ou Existe Minimalismo na Banda Desenhada?
Talvez pareça um tremendo disparate e uma inutilidade absurda dizê-lo, àqueles que conhecem as respostas ou já pensaram a questão, mas penso que ainda merece o esforço voltar-se à seguinte afirmação: a banda desenhada é um modo de expressão particular. É verdade que partilha elementos ou estratégias lógico-formais com outras artes (a literatura, o cinema, as artes visuais em geral e a pintura em particular), mas é importante que essas unidades lógico-formais não sejam instituídas para depois as elevar a uma espécie de modelo aristotélico (modelação “a seguir”), precisamente porque a arte instaura um território de desterritorialização, de estranheza, no qual o Logos resvala, perde a sua aparente capacidade de tudo captar. Uma imagem que sobrevive, isto é, vive mais, para além da capacidade – limitada – da razão a subsumir a um género. Não obstante, portanto, essas unidades serem coincidentes com os de outras artes, a banda desenhada possui os seus mecanismos próprios. Mais importantemente, possui as suas crises próprias. As crises da banda desenhada não são as do cinema, sua mais próxima irmã quer em termos cronológicos quer em termos de ter nascido no seio da sua própria experimentação (ainda que não filhas do mesmo pai, a saber, duas Tecnologias diferentes). As crises pelas quais a pintura atravessou não são as que a banda desenhada tem de experienciar para… “crescer”, “evoluir”, a banalidade do mês que preferirem. E essas coincidências podem ser tão ilusórias e insistentes e inflectidas por tantos canais, que não nos surpreende de todo que ocorram também nas nomenclaturas. É o que me parece acontecer com este termo nos seus empregos em variados campos da criação, ainda que tenha em conta que poderão dizer que essa aproximação será apenas nominal, e que apenas nos lança em mal-entendidos. Seriam continentes iguais para conteúdos muito diversos. E com Wittgenstein sabemos que as mesmas palavras-invólucro podem ter conteúdos diferentes em dois diferentes “jogos de linguagem”, sendo o seu resultado, precisamente, esse expectável mal-entendido.
Um desses mal-entendidos parece-me ser o abuso da palavra “minimalismo” quando aplicada a uma certa linha de criação de banda desenhada contemporânea. Em primeiro lugar, aborrece-me a tentativa de classificações que sempre surgem a cada momento, como se uma qualquer teoria de géneros, ou uma estratificação pelas superfícies nos ajudasse de algum modo a ler melhor a banda desenhada, quer fruindo-a com prazer quer remetendo-nos através dela a um discurso mais geral sobre a História e a Vida das Imagens (e, logo, da Cultura). Ajudará, talvez, a arrumar as prateleiras. Mas como terão experienciado todos aqueles cujos gostos e aquisições são múltiplas, as arrumações de prateleira mudam de tempos em tempos, respeitando algo que se metamorfoseia em nós, e que é raro mantermos um qualquer princípio apriorístico durante um largo período de tempo.
Depois, porque essa tentativa em nomear de uma forma mais específica uma qualquer característica acaba por cortar, necessariamente, a sua inscrição junto a outras tantas formas. É certo que falo eu mesmo em “tradições”, “agrupamentos”, até em “escolas”, “filiações” talvez… Todavia, tento fazer disso um uso livre e múltiplo, que permita todo o tipo de inflexões possibilitadas por cada obra em questão. Não penso que quem use este termo de Minimalismo – e eu mesmo já o fiz, aqui – o faça fazendo ligações directas às artes plásticas (cujo grande figura de proa foi Donald Judd) ou à música erudita contemporânea (com variadíssimos famosos compositores). Convirá, ainda assim, procurar entender que poderá significar essa palavra, forçosamente de uma maneira o mais concisa possível, e tentar compreender se se aplicará à banda desenhada, e aos autores usualmente a ela associados, em especial o autor-desculpa ao presente ensaio, sumo pontífice do estilo gráfico com esse nome outro de minimalismo, John Porcellino, nesta sua recente antologia, The Diary of a Mosquito Abatement Man.
