Há muitas formas de viver a vida e muitas formas de criar arte. É uma força poderosíssima e quase avassaladora quando as pulsões de criação artística atingem o âmago da vida do artista, não enquanto artista, numa espécie de desdobramento de si-mesmo num "tempo de criação", pautado e organizado com os seus outros tempos, uma calendarização civil das várias pulsões que nos atravessam a todos e nos permitem o equilíbrio social, mas enquanto pessoa viva: lançando-o então para os limites da existência, e a que podemos chamar "loucura", "alienação", "falta de sentido de oportunidade", "esquizofrenia", etc.
Mas são raros aqueles em que essa pulsão é verdadeira, pulsante, havendo outros que procuram antes elevar a sua vida - cujas pulsões não diferem em muito das máquinas sociais das expectativas partilhadas em circunscritos "departamentos de vida" - à arte que desejam criar. São os que optam por elevar a autobiografia à sua própria criação, mas de uma forma sem filtro, quase directa, sem efabulação, despida... Por vezes, pode parecer-nos mero exercício de narcisismo, fútil, até de uma brandura que de pouco se reveste. Às vezes, essa mesma apresentação de si pode-nos parecer um abuso de confiança... Outras é apenas isso mesmo: um despojamento total que não sente necessidade de se justificar.
Jeffrey Brown é filho de uma escola relativamente recente que deu um pequeno abalo na banda desenhada independente norte-americana. A autobiografia não é um género particularmente recente, mas há toda uma nova geração que a ela se dedica, e é por isso que falo de escola. A meu ver, nesse grande grupo, há aqueles que rapidamente atingiram uma mestria por focalizarem apenas nos momentos de maior intensidade (ou que ao contarem esses momentos, transformaram-nos em intensidades localizadas), como Porcellino, outros preferiram disfarçar e apresentar uma construção mais seleccionada, como Debbie Dreschler, e outros ainda fazem convergir toda a espécie de estratégias para criar algo monumental, como C. Thompson e o seu Blankets.
Brown tem vários trabalhos dignos de nota já há algum tempo, mas parece-me que Unlikely queria chegar a um patamar de intencionalidade bem mais marcante do que trabalhos anteriores. É uma espécie de retrato despojado de romantismos, o mais confessional possível mas por uma atitude de certa maneira blasé - não se congratulando na merda de vida como Joe Matt, nem se desculpando a cada página como Chester Brown (ambos mais velhos, porém). É despojado, tal como a escolha do seu estilo, ainda mais "esferográfico" aqui. Mas parece-me também que não chega a existir uma confessionalidade desarmante, uma procura por uma honestidade impossível de atingir e que derreteria as barreiras últimas entre um leitor e o autor/personagem. É algo que está a meio, mas que, repito-o, passa pelo despojamento não para atingir plenitudes e estados de graça, mas simplesmente um estado de "ser-se-assim".
Se, por um lado, toda a leitura de Unlikely nos parece que é um dos nossos amigos que nos conta algo de mau na vida dele entre duas ou três cervejas, e dizemos, "sei o que isso é", para rapidamente nos abstrairmos disso na passada seguinte, por outro, a última vinheta é quase uma metáfora possível do que um amor acabado é. Apesar do livro mostrar-nos todo o "historial" dessa relação, parece ser uma desculpa para poder chegar ao seu fim. E que metáfora é essa? Um lugar vazio na grelha de estacionamento. Um vazio que se pode preencher de um momento para o outro, sem espectáculos de maior, apenas meia-dúzia de manobras.
Nota: agradecimentos a Isabel Carvalho, que me emprestou o livro.
10 de abril de 2005
Unlikely. Jeffrey Brown (Fantagraphics).
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:14 da tarde
Etiquetas: Autobiografia, EUA
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