11 de fevereiro de 2007

Batman Year 100. Paul Pope (DC Comics)

Existe um fenómeno óptico conhecido como parentélio, que é quando a luz de um determinado corpo emissor de luz parece estar num ponto espacial, mas na verdade se encontra noutro, e a luz é desviada por uma qualquer atracção gravitacional que nos induz a essa ilusão e erro. Por outras palavras, parece vir essa luz de uma direcção, mas de facto encontra-se noutro território. Paul Pope é aparentemente um cultor da banda desenhada alternativa – distinção que faz sentido num mercado como o dos Estados Unidos -, no mesmo campo de um Adrian Tomine ou Seth ou Julie Doucet; mas essa perspectiva é falsa. Paul Pope é, como muitos outros autores, fãs incondicionais do mainstream que sonham nele entrar e participar o quanto antes mas que, no início das suas carreiras, dão passos na chamada “small press”, associando-se a públicos com os mesmos interesses. Ou seja, a característica de se ser “alternativo” não reside na sua expressão idiossincrática nem nas suas pulsões intrínsecas, mas somente nas estratégias de produção e distribuição. Pope está, portanto, lado a lado neste sentido com autores como Ed Brubaker, Kevin Smith, Brian Michael Bendis, David Lapham, entre outros (Alan Moore, Grant Morrison, Warren Ellis, pelo contrário, simplesmente mudaram-se de um mainstream – o britânico, menor – para outro – o americano, mais visível). Por outro lado, em termos de desenho, Pope é aquele que melhor integrou uma fortíssima influência da banda desenhada japonesa mais visível - o que é natural, tendo trabalhado para a Kodansha no Japão - e até banal (a ideia/preconceito/saco comum de mangá do leitor desatento ou do fã acriterioso) para tentar construir um estilo muito pessoal. Se o conseguiu ou não, depende de alguns factores, mas independentemente das inclinações do gosto, as influências a que me refiro são bastante, claramente, visíveis: na figuração das personagens, de traços límpidos para o rosto mas acumulados para dar conta de movimento; a estruturação das pranchas, simples e legíveis, contrastando com a profusão de informação aquando da representação de espaços interiores, cheios de objectos e piadas internas, de mecha (toda a parafernália tecnológica típica da ficção científica de um certo imaginário das mangás e animés); uma escolha contínua para representar raparigas jovens e núbeis extremamente sensuais e cool (um piscar de olhos a uma leve “barely legal porn”); o modo plástico como as onomatopeias se formam, comportam e ocupam a vinheta; etc... Aliás, Pope fez disso matéria de exploração numa colectiva dedicada à mangá de vários autores norte-americanos e ingleses, intitulada Manga Surprise!
Todos estes factores são demonstrativos de uma vontade e de uma inclinação, os quais me impedem de ver Pope como um verdadeiro artista com uma preocupação “alternativa”. Bem pelo contrário, a sua preocupação é criar ambientes cool, que faça convergir toda uma série de elementos que para isso apontam e falsamente parecem criar um universo diegético adulto, como se poderá verificar com a sua saga The Ballad of Doctor Richardson, ligeiramente pontos acima de uma diatribe de adolescente contra o inevitável crescimento e amadurecimento (e perdas associadas...). Rapidamente Pope desviar-se-ia para o seu território de eleição, como o livro com título gráfico não-pronunciável (influências de Prince?) editado pela Horse Press em 2003, ou Heavy Liquid.
Pope não está sozinho neste comportamento. Jim Mahfood, Mike Allred, Jay Stephens fazem o mesmo, convergindo uma cultura pop com uma certa consciência contemporânea pelo que rende no mercado da arte contemporânea, uma certa atitude urbana, mas tudo dissipado por uma facilidade de superficialidades e falsas poeticidades. O que nos leva a este Batman.