O termo de “Minimalismo” é algo conturbado, apontando regra geral para um despojamento, uma redução de uma dada linguagem – pictórica, sonora, propriamente linguística, narrativa ou outra – aos seus mais essenciais elementos, quer formais quer de significado, procurando assim uma “destruição da ilusão” das convenções da linguagem, do belo, dos contratos sociais. A sua aplicação difere, porém, se aplicada às artes visuais – nas quais a redução a uma mão-cheia de materiais é mais visível, como em Donald Judd – se à literatura – diminuindo a linguagem à sua comunicabilidade extrema e “pura” (oscilando desde o Kanzleideutsch de Kafka aos versos de um “average English” de R. Carver?) – se à música – na qual a repetição e a composição matematizada e serial são rainhas, desde Terry Riley.
Um conceito, mas intimamente relacionado com o grande advogado do minimalismo nas artes visuais, Donald Judd, é o de “objectos enfaticamente auto-referenciais que unem forma, material e conteúdo, encontrando-se assim entre a matéria e a mente, separadas de ambas, não representando nenhuma”, para citar de modo oblíquo Prudence Carlson, num texto sobre Judd, de um catálogo do CCB, 1997; nesse mesmo catálogo, num texto do famoso Hal Foster, encontrarão mesmo um “princípio do Minimalismo”, que retraduzo aqui: “Característico de uma forma [gestalt] que após se instituir exaure toda a informação sobre si mesma, enquanto forma [gestalt]”.
Enfim, que poderá significar tudo isto? É querer fazer-se crer na existência de uma possível redução do número dos traços gráficos ou da informação visual como que, concomitantemente, erigindo uma espécie de “notação” cuja chave é acessível a um primeiro, breve olhar. Isto é, numa palavra, a sua redução ao signo. (É esse o projecto filosófico, por exemplo, do Grupo µ, no seu Traité du Signe Visuel). No entanto, e já muito foi escrito e debatido sobre o caso, melhor do que alguma vez conseguiria fazer (no campo da banda desenhada, é Harry Morgan quem melhor expôs este problema em Principes des Litteratures Dessinées), pode-se tornar inteligível essa impossibilidade, se não “erro”, na seguinte consideração, que coloca em duvida a emergência de uma semiótica geral: o signo visual, ao contrário dos linguísticos, não tem dupla articulação, isto é, não pode ser decomposto em elementos menores do que os mínimos que ainda possuem significado, e que poderiam ser, por se diferenciarem entre si, elementos estruturais. Tais como os fonemas “b” e “p”, não tendo um significado em si, alteram estruturalmente – e, logo, o significado – às palavras “bato” e “pato”.
Se tal fosse possível, e se se erigisse um dicionário visual, então estar-se-ia correcto sem dúvida na consideração dos rostos (mas pouco mais) das personagens em Hergé ou de toda a série Peanuts, de Schulz, como “signos”. Assim, apelidar-se-iam de minimalistas não só Porcellino e José Parrondo, como Chester Brown (sobretudo em Underwater), Ron Regé Jr., Pauline Martin, Sam Henderson, Calpurnio, Ivan Brunetti... mas porquê pararmos aqui? Jeffrey Brown, Liz Prince, e algum do L. Trondheim (os primeiros álbuns?)... Quer isto dizer, portanto, que tudo se diz e tudo fica por dizer.
