11 de fevereiro de 2007

Please Release. Nate Powell (Top Shelf)


Do debate possível sobre a autobiografia na banda desenhada, deixam-se as palavras anteriores e as promessas de discussão alargada (vejam-se os comentários, que pedem a vossa resposta, de David Soares, aqui).

Serve este post, portanto, para anunciar brevemente a edição deste título de Nate Powell, jovem autor com uma mão-cheia de mini-comics e antologias da smaller press. (Mais) 

Parece-me que, não estando perante um objecto de fulgurâncias diferenciais em relação ao que tem sido construído, lenta e interessantemente, neste campo da banda desenhada, há um pequeno desvio que o torna merecedor da nossa atenção mais ampla no imenso mundo da edição de banda desenhada. Se alguns julgam que o "não ter nada para dizer" torna necessariamente a produção de um livro algo de desinteressante, parece que Nate Powell mergulha nessa mesma acusação com todas as suas forças, e transforma o típico ensimesmamento dos adolescentes ou jovens adultos na sua arma predilecta.

Todas as quatro histórias aqui reunidas rondam em torno da sua profissão, das suas constantes mudanças de cidade, da sua falta de decisão perante algumas questões, nem por sombras cruciais na sua vida. Entendemos que tem uma namorada, mas a relação entre ambas surge apenas como um fait accompli, ruído de fundo. Cruzamo-nos por vezes com amigos uma e outra vez, mas não vemos nada a ser aprofundado, arredondado... E nada disso importa, porque Powell quer transformar este seu gesto de escrever e desenhar numa espécie de plataforma, não de um diário "tal-qual", mas de um diário poético, de sensações, de uma bravura em abrir a sua mente e emoções ao público. Não nos transforma a vida nem nos informa profundamente sobre a existência comum entre os humanos, mas confirma o que já foi dito: que a autobiografia é um género da banda desenhada que está para ficar e que, para a sua continuidade, se vai começar a diferenciar e explorar várias potencialidades, umas mais fortes que outras, outras mais exploradas que outras, mas todas criando os contornos do campo. Não temos que achar que "deve ser assim ou assado", simplesmente que apreciar aquelas que nos parecem apontar um caminho menos garantido nas expectativas dos leitores, e por isso mais fortes no caminho de um autor forte...

2 comentários:

Anónimo disse...

Olá, Pedro! Gostei bastante dos teus excelentes artigos (Como sempre.) e desejo, somente, avançar um pouco mais no tópico sobre obras autobiográficas, partindo do post que referiste no teu texto.
Reconheço que a minha opinião poderá não ser a mais popular, mas começo por dizer que não estou, de modo algum, interessado em promover o aviltamento deste género de narrativas, em que os autores escrevem e desenham legitimamente sobre as suas vidas, e sim expor e defender o meu ponto de vista sobre essa escolha.

Bom, enquanto leitor de banda desenhada sou sensível à representação das imagens, mas enquanto autor de banda desenhada sou sensível à composição das imagens: ou seja, preocupo-me em desenhar boas imagens; um valor que não passa pelo virtuosismo do domínio da técnica ou habilidade do traço — territórios em que desenhadores mais talentosos que eu expõem panoramas de maior fôlego — e sim pela articulação do espaço oferecido pelas vinhetas e prancha. Interessa-me desenhar imagens interessantes, e, para o efeito, procuro orientar-me por aquilo que eu considero serem regras úteis de composição; principalmente no equilíbrio entre o texto e as personagens. Um leitor também sente a composição como importante, mas, na maioria das vezes, não tem consciência da forma como ela foi construída de modo a lhe suscitar uma determinada reacção (-”Ah, que giro!...”). Apenas outros autores e críticos podem reflectir sobre essa condição e perceber que uma imagem em particular evoca aquele preciso sentimento / significado só porque foi ilustrada — ou fotografada e filmada — daquela forma.

Tudo isto para dizer que, reparem, é relativamente fácil observar o virtuosismo de um desenhador, tanto pelo leitor como pelo crítico, mas o virtuosismo de um escritor é muito mais difícil de avaliar: pelo crítico e, ainda mais, também pelo leitor.
Existem regras de composição de texto (como existem para a imagem), mais escorregadias porque não podem ser observadas. Acredito que essa é uma das principais razões que influencia alguém a querer ser escritor: a ideia (falsa) que é uma tarefa fácil / acessível: pensar-se que não é preciso estudá-la, como a arte — que obriga ao domínio dos materiais, às teorias da composição e à contextualização da obra no espectro cultural —, mas apenas agarrar uma folha de papel, uma caneta e escrever aquilo que nos vai na cabeça. Ora, o que nos vai na cabeça é “noise” em 99,9% dos casos, não é? Reflexões superficiais, preocupações com a lista de compras do supermercado, e, o sempre inevitável cliché presente nas obras autobiográficas, o “bloqueio criativo”. (Good grief!... O fedor das obras com personagens escritoras que lutam com bloqueios criativos é forte o bastante para descascar a tinta de uma parede a 300 metros de distância.)
Sublinho que o impulso para se ser escritor, ou autor de banda desenhada, tem de partir “de dentro para fora” e não “de fora para dentro”; e acredito que a grande maioria dos leitores acha que se podem tornar escritores, sem pensar sequer em adquirir a tarimba técnica necessária para o efeito, se escrever sobre o que lhe está mais próximo: eles mesmos!

