10 de abril de 2005

In the Shadows of No Towers. Art Spiegelman: (ainda): O Retorno da Memória.


Duas regras do jogo: Art Spiegelman (AS) não pensou In the Shadows of No Towers (SNT) enquanto livro, mas sim como um trabalho contínuo num formato muito particular, reminiscente da banda desenhada norte-americana das primeiras décadas do século XX, conhecido por "Sunday pages" (isto é, a total utilização de uma página de um jornal aos Domingos, a cores, por um artista de bd), no qual ele elabora 10 pranchas. Em segundo lugar, é preciso entender que trabalha no interior de um intervalo, cujos termos são, por um lado, a obsessão por uma imagem particular que lhe sobrou do directo testemunho do evento a que se chamaria "11 de Setembro": a torre sul, das Gémeas de Manhattan, incandescente, segundos antes de ruir; por outro, uma mão-cheia de "Sunday pages" particulares de várias séries clássicas que, no entender do autor, foram quase premonitórias do que viria a acontecer, e as quais são citadas através da inclusão das personagens "amalgamadas" noutras, mais próximas do autor (quando não amalgamadas nele próprio). (Mais) 

Não me parece ser esta leitura do plano da interpretação, já que esta ideia de intervalo é reforçada pela inclusão, no volume publicado, de uma introdução referente a eventos pessoais, políticos e contemporâneos, relativos a AS, e de um apêndice com as referidas "Sunday pages", e as necessárias notas explicativas e históricas. Ou seja, e esta é uma outra forma de entender esse intervalo, AS opera entre a sua memória individual e uma suposta memória colectiva ou histórica, que pode ter o nome de tradição. (Não me interessa aqui discutir o uso deste termo; simplesmente emprego-o no seu uso mais corrente).

Já antes havia AS trabalhado no plano da homenagem criativa, quer na Raw até à mais recente Lead Pipe Sunday; SNT continua essa veia, ainda que de um modo diferente. Vivemos, diz-se, num momento de total e permanente desterritorialização das imagens, mas ao se apropriar do trabalho de outros autores, AS fá-lo de um modo contrário, por exemplo, à publicidade: o processo a que submete essas imagens é antes uma centripetação, uma frenética e contínua convergência de memórias a um mesmo espaço, reagrupando-as numa tentativa precisamente de elaborar uma tradição concreta, uma história consistente, enfim, uma memória da bd. Há uma outra razão para esta convergência: ainda que Maus o seja em bem menor grau, AS é um autor a quem podemos chamar de formalista, isto é, cujo interesse e busca de sentido passa pela exploração de aspectos formais da bd, independentemente da sua "mensagem". Ora, sendo essas diversas séries citadas e que convivem em SNT - Hogan's Alley (Yellow Kid), Katzenjammer Kids (Os Sobrinhos do Capitão), Happy Hooligan, Kinder Kids, Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Mufaroo, Little Nemo in Slumberland (Pequeno Nemo no Reino dos Sonhos) Bringing Up Father, e Krazy Kat, - as suas fontes materiais, elas surgem como possibilidade de exploração de mecanismos e discursos vários: a memória dos outros é utilizada para veicular a sua memória e expressividade múltiplas. Ou seja, as características a que nos habituámos em Spiegelman (multiplicidade de estilos, explorações a nível formal, homenagem a mestres da bd, confissões em primeira pessoa), estão aqui presentes através dessas pequenas "citações" oblíquas. Isso permite-lhe ainda uma exploração singular: a da representação de si mesmo.

Numa entrevista a Benoît Peeters, publicada na Bang! 7, Spiegelman confessa: "Por vezes, não gosto de mim, não gosto do meu próprio cheiro, não tenho vontade nenhuma em me desenhar. É por isso que me faço representar de maneiras sempre diferentes nas pranchas [deste livro] (...)". De facto, a representação do real, da referência que o homem-Spiegelman é, já que se trata de uma espécie de autobiografia, ou de confissões, ou diário, é multímoda: ora surge como um possível Spiegelman simplificado (sempre vestido da mesma maneira), ou com a cabeça de rato (de Maus), auto-citando-se, ou "amalgamando-se" a uma personagem clássica da bd, ou, no caso gritante da prancha 9, em que as transmutações passam pelo seu gato, mobília e pedaços do corpo. Vários críticos, como T. Groensteen ou João Paulo Cotrim (ver um seu artigo no Expresso de 11 de Setembro 2004), aproveitando um trocadilho, empregam uma expressão feliz para falar de AS, a de "homem-espelho": presumo poder entender aqui quer um sentido lacaniano, a de conhecimento de si-mesmo-enquanto-outro e representando a "falha", mas também uma espécie de consequência auto-criativa, isto é, em que se é produto de um contínuo polir de si mesmo, surgindo-se como reflexo/reflexão. Mas Spiegelman não devém propriamente o(s) Outro(s) - os criadores/personagens citados -; fá-los, a eles mesmos, devir ele-próprio, ao empregá-los, usando-os como máscaras/espelhos. Mas nesse mesmo movimento não devirá ele então o(s) Outro(s)? Talvez, não estou seguro. Essas referências ao corpo multiplicar-se-ão, pelos fumos que ingere, o voluntário do tabaco e o que lhe é imposto, as "raízes" em relação à cidade, as lágrimas, a falta de sono e, como vimos, a própria representação física.
A citação ao repetidamente lido poema September 1, 1939 de W. H. Auden serve de contraponto ao facto de que Spiegelman, quanto a ele, encontra nos clássicos da bd a resposta à procura de "consolo", ainda que essa emergência seja depois também objecto de culpa. É conhecida a afirmação de Adorno de que após Auschwitz escrever poesia seria "bárbaro"; e não é de todo ridículo citar aqui essa frase, uma vez que muitos norte-americanos repetiram essa fórmula ao dizer que "depois do 9/11 não é possível dizer/fazer arte". Não é de todo ridículo porque Spiegelman é particularmente famoso por se ter "atrevido" a lidar com o tema de Auschwitz com dois livros de banda desenhada, a série Maus, sobre o seu pai, sobrevivente desse campo de morte. Não é de todo ridículo, porque as pessoas se movem na vida, como AS o tenta fazer. À procura do consolo, mesmo que este seja "impossível de satisfazer".