Devemos, informados por alguma da mais contemporânea filosofia das artes (grande peso no sobejamente citado Georges Didi-Huberman, retomando os estudos quase-esquecidos de Aby Warburg), riscar a ideia do signo – estrutura solitária, fixa, inflexível – para atingir a do sintoma. O sintoma é um conceito complexo, que não sei se terei o direito de tentar explicitar, pois incorrerei certamente na sua redução, quiçá mesmo incompreensão e consequente banalização. Trata-se de uma forma, uma plasticidade, que revisita o mundo de um modo inconsciente, uma presença que retorna não obstante a ilusão contínua de estarmos perante uma “evolução” – uma evolução dos géneros, das artes, das linguagens, da cultura, também da história... É um conceito, mais do que trans-histórico, a-histórico, e que no seu constante movimento perde a sua identidade, fazendo o seu significado proliferar, sobredeterminar-se, mesmo de um extremo ao outro (por exemplo, no caso geral que aqui abordamos, uma personagem desenhada com um número reduzido de simples traços pode ser um gesto visto como “redução à simplicidade sígnica” ou como “sublimação à essência pura”). “As imagens também suportam reminiscências”, para citar um dos capítulos de Didi-Huberman em L’Image Survivante, precisando-se que a memória não é o retorno do mesmo, mas um traço de memória que sobrevive. Aí reside o nosso trabalho: ter cuidado para não encontrar numa “mesma” forma o “mesmo” significado, mas estar alerta à inconstância da memória, a todo o corpo em que se insere esse “falso órgão” (v. mais à frente), cujo funcionamento pode não estar a obedecer a nenhuma norma generalizável. Entendam que isto faz parte também de uma contínua investigação que não encontrou ainda – nem poderá jamais cessar? – o seu termo.
Então, este, o sintoma, não deve ser entendido enquanto síntese, como um texto/objecto acessível a uma descodificação... Ele é incompreensível em si mesmo, como um rosto de uma pessoa que não conhecemos ou acabámos de conhecer. Só pode, só deve, só exige ser interpretado. Como todo e qualquer obra artística, afinal. O minimalismo de Porcellino será o mesmo que o de Trondheim das primeiras obras – os experimentalismos e iterações oubapianas ou para-oubapianas de Psychanalyse, de Moins d'un quart de seconde pour vivre (com Menu), de Le dormeur ou a tira que abre o seu site actual - ?
Terá antes a ver com o seu emprego, o seu uso e fim? De novo caímos nos termos de uma teoria de géneros. O minimalismo implicará necessariamente uma diegese mais adulta e introspectiva? Assim, considerar-se-á todo o Jeffrey Brown (com o complicado Bighead no meio, o seu próprio Superfuckers...) e toda a Maaike Hartjes mas não Joann Sfar, cujo “estilo” é, afinal, idêntico, de uma caligrafia quase viva? Ao considerar parcialmente Sfar, seria a sua série Pascin que estaria no centro da atenção, ou os Diários “dos instrumentos”? Seria permissível incluir o uso do seu traço em Le Chat du Rabbin ou mesmo em Sardine de l’espace (na verdade, ligeiramente diferente nos primeiros livros)? Será por estes últimos títulos terem um público – um fito – mais infantil, que se acabam por relegar da primeira consideração? Ou devemos estar antes atentos à forma e ao seu despojamento, incluindo assim Ariol (Guibert e Boutavant), Spiral-bound (Aaron Renier), mesmo que estes atravessem o estratagema comum de antropomorfizarem animais, logo não passando pela “destruição de ilusões”? Mas o desenho, um desenho, é já uma formatação, uma estruturação (agencement), uma escolha dos elementos em relação aos referentes reais da experiência dos autores, logo, uma ilusão de uma qualquer espécie. Se se trata de “redução” de um material existente, então porque está Schulz na lista central, e não Gerchner, quando trabalha sobre um álbum de Tintin (T.N.T. en Amérique)? Onde cabe aqui Herriman e as suas ante-oubapianas variações (na acepção musical do termo) e despojados/diferenciados cenários?
Se nos ficarmos pela autobiografia como género temático (genera propriamente ditos, pela tradição latina e medieval) por excelência do género formal (já associado a um significado instituído pelos gregos, com eidos, a “forma”) do minimalismo, devemos, em primeiro lugar, pensar nas sobejamente conhecidas propriedades da autobiografia, a saber, as semânticas – nas quais entendemos ser o autor real e histórico a personagem principal e/ou narrador – e as pragmáticas – que apelam para um “falar verdade” e não “criar ficção” (se bem que essa “verdade” seja, pelo acto de atravessar uma estruturação, discutível).
