência entre a vontade e a possibilidade, quem sabe uma paixão, por esse mesmo modo.
Um terceiro significado, e que nos importará mais, é o seguinte: o de não obstante a vontade, o eventual talento, a dedicação, não serem capazes de escapar a um círculo determinado de expectativas – cruas, normalizadas, correntes, de “chavão” – e quebrá-lo para se tornarem “pessoais”.
Este novo fanzine (de dois “lados”) que surge com o apoio de várias plataformas afinas à banda desenhada transporta as criações de um grupo pequeno, mas coeso de alguns amigos (a maioria do sexo feminino, na verdade) que partilham o fascínio pela mangá, ou banda desenhada japonesa, e que desejam vingar na criação dessa mesma arte. É sempre bom produtivo explicitar que “mangá” é um nome tão geral como “banda desenhada” e que pode englobar em si as mais diversas produções, qualidades e propósitos e forças. No entanto, estamos aqui perante um entendimento algo mais restrito, uma mangá que se cinge às suas características mais visíveis, mais famosas, quiçá mais comerciais, e que não passam pela informação de um Tsuge, de um Taniguchi, de um Tatsumi (ficamos pelos Ts...) ou até mesmo de talentos mais recentes como os de Kazuichi, Iô Koruda, Junko Mizuno, Kiriko Nananan ou mesmo Terada Katsyua. No entanto, eis que surge já aqui o problema.
Um dos motos que poderia estar a presidir todas estas produções seria a de “coelhos presos num foco de luz.” O fascínio, até etimologicamente, significa um comportamento de captura, sob uma força que nos ultrapassa, e que não conhecemos e no qual caímos na mais plena das atitudes acríticas. Isto é, não há “personalidade” (ou até mesmo “pessoalidade”, se o virmos como fases psicológicas necessárias ao desenvolvimento da pessoa), apenas epigonismo e estilo.
Os trabalhos apresentados, pelo menos em termos gráficos, são competentes. Disso não há dúvida, e mesmo Vanessa Nobre mostra uma grande capacidade inventiva em termos de estruturação pertinente da prancha, acima dos demais, e Ricardo Reis (não o da Lídia) mostra não vergar um traço pessoal a uma fasquia mais homogénea, se bem que não apresente material suficientemente claro para entender quais as suas forças. E alguns dos argumentos, não obstante o não serem nada claros - tratar-se-á de um episódio ou de um “teaser”? Começam todos in media res ou desenvolver-se-ão mais tarde? – a desculpa de ver num site o que os complementa não abona à vivência do fanzine, se bem que pertença a um público muito especial cujo comportamento e hábitos culturais não fazem – ainda bem – distinções entre o que é produzido em papel e o que o é online – denunciam uma inexorável determinação de crescer, como no caso dos argumentos de Miguel Martins, não obstante o tipificado “poema juvenil” que constitui Aquaroja.
Mas o facto é que, sendo criações de dojinshis portugueses que tentam seguir uma linguagem fortemente associada ao Japão culturalmente, pergunto-me se conseguirão fazer criar um bom casamento, ou se não ficarão somente como “epígonos de algo que jamais serão”. As “culturas não se podem traduzir” é uma forte e incontornável verdade. É uma pena, porque pessoalmente são pessoas que vibram de força e vontade em criar, mas acabam por se afogar no excesso de desejo de agradar a esses objectos, de todo o modo inalcançáveis. Nunca serão japoneses. Tal como a escola de samba de Sesimbra, por melhor que seja na imitação, não se tratando de uma tradição portuguesa (independentemente de raízes comuns ou mútuas influências), e não havendo correspondência de desejos com os restantes portugueses, jamais será de brasileiros”.
A má impressão encurta o prazer que se pode atingir com alguns dos trabalhos, mas em termos de banda desenhada há um outro peso negativo: alguns dos trabalhos são demasiado “ilustrativos”. O que significa que, apesar de um desenho em particular ter todos os ingredientes para fazer dele um “belo desenho”, não escapa dessa naturalidade de “desenho”, não se transformando numa peça organizativa de uma banda desenhada, e não se tornando uma espécie de ser vivo que connosco comunique a sua vida de viver independentemente do seu autor. Estão demasiado presos, mais uma vez, ao desejo que as fez crescer, e vergam sobre esse peso.
Este é uma situação complicada. Pessoas com um franco talento material, mas cuja pulsão criativa não parece encontrar uma saída produtiva e pessoal. Em todo o caso, pode ser que esta minha interpretação esteja regida por alguma espécie de preconceito que eu próprio não percepciono em mim, e me impede de ver o valor de termos bons mangaka portugueses.
Os “tutoriais” no final de cada “lado” deste fanzine são muito bem pensados, deverão ajudar muitos bons miúdos em início de “carreira”, mas convinha que revissem melhor a estratégia, já que o intitulado “como limpar uma imagem obtida por scanner” apresenta fases sucessivas de uma imagem limpa... mas sempre com a mesma qualidade de imagem! Deslize?
17 de fevereiro de 2006
KZine no.1, A&B. AAVV (Kzine)
Publicada por Pedro Moura à(s) 9:59 da tarde
Etiquetas: Antologias, Portugal, Zines
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