11 de fevereiro de 2007

Alice's Adventures under Ground. Lewis Carroll (Frémok)


Ou A Recuperação da memória, parte 2.
Na história do mercado francês (ou francófono), o advento do álbum, fosse como o corolário das aventuras de uma dada personagem, coleccionadas após a sua pré-publicação numa revista (da Petit Vingtième à Pilote, da Métal Hurlant à (A Suivre)), da Charlie Mensuel à Hara-Kiri) ou fosse como pequenas revisitações dos famosos heróis, marcou a possibilidade da presença contínua dessas mesmas estórias: antes das chamadas graphic novels (nome falso quando se aposta nos trade paperbacks de séries anteriores), já os leitores francófonos podiam ter um livro de Zig et Puce, de Bécassine e, claro está, de Tintim. Isso levou, dizia, a uma relativa permanência de determinados títulos no mercado. Não é difícil encontrar, a qualquer momento, à venda livros de Hergé, de Saint-Ogan, de Chaland, de Tardi, de Moebius, de Franquin, para citar os mais famosos. Contudo, essa mesma situação leva a que essa permanência se note apenas nesses nomes de “grandes”, e que outros fiquem pelo caminho ou se percam no esquecimento, e não necessariamente de forma justificada, em termos da sua força estética. Cingindo-nos à produção francófona, diríamos que Francis Masse, Annie Goetzinger, Chantal Montellier ou Poussin (não o da Arcadia, mas o Gérard), e outros, caíram nesse pequeno esquecimento editorial. No entanto, desde os anos 90 que uma mão-cheia de editores menores, ditos alternativos (denominação que, de facto, como nos Estados Unidos, fazem sentido num mercado imenso e pluralista como o franco-belga, mas absolutamente nulo em Portugal, senão mesmo anedótico), para além de dos seus programas editoriais e estéticos específicos – penso em grupos relacionados com o movimento da Autarcix Comix, sobretudo os grupos Fréon, Amok, depois ambas fundindo-se na Frémok, e L’Association – também deram início a um percurso cuidado de reedição de obras “perdidas”, ou pelo menos fazendo parte de uma Memória muito especial. É óbvio que quase sempre essas reedições são de obras que espelham a mesma política e posição estética que as das obras editadas pelos autores contemporâneos dessas casas. Assim, a Fréon, com a sua sublime e empolgada esteticização do visual, é natural que reeditasse Che, de Breccia pai com Breccia filho, uma hagiografia que passa pelo experimentalismo total da matéria gráfica; a Amok, no seu intuito político de vozes dissidentes da (falsa) hegemonia francesa, repesca um ilustrador como Kamel Khélif; a Frémok, consubstanciando ambos os propósitos, procurou reintegrar-se numa longa tradição, quer francesa, com as obras de Alex Barbier, quer de muitos outros países (inclusive Portugal); e L’Association, com um maior pendor sobre a legibilidade e a literariedade da banda desenhada recuperasse Edmund Baudoin, Jean-Claude Forest, Francis Masse, Gébé, e até um Massimo Mattioli de uma produção mais infantil. Estas insistentes revisitações, além de marcarem na História o território que cada uma das editoras pretende, não fundar (pois o procurarem os seus exactos “precursores” afirma uma certa continuidade), mas esclarecer e consolidar, torna-se cada vez mais presente e forte. A elaboração de uma ideia de união intrínseca entre os gestos de desenhar e o de escrever também tem aqui o seu papel.
É precisamente a todo este “agenciamento” que se pauta esta recente edição, de um fac-simile do manuscrito de Lewis Carroll que o mesmo ofereceria à pequena Alice Lidell e suas irmãs, onde apontara e desenhara pelo seu próprio punho as aventuras da outra Alice, e as suas “Aventuras no Mundo Subterrâneo”. A existência de manuscritos com desenhos é uma tradição antiquíssima, desde o surgimento do próprio processo de escrever em uma qualquer superfície a guardar. A existência dos gestos de um só autor que quisesse unir os gestos de desenhar e escrever são também antigos: Matthew Paris fê-lo no livros das suas Viagens, Hans Holbein não pôde ler a sua cópia d’O Elogio da Loucura sem desenhar na margem, William Morris construiu um livro de poemas seus para oferecer a Georgiana, mulher de Edward Burne-Jones, com desenhos de Charles F. Murray; Sfar fá-lo continuamente de um modo; Tom Phillips fá-lo de outro. Carroll não percorre um gesto diferente nesse sentido. Se olharmos as imagens que ele fez para o seu Alice, vemos que tinha uma noção de figuração sólida, se bem que o tipo de aproximação dos rostos fosse demasiado solta para os gostos mais conservadores da sua época (não obstante a existência de um Doyle na Punch, ou de um Töpffer!), o que levou o seu editor a convidar Tenniel para a construção das imagens. Porém, esses desenhos de Carroll são hoje claramente passíveis de uma apreciação positiva directa. Tenniel, seja como for, redefiniria a imagem de (ambos os títulos) Alice para sempre, sobretudo depois de ter sido rapinado pela Disney (curiosamente, a companhia que mais combate o plágio, até de formas ridículas; veja-se o Rei Leão ao lado de Kimba, filme de Tezuka); e Alice seria revista vezes sem conta, pelos mais marcantes ilustradores da História dessa arte (de Arthur Rackham a Otto Seibold, com um filme em flash).
Por outro lado, a própria história da literatura ilustrada seria uma fonte constante de trabalhos magníficos de diálogos, mesmo que não haja essa união de gestos, mas uma mera co-habitação entre o texto e a imagem – na verdade, os exemplos em que penso não são “meros” de modo algum, mas conseguidos: as alianças entre Charles Dickens e Cruikshank e “Phiz” Browne, entre Jules Verne e Alphonse de Neuville e Édouard Riou, entre Oscar Wilde e Aubrey Beardsley e Jessie Marion King, entre muitos artistas das vanguardas russas (Lebedev acima de todos?)... O divórcio entre texto e imagem é possível e recorrente, mas termos uma edição destes autores literários sem as imagens que foram criadas, no seu próprio tempo, em colaboração por vezes, para esses textos parece-me ser uma pequena violência, sobretudo para com a Memória de que falo insistentemente, da História da Ilustração (e da Banda Desenhada também, por vezes, numa perspectiva ampla).
Esses desejos em repor um equilíbrio ou de novo em movimento essa Memória implicada parece-me ser aos poucos cumpridas por todos estes projectos editoriais, deste lado e daquele do Atlântico.

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