As questões imediatas são: se o minimalismo é um “género formal” então não se poderá esperar um simples emprego num único (ou um grupo restrito) “género temático”, mas igualmente na mais escapista das ficções – como José Parrondo, Matt Feazell, Simone Lia e Tom Gauld o fazem cada um a seu modo; se se trata de uma reductio ad minimum, a partir de um suposto “material pré-existente”, então muito do que se considera como minimalismo – incluindo Jeffrey Brown – não o é, pode até nem existir.
E como entram casos mais complicados? The Angriest Dog in the World, de David Lynch, onde a vinheta é sempre a mesma, mudando apenas o texto dos balões?; Get Your War On, de David Rees, no qual se usa um número mínimo de desenhos típicos do clip-art, onde apenas o diálogo muda?; Red Meat, de Max Canon, onde também rapidamente se esgotam as “combinações” e “variações” entre as “personagens-tipo”?; poder-se-á acrescentar a este círculo M, le magicien... de Mattioli, apesar da cor?; poderão tiras boçais como Dilbert, de Scott Adams, e Cathy, de Cathy Guisewite, pertencer à família, ou exerce-se um círculo mais restrito a partir de um juízo de gosto (aqui, presidindo o meu)?
O problema é que seja o entendimento o de uma criação da “essência” ou o de uma “depuração”, é uma quimérica ideia a de existir arte em “estado puro”. Pois enquanto estruturação (agencement), ela liga-se de imediato, em contacto íntimo, à sua própria materialidade – sonora, visual, de cor, linguística, etc. – que tem um peso próprio e circunstancial, e surge sempre ligada aos desejos, à “saúde” do artista (vontade, processo de trabalho, diálogo que lhe é próprio).
Se a “partes” se podem reduzir estas obras, estes traços, estes desenhos e organizações, será então para a fabricação de uma mecânica inútil. “Mecanismos”, sim, como gosto de utilizar pessoalmente, nas não enquanto “organização”, isto é, precisamente conjuntos de “partes” ou de “órgãos” que sejam substituíveis, ou em que a falha de um impeça um suposto sistema funcionar, etc. É um “todo em variação interna contínua”, para utilizar a imanência descrita de Henri Bergson... Elas, as tais partes, jogam-se a cada etapa, a cada específica obra, livro, prancha, vinheta... Metamorfose completa. Percepções novas, centrais, próprias a essa indeterminação que apenas surge nesse momento. São máquinas inúteis, como disse, pelo prazer quase-sensual (ou mesmo sexual) de experimentarem estes órgãos naqueles, e depois outra combinação logo a seguir, e assim sucessivamente, só para ver a que leva, a que sabe, o bem que sabe, como nos famosos inventos de Rube Goldberg. As nossas próprias “variações Goldberg”.
Eis o busílis de sempre: as divisões de géneros, que me parecem ainda se imiscuir por toda uma certa linha da discussão sobre a banda desenhada, é algo que tem sido colocado em causa já desde Lessing, passando por Croce, Todorov, Blanchot, num teor crítico-teórico, mas também se apresentando uma vertente de criação crítica e decisiva a essa dissipação, cujos nomes a apelar poderiam ser tão diversos (ainda que consensuais) como Novalis, Baudelaire, Rimbaud, Joyce, Blanchot novamente... Desde o berço da crítica, discutivelmente na Poética de Aristóteles, existem asserções que podem ser entendidas como normativas, apresentando-se quase como critérios apriorísticos a partir dos quais, restritivamente, se iriam colocar as obras concretas com as quais nos deparamos em “nichos” existentes, postulando-os a partir de uma teoria, para parafrasear Todorov (quem particularmente sigo aqui no entendimento de “género”). Porém, a cultura ocidental, de que a banda desenhada é indubitavelmente um produto, atravessou várias crises em relação às normativizações da arte, desembocando numa situação que Blanchot, numa famosa frase, retratou: “não pudéssemos nunca reconhecer a regra, senão através da excepção que a anula” (Le Livre à Venir). Que é como quem diz, só a excepcionalidade nos faz reconhecer retrospectivamente um género (abandonado, não-respeitado); a obra que respeita todos esses “princípios estruturais” é “invisível”, diluindo-se no seu próprio género, cumprindo perfeitamente o seu receituário, mas por isso, pouco ou nada notável. Ora isto é retornar à questão de ser a própria obra a criar a sua regra, de obedecer a razões intrínsecas, endógenas à sua própria criação. Voltando a Lessing, isto significa a produção da obra não em relação a critérios exteriores – disciplinares, académicos, normativos, de género – mas tendo em vista um só fim, o da beleza, ou, na sua fórmula expressa, célebre, de “Kunst um ihrer selbst Willen” (“Arte pela sua própria vontade”). Infelizmente, seria logo corrompida em filosofias românticas e ensimesmadas da “arte pela arte”, não precisamente a ideia de Lessing, que antes dava muito mais liberdade à própria obra de arte, não ao artista.
