A esmagadora maioria das adaptações fazem-se pela camada mais fina. Isto é, escolhem os elementos mais visíveis e claros e transpõem-nos para outra forma. Ou seja, “a estória é a mesma”. Seja do cinema para a banda desenhada, da literatura ao cinema, do teatro ao livro, ou contrários, ou outros, a maior parte das vezes esboroa-se tudo, porque não passa o essencial, que é a mancha de sentido da obra original. Seria cansativo apontar os erros, de tantos que são. Mais vale concentrarmo-nos naquelas que no dão tanto prazer no seu primeiro avatar como no segundo, o qual, ainda que diferente, é o mesmo, ou sendo o mesmo, é diferente.
City of Glass, na versão de Karasik e David Mazzucchelli, garante-nos esse prazer continuado.
Paul Auster, apesar de não ser um escritor de primeira água, possui alguns elementos de interesse que atravessam os seus livros: a dissolução dos géneros, a mise-en-abîme através da introdução de outras histórias menores na maior, as coincidências e as coincidências felizes (ou serendipity), a mistura entre os vários níveis de ficcionalidade e realidade. Falo sobretudo da Trilogia... Nada que não caracterizasse já outros escritores que exponenciaram esses mesmos elementos, como, é óbvio, J. L. Borges.
A adaptação do primeiro conto/episódio da Trilogia, A Cidade de Vidro, foi um processo moroso e complicado, que passou em primeiro lugar pelas mãos de Karasik (fiel experimentador do modo da banda desenhada, ainda que a maior parte das vezes nos bastidores da Raw) e termina nas de David Mazzucchelli, conhecido do grande público pelo Batman: Year One escrito por F. Miller, ou de outro mais alternativo, por curtas e oníricas histórias (reunidas pela Coconino Press em Phobia, de 2003). Foi uma colaboração estreita, revista e refeita, com o apoio de Auster, e ainda Art Spiegelman.
As soluções visuais são tão bem ponderadas, estruturadas e finalizadas, que se torna quase estranho comparar ambos os textos - o literário e o da bd – já que o peso das palavras no primeiro parece transformar-se aqui numa leveza. Precisamente porque a estória não era fácil de transportar à mais visível das matérias, é a própria estruturação dos painéis, a maioria rígidos, à la Kurtzman, depois liquefazendo-se juntamente com a percepção da realidade por Quinn, que coloca o ónus da mancha de sentido no centro do nosso olhar. Existem sequências memoráveis, que se plasmam perfeitamente às palavras: o discurso de Peter Stillman, o jovem, cuja voz parte de um local mais recôndito que o cérebro, e isso é expresso pela cauda do balão afundando-se na garganta; a ida à biblioteca e a avalanche de referências visuais díspares que concorrem num só espaço; as repetidas vezes que surgem os labirintos, as impressões digitais e as cabeças de um menino a gritar; as intromissões de infografia e metáforas quase-absurdas. Mais um exemplo: Paul-Auster-o-escritor-personagem-do-livro-de-Paul-Auster-o-real, nas páginas 88 e 89, nas duas vinhetas que apenas mostram a mão segurando a caneta. Quase um mudra, encerrando o significado mais no gesto que nas palavras ditas. O estudo próximo desta obra, contrastando com outras adaptações mais “clássicas”, que surgem mais como “reader’s digest”, logo, levianas, seria um excelente ponto de partida metodológico em pensar a teoria da adaptação e da transcritura (para citar um feliz neologismo). Entre nós, reina a preferência por um trabalho menos substancial e mais imediato, cujas excepções se contam pelos dedos – Filipe Abranches e o seu Diário de K. está nesse número. Chamar a este livro “experimental” não poderia ser mais errado, já que uma “experiência” não leva necessariamente à instauração de soluções repetíveis, utilizáveis – mas não de menores glórias, como The Cage, Here, etc. -, e City of Glass abre um panorama vastíssimo de pensar a acção da narrativa na banda desenhada.
(Nota: publicado originalmente em 1994, esta edição é de 2004. Existe uma edição brasileira pela Via Létera, de 98, com boa tradução mas má impressão)
10 de abril de 2005
Paul Auster's City of Glass. Paul Karasik & David Mazzucchelli (Picador)
Publicada por Pedro Moura à(s) 5:14 da tarde
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