Penso que a exploração da personalidade de uma personagem que não é mais do que uma trademark – com todos os impedimentos que isso implica – não pode de forma alguma ser consolidada por um só autor (mesmo que esse autor seja múltiplo, como Dupuy e Berberian, para dar apenas um exemplo); mas até essa situação é interessante, porque pode levar a uma multiplicidade criativa ao longo do tempo, que é o que acontece no modo de produção da DC (e da Marvel, etc.). Batman, em todo o caso, é a personagem mais interessante alguma vez criada no seio do mainstream de superheróis norte-americanos – independentemente da frase de Dave McKean, de não gostar deste “menino rico que se mascara para bater em pobres”, há de facto uma base estrutural na sua história (o famosíssimo trauma infantil que o desenha) que permite algumas das revisitações e empregos mais interessantes feitas neste campo: por Adams e O’Neill, Moore, Morrison e, acima de todos, Frank Miller; todavia, mais do The Dark Knight Returns, com os seus laivos de macho-fascismo, é com Batman: Year One, em colaboração com David Mazzucchelli, que Miller dá continuidade ao seu trabalho de policiais com octanas excessivas (que experimentara sobretudo com a personagem Daredevil/Demolidor) mas redesenhando a personalidade de Bruce Wayne de baixo para cima.... Aliás, é a esta obra que Batman: Year 100 responde, obviamente. Mas perguntemo-nos: que acrescenta Pope ao mythos ou ao pathos de Batman? Pouco. “Coolness”, acção, uma esfarrapada desculpa de humanizar o herói através da visibilidade da sua organicidade física (o cansaço, a respiração ofegante, o suor, o cuspo, o sangue, etc.), mas que de pouco ou de nada serve a um ser que sabemos ser – sempre, constantemente – “super”, isto é, indestrutível (nem que seja o seu ego). Diga-se de passagem que Pope não é o único problema neste falhanço estrutural. Grant Morrison, por exemplo, acaba por conseguir fazer um caminho mais divertido e interessante com a sua escrita actual para o Super-homem, mas um outro, inócuo senão ridículo, precisamente com Batman – o que é estranho para quem escrevera Arkham Asylum. Parece que só tentando superar The Dark Knight Returns (já de si insuperável pela hipérbole em que mergulhava, e cuja segunda dose de Miller apenas conseguiria roçar a palermice pop) conseguirão os autores seguintes explorar esta personagem? Estão gorados à derrota.
Este é um daqueles casos em que se diz que um autor “é igual a si mesmo”, epigonismo inevitável mas que se emprega nos casos de uma linearidade de percurso, num contínuo sem mudanças. No caso de Pope, isto traduz-se por muito estilo sem substância. “Muita parra, pouca uva” mesmo.

3 comentários:

Anónimo disse...

bom artigo. Paul pope é dos autores mais interessantes k andam por aí

Anónimo disse...

David Lapham começou no "mainstream" como desenhador de super-heróis, só depois se lançou com o Stray Bullets entre outras obras escritas e ilustradas por ele, e mais recentemente voltou ao género que o deu a conhecer mas como argumentista.

Pedro Moura disse...

Em primeiro lugar, obrigado pelos comentários de ambos. Em relação ao de Chris, o que eu digo sobre Pope não invalida o interesse com se deva´seguir este autor, que julgo mais forte na expressão gráfica do que nas narrativas que cria; se houvesse uma sua colaboração com um argumentista mais sólido e adulto, o estilo dos seus desenhos seriam bem empregues.
Quanto à correcção em relação ao Lapham, agradeço-a a bem do rigor biográfico, mas os trabalhos que ele fez para a indústria em que sempre quis entrar foram de uma divisão muito inferior àquela desejada; e "Stray Bullets" foi o laboratório que lhe permitiu entrar pela porta da frente mais recentemente. Muitos outros autores fizeram o mesmo, ainda que sem o mesmo sucesso, como Thomas Herpich, de quem falo no blog.
Obrigado!
P