A distinção entre uma atitude dedutiva (impor géneros como receitas a cumprir) uma outra indutiva (ver géneros num corpus anterior) é o que leva Todorov e Ducrot, no seu famoso Dicionário das Ciências da Linguagem (precisamente no capítulo/entrada concernente a Géneros Literários), a proporem a consequente diferenciação entre uma teoria de géneros no segundo caso e uma instituição de tipologias no primeiro. É esta atitude que nos importa combater.
Qualquer tipologia, classificação, generalização, sistematização é, assim, possível, e dependerá mais do “jogo brilhante” do autor em questão, do que de verdadeiras “essências” do(s) objecto(s) sob estudo, supostamente supra-históricas, trans-circunstanciais, verdadeiramente universais, isto é, tal construção testemunhará acima de tudo “uma percepção sintética, não demonstrável, por parte do crítico” (Cesare Segre). Bastará pensar na pirâmide que Scott McCloud tenta estipular no seu Understanding Comics, sobre princípios axiais formais/conteúdo. O que não se pode é depreender a partir desse esquema – uma leitura possível e válida dentro de certos limites – uma combinatória normativa ou mesmo um instrumento demasiado rígido para ler os textos que se nos apresentam de novo (nem sempre respeitando uma ordem cronológica, pois descobrimos novidades retrospectivamente, como quando se passa a considerar algo até ao momento desconsiderado, desconhecido, etc.). Muito menos estabelecê-lo como uma grelha de criação. (Para que se entenda bem, não penso ser esse o objectivo de McCloud; trata-se somente de uma válida maneira de ele procurar compreender o encontro da “linguagem mista” que a banda desenhada permite).
Por essas razões, é-me difícil instalar Porcellino (ou outro qualquer autor) num pretenso nicho, de nome “minimalismo”, e a partir daí ler a sua obra, as histórias reunidas em The Diary of a Mosquito Abatement Man. Olho não somente as formas nem os conteúdos, mas o holístico modo que ali se estrutura... Todavia, não obstante o modo como a “evolução” deve ser encarada – nenhum artista tem o seu estilo “congelado” desde o “início” – essas formas “minimalistas” não são as mesmas em todas as histórias aqui reunidas. A segunda secção é uma depuração de uma busca que só mais tarde se reúne como tal. Não estava programada desde o princípio, mas foi-se instituindo.
Nesta antologia em particular, até à história Chemical Plant/Another World, exclusive, os desenhos de Porcellino são de uma expressividade caligráfica, ou melhor, “esferográfica”, plena de uma simplicidade que nasce da necessidade de explorar apenas os conteúdos, uma “vontade em contar”. Mas Chemical Plant parece ser uma viragem drástica (notarão que não há um respeito pela ordem cronológica das histórias na edição do livro, mas antes uma preocupação pelo tom interno dessa busca, a-histórico, por isso essa viragem lê-se através da estruturação do livro em si). As formas quase infográficas não têm como fito a sua redução a um ícone (ou, lá está, signo), que sirva de fundo de leitura imutável: nas quatro últimas vinhetas dessa mesma estória, o preenchimento do espaço que circunda a carrinha por essoutro espaço “onírico/irreal” da fábrica é extremamente significativo e vivo, “sintomático”, até que apaga a presença da carrinha. Houve um “movimento de câmara”? Houve uma aproximação a um ponto espacial concreto na fábrica? Houve um crescimento quase-orgânico? Provavelmente verificou-se tudo isso, mas sobretudo uma condensação plástica da representação desse mesmo espaço e o modo como ele faz desviar a atenção de um eu para uma circunferência maior, mutação apenas possível na especificidade encontrada por Porcellino nesse mesmo momento. Que formas são essas então? Numa sua possível estratificação, são idênticas: espirais, linhas paralelas ora vazias, rectas e curvas (“tubagens”) ora atravessadas por listras (outro “tipo de tubagens”), riscos encimados por um “x” num círculo (uma “antena”), “chaminés”, “condutas”, “manípulos”, “volantes”... Mas na sua mais profunda contextualização na obra de arte são antes morfológicas, no sentido em que espalham ligações a leituras que só ocorrem, se tornam actuais, ganham contornos, no próprio acto de leitura, prometido que está na sua própria existência enquanto obra a ler...