A culpa surge com o dispositivo da imagem do bode expiatório com um turbante: admirável fusão do bode do ritual judeu com algo que se identifica com os árabes: metáfora dupla para o Bem ou para o Mal (com maiúsculas, já que parece existirem ambos na mais absoluta das claridades, de acordo com a Administração Bush-Cheney): quem tem a culpa do 11 de Setembro? Será também um alter-ego do autor que, irritado, injuria os que tentam dormir complacentemente e que só adormece se os outros acordarem? Nas capas aparece como eco e sombra da imagem do autor caindo juntamente com as outras personagens clássicas: Spiegelman cai junto com as vítimas das torres? Deseja ser parte integrante da tradição das personagens citadas? E se elas caem (com ele), a queda é em relação a quê? Mais uma vez, sempre presente a indeterminação e a multiplicidade (material e) semântica em que AS opera.

Vejamos vários dos seus mecanismos. Particularmente interessante é o facto do título se referir a um paradoxo - não há sombra se não há objecto (as torres) - e a imagem central desse paradoxo ser a estrutura do prédio, como se brilhasse. Um brilho que não ilumina, mas cega: veja-se a prancha 8, onde nos óculos do autor-personagem se reflecte essa imagem, impedindo-nos de ver os seus olhos... Ainda no "apagamento": algumas vinhetas parecem estar escondidas por outras, mas não há "sobreposição" de imagens, ou "ocultação" de outras, apenas "planura" na prancha. Neste aspecto, o formato escolhido torna-se significativo, pois assim também não surge uma hierarquia de planos pictóricos, simbólicos e linguísticos, porque todos concorrem num mesmo plano, que é o da prancha. Obviamente, pouco importa se essas vinhetas parcialmente (ou quase totalmente, já que não se podem "ler") escondidas existem de facto ou se são apenas esse fragmento visível, mas o autor parece jogar precisamente com aspectos de planos, de paratextualidade, assim como com a assumpção da "arte invisível" da bd, aporia da qual se depreende que o que é visível se torna menos significativo. A crise da "gramática" é provocada pelo autor no preciso momento em que ele a tenta impedir. A discursividade é uma tentativa de reaver essa experiência primeira, mas quanto mais se procura, mais se afasta, mais se apaga a experiência; há antes uma sobreposição de memórias. A propositada concorrência de memórias parece uma aceitação quase resignada do autor dessa situação.

Como disse ao princípio, AS trabalha entre duas imagens; por um lado a representação do seu corpo, ilógica em termos de mimésis, já que não de metáfora pela qual passa a "memória da bd", e por outro a do edifício que está caindo (o gerúndio é propositado). Nessa múltipla busca por caminhos possíveis de representação há várias unidades de sentido, em que as linhas concorrem numa saturação, que não é mais do que esse jogo impossível da linguagem, enquanto resgate da memória original.

Spiegelman é de facto um autor maior, pois busca saturar a sua própria linguagem, balança-se entre várias direcções operativas para alcançar um limite, o qual é "aninalisável", pois à medida que o atinge, afasta-o de novo. No seu caso particular, a memória, entendida de um modo lato, é o seu campo de experimentação e expressão.

Curiosidade primeira: na antologia de 1987 Read Yourself Raw, também caíam personagens de bds de um prédio. Curiosidade segunda: a capa da última antologia da SPX (2004), cujo tema é a guerra, mostra um campo de batalha onde estão semi-enterrados os corpos de personagens de bd. Serão estes simplesmente mais blocos a confirmar uma continuidade de memória?

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