Ninguém no seu prefeito juízo acredita conseguir ser um endocrinologista sem possuir os conhecimentos técnicos necessários, mas são capazes de acreditar que podem ser escritores se escreverem sobre eles mesmos. É aí que se concentra a minha fobia às histórias autobiográficas: acho que são fáceis, preguiçosas e, no máximo, cobardes. Contudo, admito que este é um juízo pessoal (não despido de alguns preconceitos de estimação) e, em última análise, injusto. Talvez daqui a uns tempos leia alguma obra autobiográfica que me faça pensar de outra forma; se isso acontecer serei o primeiro a dizer que o artista é um bom artista, mas até lá ficarei sempre com a impressão final que não havia necessidade.

Mesmo assim, valorizo mais uma banda desenhada autobiográfica que um livro de prosa autobiográfica: é que no primeiro exemplo existe a imagem; e diante dela só há duas avaliações a fazer: 1) o artista é bom ou 2) o artista é mau. Por conseguinte, pode ser que o hipotético álbum autobiográfico seja uma péssima obra textual, mas uma excelente obra de narrativa sequencial.

Um factor que pesa na minha apreciação positiva de uma obra autobiográfica é pensar que ela terá sempre interesse "documental" no futuro: um instrumento para se observar extintos paradigmas sociais e perceber como as coisas evoluíram, partindo dessa visão particular para uma visão global. Mas, mais uma vez, creio que a ficção pode prestar um melhor serviço.

Sintam-se à vontade para discordar.

Abraço.

D.

Pedro Moura disse...

Olá, David. E obrigado.
Em primeiro lugar, gostava de esclarecer uma coisa e temo não ter sido muito claro. Quando eu me referi aos ataques à autobiografia em banda desenhada, e as desmonto pelos vários itens, não me estava a referir a ti. Bem pelo contrário, quer pelas conversas que temos quer precisamente pela forma inteligente em que como deixaste os outros comentários dignos de discussão (no pleno sentido da palavra), poderias ser o necessário "advogado do diabo" para "encetarmos uma discussão" (para citar um artigo sobre este mesmo blog, ou blogue). Nâo me interessa divulgar aqui quem conheço e até que grau de intimidade, e muito menos estar a colocar nomes fazendo ataques pessoais. As pessoas menos inteligentes e que desprezam a "autobiobd" são, usualmente, fãs do Wolverine ou do Spirou, e por aí se ficam...
Voltando aos teus argumentos, espero que tenham resposta da parte de mais pessoas, mas gostaria de deixar duas coisas. Em primeiro lugar, aceitando-os evidentemente como elementos a discutir, não penso que possamos reduzir a importância da autobiografia smente ao seu valor, posterior, de documento histórico; em primeiro lugar, porque tudo poderá vir a constituir-se documento histórico (inclusive tinta descascada a parede, and believe you me); em segundo lugar, porque o que importa é a mestria com que se faz a composição, como dizes e acertadamente: daí que julgue que não estarei em erro em dizer que o "Palavras" do Sartre é uma autobiografia superior à da Carolina (do Porto). Na banda desenhada acontece o mesmo; também não sou fã dessa atitude adolescente-tardia de "se olhar para o espelho encontro a minha matéria", que só leva a coisas sofríveis (vide as centenas de fanzines por aí); num grau acima caímos em Jeffrey Brown, pelo qual não nutro carinho especial, e acho que é algo facilitista, com alguns momentos de excepção; depois, fui seduzido pelo "Blankets" do C. Thompson, mas devo confessar que as aturadas releituras não se aguentam como o primeiro impacto; e é quando entramos pelos David B., as Dominique Goblet, os Emmanuel Guibert, os Edmund Baudoin, os Fabrice Neaud, os Seth, as Marjane Satrapi, nalguns dos Art Spiegelman, e poucos mais, é que nos aproximamos dessa mestria a que me refiro.
Entenda-se, nem Nate Powell nem Gene L. Yuang chegam a esses píncaros, mas fazem algo que não era absolutamente redondo até uns anos atrás: confirmam a existência, de facto, de um "género da autobiografia" e, enquanto género, confirmam regras repetidas, estratégias, formas, composições até. No entanto, é sempre um género cujo horizonte de expectativas, espero que concordes, é ligeiramente (ou mais) maior que o de outros géneros, como o da "fantasia" (incrivelmente previsíveis) ou dos "superheróis" ("deixa-me adivinhar...") ou outros.
Continuemos!
Abraços,
Pedro