Que há, permanentemente em curso, uma escolha, uma estruturação (agencement), torna-se claro ao se verificar que o provável acontecimento real de Porcellino se ter cruzado com um casal a ter relações sexuais num carro na praia de ComEd deu origem a dois modos quase opostos de duas estórias: “Sex on the Beach”, no qual o ponto de vista não só se centra nesse acontecimento, que se torna marcante por estar isolado de tudo o mais, e por se fazer representar com pontos de vista gráficos próximos e múltiplos das acções do casal; e “Waukegan”, apresentado como parte de toda uma experiência mais vasta, passando mesmo a segundo plano face à “transcendência” da tempestade súbita, e em que a vinheta que a representa, ainda que isolada em si de um texto dactilografado, se aproxima mais da perspectiva “real” de Porcellino (e onde a personagem se associa na cumplicidade do voyeurismo com o leitor, com as convenções do rubor).
Nota: Este livro fez-me protagonizar um engano. Quando o vi e comprei, pensava tratar-se de uma antiga antologia dos trabalhos apresentados no mini-comic de Porcellino, a série King Cat (que já vai no seu 65º número http://www.king-cat.net/), remetendo a outras colecções anteriores, The King-Cat Collection (Bülb Comix) e Perfect Example (Drawn & Quarterly)... Só depois, com uma atenção mais cuidada, é que entendi se tratar de uma antologia mais recente, reunindo uma específica linha narrativa que foi sendo tecida ao longo de dez anos, a saber, a do trabalho de Porcellino como exterminador de insectos. É como se fosse eleito um conteúdo recorrente, um complexo de eventos agrupados numa só ideia, para nos dar a conhecer uma possível “construção” da imagem do autor Porcellino – mais uma vez, insisto, não-cronológica, ou em que as leituras cronológicas se misturam, ora de eventos ora de criação, etc. O meu erro de interpretação a-cronológico não mais exprimiu essa inerente a-cronia da obra de um artista, como Porcellino, que não preenche escolas, mas cria-as consigo mesmo e encerra-as atrás de si mesmo...Tenho, portanto, dificuldade em responder de uma forma assertiva - seja esta negativa ou positiva - à pergunta que coloco como sub-título deste ensaio. Penso, porém, que é clara a minha inclinação para a primeira atitude, ma vez que permite mais espaço ao pensamento crítico, ao invés de uma mera preocupação em inserções disciplinares e formais.
30 de janeiro de 2006
Diary of a Mosquito Abatement Man. John Porcellino (La Mano)
Publicada por Pedro Moura à(s) 11:44 da manhã
Etiquetas: Autobiografia, EUA
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7 comentários:
Os meus parabéns! Magníficos textos.
apesar de achar que tens toda a razão em considerar um erro a colagem da bd ás artes plásticas e à história da pintura ( só quem desconhece é que faz essa associação, o que em Portugal pode significar TODO ou quase todo o meio bd só para não dizer TODOS os portugueses...)
acho que o termo minimal pode ser retirado no contexto do conceptualismo dos anos 60 e aplicá-lo como sinónimo de simplicidade, repetição e na utilização estrutura miníma, seja ela musical, movimento ou matéria certo?
parabéns Donald , vou frequentar-te....
Olá, Alice.
