De todas as debilidades que possam existir da condição intelectual, a estupidez (suspensão dos sentidos), a ignorância (não-saber), e a ingenuidade (natural, uma liberdade da terra), é a segunda a mais feliz, já que a primeira jamais se ultrapassa e a última apenas com choques brutais. A ignorância, porém, é facilmente corrigida com a aprendizagem, o tempo, a perseverança. E com gestos de desvendamento súbito, como ocorre com esta edição, pela respeitável Seuil, de um livro de Oji Suzuki, de quem jamais vira trabalhos.
Muitos dos preconceitos que existem em vários quadrantes – até em pessoas respeitáveis e curiosas intelectualmente - contra a mangá (de resto, um termo tão genérico no Japão quando “banda desenhada” entre nós) deve-se à sua produção mais visível ser fraca e dar azo a lugares-comuns e epígonos. Como se o mesmo problema não ocorresse em qualquer outra área da produção humana... Espero que tenha neste espaço mostrado alguns exemplos fora desse “baralho inconsequente”, com óbvios destaques para Taniguchi, Yoshihiro Tatsumi, Iô Koruda, também, a um nível diferente, Tezuka, mas mais marcantemente ainda, Yoshiharu Tsuge.
Das várias histórias que se apresentam, encontro duas linhas de interpretação, dois “fios vermelhos” que as atravessam. A condição da criança é que quando se é criança não se “brinca a”, mas “é-se”. A maioria destas histórias fala de crianças que o deixaram de ser, cujas circunstâncias históricas e sociais (um Japão lentamente libertando-se da miséria e da derrota da guerra, e crescendo para o mundo) obrigam-nas a deixarem de o ser mas que, por uma convivência súbita, um encontro inesperado, a visão de um brinquedo que não podem ter numa montra, um sonho, as relançam ou permitem retornar a essa condição. Ou é como se fosse uma condição que afinal não haviam abandonado totalmente, mas só o descobriam agora.
Um outro caminho é o de se tratarem de contos que se partilham enquanto também se partilha um copo ou dois, histórias de terror, de perdas, de desaparecimentos de crianças, sendo recorrentes certas fórmulas e expressões linguísticas que a isso apontam, ou a figura do homem da gabardina, uma espécie de predador, de raptor de menores (que abarcaria o nosso Lobo, a Baba Yaga russa, a Kitsune ou raposa japonesa, e até o Pregador de A Noite do Caçador, filme de Charles Laughton), com a ligeira diferença de que se trata de uma figura simpática, que dá a ver à criança um outro mundo. No folclore japonês existem umas personagens a que se dá o nome de tengu, uma espécie de homens-milhafre, de grande nariz, que tanto raptam como salvam crianças desaparecidas (na costumeira e confusa distribuição equitativa de características “maléficas” e “divinas” nessas criaturas), e podem lançar os incautos numa espécie de loucura que os deixa perdidos em florestas... Apesar destas serem histórias curtas e individuais, tais factores permitem-nos agrupá-las num ciclo sobre esses temas.
Ligando estes dois fios interpretativos, talvez esse raptor das crianças não seja mais do que o próprio Tempo...
Uma das pranchas mais belas de todo este livro é a que se encontra na página 48, cuja interpretação se desdobraria quase infinitamente. Faz-me recordar um dos vários pontos em que discordo fundamentalmente com Scott McCloud na sua tipologia de transições entre vinhetas, quando fala do non-sequitur (não obstante a sua frágil retracção/explanação). É um problema, obviamente, do processo de McCloud, falível logo à partida, de utilizar exemplos descontextualizados e/ou fabricados por ele ad hoc para provar a sua ideia... Mas prender-se-á com outras questões ainda mais profundas, que vejo como a ausência do surrealismo na banda desenhada (cuja estruturação implica graves dificuldades aos mesmos jogos ditos “automáticos”), ainda que possa ocorrer uma ambientação onírica (que terá a ver antes com uma qualidade plástica, sugestiva). Nesta prancha, tal como ao longo de várias sequências deste volume que reúne mais de 10 histórias curtas, surgem desses momentos fugazes cuja lógica apenas emerge da sua convivência interna à narrativa e da empatia estabelecida com o leitor.
Ainda incluído neste volume, encontrar-se-ão dois estranhos e também oníricos contos ilustrados, e uma série de ilustrações aparentemente desconexas, mas de um significado simbólico oculto, mais uma vez nos lançando nos territórios do sonho da razão. Trabalhos cuja sugestividade tanto pode nascer da natureza dos elementos da própria imagem fixa (como numa alegoria, da qual a Melencolia I de Dürer surge como paradigma eterno) No Ocidente, essas imagens foram culto da criação de um Max Klinger ou um Max Ernst, e até certo ponto também por Raymond Roussel (as ilustrações que encomendou a um tal de Zo para o livro Novas Impressões de África) e, mais recentemente e entre nós, um autor como Tim Morris. No Japão, poder-se-iam referir o “Anuário das Mansões Verdes” de Utamaro, as várias séries dos “grotescos”, “fantasmas” e “espelhos” de Yoshitoshi, e, porque não?, as mais famosas séries dos “Fuji” de Hokusai ou Hiroshige...
Ainda um recurso gráfico interessante é o de palavras que se confundem com onomatopeias, ou parecem ser cantadas ou se assemelham à chuva... se funciona na perfeição e na mais normal das legibilidades no idioma japonês, levanta ligeiras dificuldades na sua tradução/legendagem; a manutenção do estilo gráfico original parece-me uma dolorosa porém boa opção.
Uma nota aponta que Suzuki é contemporâneo de Tsuge, o que não nos surpreenderá, uma vez que este segundo influenciou uma das linhas de estilo mais recorrentes da Garo, de que Suzuki é visivelmente cultor. Todavia, se aqui também se passeia pelas ruas secundárias das pequenas vilas, pelos sítios com menos luz, menos brilho, talvez sirva de maior mergulho não numa escuridão social, mas a das almas dos homens, na sua ignorância, buscando nessa profundidade os tesouros e brilhos que sempre restam... a infância, o sonho, as recordações...
Nota: uma história de Suzuki foi adaptada ao cinema (A rapariga da moto), e serão esses exemplos de excelentes aproximações entre os dois modos, como em A History of Violence, por exemplo, que não terão necessariamente que passar pelos objectos de maior espectacularidade (Batman, X-Men, Superman, Hellboy, Liga dos Cavalheiros Extraordinários, Quarteto Fantástico, etc.), muitas vezes descambando em objectos frívolos e desmiolados...
Nota 2ª: tinha feito aqui um erro atroz, trocando o nome do poeta Raymond Roussel pelo do filósofo Bertrand Russel. É o que dá citar de cor e passados anos das leituras e ter fios trocados no cérebro. É que além de passar por ignorante e burro, passava por ignorante e burro. Talvez o seja. As minhas desculpas aos leitores, a Roussel, a Russel. E obrigado ao Nuno Franco por me ter alertado à estupidez humana.
22 de fevereiro de 2006
Bleu Transparent. Oji Suzuki (Seuil)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:41 da tarde
Etiquetas: Japão
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