Pois, poderá ser descontextualizado, sem dúvida e tornar-se assim um sinónimo de outras coisas ("simplicidade", "repetição", "estruturas mínimas", "granular", etc.). Por isso eu coloco estas questões, não avanço respostas. No entanto, a dúvida mantém-se. Se se trata de uma questão de descontextualização e sinonímia, então não valerá a pena utilizar estes termos, e bastará um simples trânsito de palavras, nada diferente de qualquer outro tipo de discurso impressionista. Se, porém, se pretende utilizar uma linguagem crítica um pouco mais objectiva, na medida do possível, então parece-me que a utilização destes termos não pode ser feita ad hoc, simplesmente aplicáveis aos artistas que a fazem emergir, mas a todos (inscrevendo-se eles ou não nessa "categoria"), ara que o termo não seja, como este - é a minha opinião -, vazio. Continuo, portanto, sem saber muito bem se estamos no caminho certo ao utilizar este vocabulário "emprestado".
Em relação ao comentário dos portugueses/bedéfilos, como sabes, não concordo. Há muito boa gente, culta, inteligente, mas que faz essa "mescla epistemológica", e outros tantos para quem é claríssima a distinção entre os modos diversos de criação artística. Mas descobrir isso não é o meu papel...
Até breve,
Pedro
«Assim, considerar-se-á todo o Jeffrey Brown (com o complicado Bighead no meio, o seu próprio Superfuckers...) e» ... queres dizer James Kochalka...
A frase não é clara. O que quero dizer é que o "Bighead" do Jeffrey Brown é, numa relação com Kochalka, análogo ao "Superfuckers" deste último, isto é, objecto de problemas em termos de "catalogação".
Obrigados!
Quanto à questão do minimalismo: que eu saiba não há "género" (em qualquer de prateleira de livraria ou biblioteca) na bd que vá buscar termos às artes visuais... o Kochalka pode ser "minimalista/zen/simples" (zen... outro conceito mal-aplicado!?) mas será um autor com livros implicados na literatura ligado ao humor, de ficção, do fantástico, biográfica, etc... nunca numa "minimalista".
Acho também que o termo tem sido tão mal empregue como "surrelismo" ou "pop art" ou "punk" noutras conversas informais e "escriticas pop" ou seja não é um crime tal como os próprios conceitos/movimentos artísticos que evoluiem de uma forma ridícula para designações como a "pintura pintura"... a sua aplicação é livre tal como posso dizer que temos um texto "cacofónico" ou uma imagem "concreta" ou sons "surrealistas" ou bd "alternativa", etc...
Na pespectiva estudioso da estética percebo as tuas preocupações e coloco-te mais algumas dúvidas, se Raymond Carver é considerado um "minimalista na literatura" então porque não pode ser Harvey Pekar (algumas histórias)ou o Jiro Tanigushi ("o home que caminha") na bd?
...
O "Cachorro mais bravo du mundu" do Sr. Lynch é sem dúvida o "minimalismo na bd!"!!!
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( - grrrrrrrrrrrrrrr
x
Não é que me irrite ou que esteja "contra" o uso dessas palavras todas em textos sobre bd (eu próprio faço uso de muitas delas aqui e ali). Simplesmente penso que será possível entabular uma discussão sobre este tema: e está a acontecer, claro. Por isso tenho estes problemas em ter a certeza o que constitui um "género" nesta arte...
Quanto à tríade Carver-Pekar-Taniguchi, é bem achada, mas o Bokowski com as suas bebedeiras e mulheres de má sorte, o Janus com elementos parecidos, e uma catrafada de novos tipos - olha a última Kramer's Ergot - também poderiam ser aqui utilizados. Até a Miffy do Dick Bruna pode ser "minimalista"! Nunca mais se terminava... Por isso, prefiro desviar para outro tipo de discurso.
Não sei se poderei falar nisto abertamente, mas este é um tema que penso que será interessante em abordar num certo acontecimento futuro, certo? Mas faz todo o sentido utilizar o termo para provocar uma apresentação/discussão. A partir desse evento é que se pode "avançar o discurso"...
Vamos embora!
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